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Joao Pina

Joao Pina

“No Brasil pergunta-se: o que é que falta para a gente explodir?

Conversámos com Eliza Capai, realizadora do documentário “Espero Tua (Re)volta” que mostra a crueza de um país contada pela juventude. Chega agora ao videoclube da Zero em Comportamento.

A realizadora brasileira Eliza Capai não imaginava que Jair Bolsonaro seria eleito em 2018. Nem tão pouco que, ao decidir realizar um documentário, em 2016, sobre a primeira geração nascida em democracia, sob governo de Lula da Silva, iria descobrir um movimento estudantil a ferver, vindo da periferia pobre do Brasil, que se organizaria politicamente, metendo milhares de rapazes e raparigas na rua sob um pretexto: a luta por um ensino público de qualidade. E a luta fez-se de diferentes formas, até pelo recurso à ocupação de 200 escolas em 2015. Pode parecer ficção, mas não, aconteceu mesmo. “Espero Tua (Re)volta” (o seu terceiro filme) é um retrato complexo, duro, onde cabem questões como o racismo, o feminismo, a repressão policial sobre os mais jovens, que pega na voz de quatro personagens reais — “Koka”, Nayara e Marcela” — para dizer que não é por se ser menor de idade que se é menos gente. O filme estreia-se em Portugal esta quarta-feira, 24 de junho, às 21h00, no videoclube da Zero em Comportamento.

Nesta entrevista ao Observador, Eliza Capai confessa que, atualmente, o “audiovisual no Brasil está destruído” e, ao mesmo tempo, o país está a ficar cada vez mais pobre. Há mais gente a pedir, a passar fome e existe um aumento de crimes violentos e homicídios por parte da polícia, nas zonas mais pobres do Brasil, como nas favelas. A esperança juvenil que brota deste documentário contrasta muito com a visão negativa e crítica que a realizadora tem do seu país.

Sobre o presidente brasileiro, diz que não o entrevistaria hoje, mas que gostaria de conhecer melhor os seus apoiantes. Aliás, na altura em que foi eleito, Eliza esteve perto do eleitorado bolsonarista e chegou mesmo a entrevistá-los. “Estava muito enganada sobre o país onde vivo. Conhecer os bolsonaristas ajudou a humanizar o que estava a acontecer. Fiquei com vontade de voltar a essas pessoas, talvez nas próximas eleições”.

[o trailer de “Espero Tua (Re)volta”:]

Quanto às convulsões sociais que surgem no meio da pandemia da Covid-19, Capai conta que no Brasil existe uma elite intelectual que não quer revolta porque isso daria força a Bolsonaro para “fechar o Congresso e passar para um governo legitimamente autoritário”. Só que, tal como o movimento estudantil, existem franjas da sociedade, como as comunidades negras, “que estão a morrer” e que não querem esperar mais.

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Sobre George Floyd, afirma que no Brasil casos como esse acontecem uma vez por semana. “Há uma pergunta que paira por aqui: temos diversas mortes terríveis a acontecer o tempo inteiro relacionadas com a brutalidade policial contra a população negra, o que é que falta para a gente explodir?”. Uma pergunta que muitos fazem, mas para a qual poucos têm resposta.

Acredita que o debate sobre o racismo tem de ser feito entre vários movimentos, quer os mais pacíficos, quer os mais agressivos, para que encontrem força na soma e não tanto na divisão. Já quanto a Portugal, país que acompanha, mantém uma inquietação: “Ainda há uma visão um pouco romântica sobre a colonização e sobre as relações com África”.

Como está a cidade de São Paulo?
A sensação que tenho é que há muita desinformação sobre o que se passa no Brasil. Custa-me muito formar uma opinião em cima das informações jornalísticas mais o que se discute no convívio. Está a haver muita contra informação lá. São Paulo foi dos primeiros a decretar a quarentena, como Portugal. Dois dias depois do governador decretar o estado de quarentena, o Bolsonaro veio dizer que aquilo era uma gripezinha e que tudo isto era um exagero. Isso gerou uma grande dúvida na população. Sinto que não sabemos em quem confiar porque se tornou numa disputa política rasa. À custa disso, estão a morrer dezenas de milhares de pessoas. Já passamos os 50 mil óbitos confirmados e o que se sabe é que esse número pode ser 5, 6 ou 7 vezes maior. Cá quem tem o privilégio de ser da classe média do Brasil é só 5 a 10% da população, foram os que puderam ficar em casa.

