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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Nick Cave não é santo, é humano

Em Red Hand Files, o cantor maldito procura fazer sentido de tudo isto através da correspondência com os fãs. Não é auto-ajuda: é empatia humana e dignidade.

O caminho para a redenção é longo e estreito e não está ausente de perigos, como todos os homens e mulheres ao cimo da Terra sabem, mesmo que raramente o digam em público (porque custa admitir que não somos mais que ovelhas tresmalhadas no aleatório plano da morte): é possível que a idade nos traga alguma paz, alguma calma, mas também é certo que o Deus em que Nick Cave acredita não nos poupa – e por cada migalha de sabedoria que alcançamos ele espeta-nos uma seringa carregada de heroína nas veias; por cada momento em que contamos até 10 antes de explodirmos com os outros ele atira-nos um filho por uma ribanceira abaixo.

Viver dá cabo de um homem, torna o predador mais cínico num coelhinho assustado – e é assim que chegamos a Red Hand Files, que faz referência ao título de uma canção (extraordinária canção do extraordinário Let Love In, de 1993) e agora é sinónimo de site de correspondência de um cantautor outrora maldito e agora à procura de dar sentido a isto tudo.

[“Right Red Hand”, a canção que inspirou o nome do site:]

Oh, Nick, que te aconteceu? Tu, que costumavas ser o mais belo dos rufias, o mais rebelde dos literatos, um devoto dos caminhos ínvios que só os mais atrevidos dos pecadores arriscam tomar – o que te aconteceu, Nick? Fala comigo, baby.

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Desde setembro do ano passado que Nick Cave, um homem que nos idos de 1990 fazia anotações para o seu primeiro romance nas paredes do seu apartamento em Berlim com a ajuda de uma agulha e do seu sangue, o Nick Cave que matava Kilye Minogue em “Where the wild roses grow”, esse Nick Cave está convertido numa espécie de Dale Carnegie, o homem que um dia inventou a auto-ajuda com a edição de How to Win Friends and Influence People, em 1936.

Sei que parece mas não estou a gozar – ou não estou a gozar com Nick Cave (até porque ele é bem moço para vir aqui e arrear-me). Auto-ajuda é um termo que tem sido usado para definir o mencionado Red Hand Files, que não é um site convencional de um músico – não tem merchandising, não tem datas de concertos, ou fotos do próprio Cave. Antes é exclusivamente composto de entradas em que o outrora príncipe das trevas responde a perguntas dos seus fãs.

Lentamente começa a revelar-se a extraordinária grandeza do que está a acontecer à frente dos nossos olhos em Red Hand Files: Nick Cave, estripado do mais importante membro na vida de um homem (o filho que lhe morreu), abeirou-se dos outros e escutou nas suas perguntas e nas suas dores uma humanidade na qual, muito provavelmente, já nem os próprios autores das perguntas acreditavam.

Não há – que eu tenha notado – qualquer limitação temática (excepto a vontade de Cave em responder à pergunta), e isto permite uma amplitude argumentativa e uma variadade de registos raras por parte de um cantor, mais ainda um que apesar dos seus laivos de humor é mais conhecido pelo seu pendor para as sombras que pela sua leveza e sorriso airoso. É um conceito no mínimo incomum no universo atual da pop, em que por norma as estrelas optam por comunicar no instagram em posts que, quando inspecionados com um pouco de bom senso, revelam um narcisismo extremo.

Tendo em conta o vasto legado de bandidagem que Cave deixou ao longo de décadas ninguém acharia estranho se as suas respostas aos fãs acabassem numa enumeração de peripécias acerca de digressões ou relatos de jantares bem regados ou em longas descrições dos efeitos das drogas. É essa, no fim de contas, a tradição dos homens das guitarras, patente na biografia de Keith Ricards.

Mas o tom que aqui encontramos não é nem o do narcisismo extremo da pop nem o da glorificação da vida de excessos e destruição do rock’n’roll. Uma pergunta acerca de Warren Ellis, que depois das saídas de Mick Harvey e de Blixa Bargeld dos Bad Seeds se tornou o seu braço direito, vai muito além de conversa de balneário sobre amigões e o o australiano acaba a debruçar-se com eloquência sobre a natureza da amizade.

Um exemplo da gravitas que Cave empresta ao mais vulgar dos temas é o seu mais recente tomo de correspondência: um leitor inquire Cave sobre o que a inteligência artificial trará à composição de canções e este dá o exemplo de “Smells Like Teen Spirit”, dos Nirvana: não duvida que um dia a IA consiga criar uma sequência de acordes idêntica ou com uma energia semelhante; mas não acredita que quando escutamos “Smells Like Teen Spirit” escutemos apenas “Smells Like Teen Spirit” e não acreditar possa criar uma canção tão cheia semioticamente como “Smells Like Teen Spirit” é.

O que Nick Cave faz a seguir é revelar o pathos de uma canção: tudo o que ela arrasta e como se crava no núcleo de uma cultura; como as vagas da história se despenham nela e que pespontos herda do passado para se travestir na urgência do aqui e agora adolescente. Quando ouvimos “Smells Like Teen Spirit”, argumenta tio Nick, assistimos à viagem pessoal de um rapaz tímido e alienado  de uma terra pequena chamada Aberdeen, um rapaz que seria (em princípio) o epítome da limitação e disfunção humanas e que teve a coragem de lançar a sua dor na direção de um microfone e, de caminho, arrastar uma geração; mas estamos, também, continua Cave, a ouvir a rebelião de Iggy Pop em 1970, a 9ª Sinfonia de Beethoven ou Prince a cantar no intervalo do Super Bowl.

Excerto do site The Red Hand Files

Fica assim, o corolário de um texto extraordinário: “What we are actually listening to is human limitation and the audacity to transcend it”.

Não quero aborrecer-vos com citações consecutivas das respostas de Cave, mas é difícil não salientar o que acontece quando um fã inquire Nick acerca acerca de uma foto antiga em que este, vestido com umas calças pavorosas, está abraçado a uma mulher mais velha. Nick confirma que é a sua mãe, descreve-a como uma pessoa elegante e educada, que mais que impor regras ao filho permitiu que este cultivasse a sua independência e, por fim, aproxima-se do epílogo: certo dia Cave tinha de ir receber um doutoramento honoris causa e estava nervoso porque aquele não era o seu mundo – a sua até então sempre muito educada sua mãe vira-se para o filho e diz-lhe: “Head high and fuck ‘em all”.

Toda a construção do texto, em crescendos de admiração pela mãe, amplia a frase final: há orgulho no uso que a mãe faz do calão porque esse calão é a medida da desmesura do amor que ela demonstra pelo filho. E notamos que este é um texto moral – que nos diz que temos de gostar de nós próprios, que temos de nos aceitar, de (como se diz no futebol e na educação da sra Cave Sr) andar de cabeça levantada, mesmo que tenhamos sido janados impenitentes durante muitos anos.

Ama-te a ti mesmo; anda de cabeça erguida. Compreende-se quem assinala o pendor de auto-ajuda. Mas talvez não seja isso ou, se o for, talvez seja a auto-ajuda que tem má fama – talvez, quem sabe, haja boa e má auto-ajuda. Porque o que por norma dá mau nome à auto-ajuda é uma sucessão de clichés vazios, que se empregam como fórmula simplista, uma fórmula simplista que nega, muitas vezes, a dimensão dos problemas que afetam as pessoas: ama-te a ti mesmo, dizemos ao amigo deprimido, como se a depressão dele não fosse real; levanta a cabeça, aconselhamos ao primo que foi abandonado pela mulher, como se essa perda não lhe tivesse levado a cabeça e o coração. Não é a auto-ajuda que é obrigatoriamente má – somos nós que somos uma merda, que somos egoístas e não dedicamos aos problemas dos outros o tempo e a atenção que eles realmente merecem.

Lentamente começa a revelar-se a extraordinária grandeza do que está a acontecer à frente dos nossos olhos em Red Hand Files: Nick Cave, estripado do mais importante membro na vida de um homem (o filho que lhe morreu), abeirou-se dos outros e escutou nas suas perguntas e nas suas dores uma humanidade na qual, muito provavelmente, já nem os próprios autores das perguntas acreditavam.

Não creio que Cave tenha de se redimir de nada. O que a tragédia terá trazido, pelo menos a partir do momento em que Cave terá começado a acordar da dormência que um choque desta gravidade inevitavelmente provoca, é da necessidade de chegar aos outros, seja para dar ou para receber.

E Nick faz isto não no registo que lhe conhecemos do palco, o de um exorcista popular capaz de conjurar os demónios da multidão e libertá-los numa infernal celebração da colossal tarefa de estar vivo, mas como um contemplador que, quando olha para o mundo e os seres que o povoam, se comove e quer desesperadamente ajudar e só pode ajudar se compreender. Mas que só pode compreender porque tem empatia.

O que obrigatoriamente nos conduz à pergunta mais difícil, a inevitável, que foi feita em janeiro deste ano por um homem, pai de uma menina pequena, que perdeu a sua esposa há três anos e meio: pareces feliz, como é que consegues ser feliz depois do que te aconteceu, Nick?

Não quero citar uma palavra de Saint Nick – quero, e permitam-me agora um pequeno ato de despotismo, que corram neste instante para a internet e leiam, mas leiam sem merdas, sem cinismos, sem aquela capa de arrogância que botamos diariamente para enfrentar o mundo e evitar que o resto da humanidade note as feridas abertas pelas perdas todas que acumulamos ao longo dos anos. Leiam, só.

Foi essa, a pergunta que conduziu Cave aqui – falando à bruta: foi a morte do seu filho Arthur, em 2015, com 15 anos, que trouxe Cave a este ponto em que em já não é só o pastor possuído que abana a anca em palco enquanto de forma paradoxal nos alivia as dores à medida que narra histórias de homicídios, violações e outras desgraças, nas quais se especializou, como um cientista do mal. Agora é também o homem que nos recorda que o nosso fascínio pelo escuro não invalida a beleza do claro.

Quando o meu garoto tinha dois anos comecei a ensiná-lo a atravessar a rua; sete anos depois ele ainda não sabe, ou não sabe o suficiente para eu ficar descansado de que o posso mandar à loja e esperar que volte intacto. O que isto me ensina é que é preciso muito amor e muita paciência para que um ser humano aprenda uma coisa aparentemente simples; o que isto me ensina é que, se eu me puser no lugar do catraio, compreendo que as coisas aparentemente simples para mim são – para outra pessoa – mais complexas do que penso; e que para um azar acontecer baste que o nosso entusiasmo, a nossa inocência, sejam superiores ao nosso medo, à nossa racionalidade – basta correr atrás de uma bola para a estrada, sem pensarmos por um segundo que alguma coisa má nos possa acontecer.

Excerto do site The Red Hand Files

Se demora tanto tempo a ensinar um pirralho a atravessar uma rua então certamente demorará muito mais a aprendermos que todos os seres humanos que nos rodeiam carregam a sua tragédia silenciosa (e também a sua alegria), e que os seus actos, tantas vezes para nós injustificáveis, têm um contexto que desconhecemos, uma narrativa na qual somos apenas uma vírgula, uma linha entre parágrafos. Demora muito a perceber que aquela pessoa que nos ofendeu ou agrediu ou magoou tem as suas zonas de sombra, provavelmente tão grandes quanto as nossas; e que, tal como nós, os outros também têm uma belíssima justificação para o facto de mentirem e traírem e, em geral, procurarem mais a sua felicidade que o bem do outro.

Para ser sincero, não creio que Cave tenha de se redimir de nada, ou que a tragédia tenha levado Cave diretamente do deboche à empatia humana envolvida em algodão doce – as suas canções, mesmo que escabrosas, revelam uma procura do extremo da humanidade, isso sempre lá esteve. O que a tragédia terá trazido, pelo menos a partir do momento em que Cave terá começado a acordar da dormência que um choque desta gravidade inevitavelmente provoca, é da necessidade de chegar aos outros, seja para dar ou para receber. O mundo não é composto de pessoas que só dão ou só recebem; fazer o bem pode ser um ato de narcisismo; levar porrada pode ser uma manifestação de masoquismo. O mundo é composto de trocas – e o melhor que podemos fazer é emprestar o máximo de dignidade.

Lembrei-me agora de uma entrevista em que o escritor António Lobo Antunes procurava explicar, julgo que falando da guerra ou de um divórcio, talvez de ambos, que a dor só por si não ensina nada – só aprendemos com a dor se tivermos alegria em igual ou superior quantidade.

A dor extrema não ensina nada, isola-nos dos outros e, até, do melhor de nós próprios. Queria chegar aqui: o que o senhor Cave está a fazer ao dizer às pessoas para lhe perguntarem o que quiserem e depois responder, no seu tom de pai que se revê na confusão dos filhos, é re-ligar-se.

Essa ligação é feita, agora, num registo diferente, mais humilde: Cave eliminou o tronco do palco, desceu do trono de estrela pop e, apesar da ponderação e peso das suas palavras, restaurou a fé que temos em ouvirmos e sermos ouvidos. Porque o simples ato de comunicar de forma franca também é, de certa forma, uma espécie de unguento; porque o simples ato de estabelecer essa ligação, de sopesar as palavras dos outros, de tirar o seu tempo para pensar sobre tudo isto, de oferecer o seu módico de conhecimento, tantas vezes envolto em angústia, também é, em si, uma forma de generosidade que nos restitui alguma da fé que inevitavelmente a vida rouba.

Há muitos anos Cave começou a ser apelidado de Saint Nick. Nunca foi santo – mas hoje é mais humano que nunca.

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