Por outro lado, não há produção audiovisual.
O audiovisual cá está destruído neste momento. Perdemos a Secretaria de Cultura. E não se fez nenhum ato para tentar compensar. A Ancine, a agência nacional de cinema, está parada agora. Centenas de projetos também estão parados desde a saída do Temer, como presidente. Agora felizmente começou uma onda de processos contra a Ancine para libertarem os fundos públicos. Portanto, houve uma pequena elite que conseguiu ficar em casa, a outra parte ficou numa situação absolutamente precária, que tem de continuar a trabalhar, com apoios muito pequenos. Houve um apoio de emergência de 600 reais, sendo que o salário  mínimo é próximo dos mil, o que garante que algumas pessoas possam comer, mas nem toda a gente conseguiu, e chegou muito atrasado. O que vemos é uma repetição de uma situação histórica do Brasil em que a periferia paga uma conta muito alta. A maioria dos mortos ou dos doentes infetados em estado grave são negros e pobres.

"Quando você ouve o representante máximo do seu Estado a discutir com o representante executivo desse país, cada um a falar uma coisa, se não tem acesso aos dados da OMS, o que é que faz? Não se sabe o que fazer, é uma situação de medo muito grande."

Ou seja, a Covid-19 vai criar ainda mais divisão entre as classes sociais.
Vai haver um empobrecimento ainda maior da população. Vemos muito mais gente a morar na rua, durante a pandemia vimos mais gente a pedir ou a passar fome. E, ao mesmo tempo, além da falta de política pública para resolver uma questão global, ainda há uma crueldade extra: têm políticas de incentivo para algo que é proibido no Brasil, e que acontece por exemplo no Rio de Janeiro, neste período do governador Witsel, que é a polícia matar. Temos assistido a uma diminuição da criminalidade durante a pandemia, mas um aumento no número de mortes por polícias, e como é óbvio que acontece mais nos lugares mais pobres, como nas favelas. Isso está a gerar um aumento de frustração muito grande. Tivemos alguns assassinatos por polícias a crianças ou adolescentes que só estavam a brincar. E quando estávamos a caminhar para uma situação de controlo da pandemia, porque se sentia que estávamos a chegar ao pico, e que estabilizaria, antes disso chegar, os estados abriram. Acho que na próxima semana vamos começar a fazer as contas dessa semana de abertura em São Paulo, por exemplo. Quando me fui embora, as pessoas estavam a sair para a rua, a ir ao shopping, numa altura em que morrem mais de mil pessoas por dia.

Parece que há um desligamento da própria pandemia. Em Portugal estamos a dar alguns passos atrás, com regras mais restritivas em Lisboa, porque os casos estão a aumentar.
Posso estar enganada, mas em Portugal parece que há uma resposta rápida. No Brasil a resposta é muito lenta, mais a contra informação. Quando você ouve o representante máximo do seu Estado a discutir com o representante executivo desse país, cada um a falar uma coisa, se não tem acesso aos dados da OMS, o que é que faz? Não se sabe o que fazer, é uma situação de medo muito grande.

Em relação ao filme, através do qual acompanhamos o movimento estudantil entre 2013, 2015 e 2017, acha que, independentemente da pandemia, a revolta e os protestos vão ganhar força neste momento? Ou vão perder gás?
Faço-me essa pergunta e não tenho resposta. Ainda não existe resposta. Mas o que sentimos é que existe um intensificar de todas as questões que historicamente causam revolta: violência urbana, miséria, racismo, que está cada vez mais aberto, visível e gravado. Tivemos um caso recentemente muito forte, da criança filha de empregada que acabou por morrer, viu?

Vi, sim…
Isso gera uma revolta e raiva muito grande dos setores que acham que essa estrutura deveria ser modificada. Existe uma força para ir para a rua e ao mesmo tempo a situação do Brasil e a estrutura do poder do governo Bolsonaro é tão… é difícil encontrar uma palavra… é tão tosca. Mesmo quem não acompanha a nossa situação mas acompanha a dos Estados Unidos da América consegue entender essa coisa do “disse” e do “desdisse”. O Bolsonaro está há algum tempo a ameaçar os outros poderes, como o Supremo Tribunal e o Congresso, e isso gera uma situação de instabilidade muito grande. E, se por um lado, há um desejo muito grande de ir para a rua, por outro, há vozes que queriam que o Bolsonaro não estivesse no poder, que gostariam que o racismo estrutural, que o machismo e a miséria fossem erradicados da sociedade brasileira, e que temem que isso seja um estopim para que ele realize algo sobre o qual já falou: fechar o Congresso e passar para um governo legitimamente autoritário. Porque hoje há um governo autoritário dentro de uma estrutura democrática. Nesse último mês acho que isso ficou muito gritante quando se começaram a organizar diferentes movimentos no Brasil para ir para a rua, como no Rio, onde há vários coletivos anti-racistas. Em São Paulo tivemos grupos puxados pelas claques de futebol. O que para mim é genial, porque não é apenas a periferia ir para o centro da cidade, mas sim de grupos que historicamente lutam e se matam, que se uniram e puxaram outros setores da cidade para discutir o racismo e a luta pela democracia.

"Hoje há um governo autoritário dentro de uma estrutura democrática no Brasil"

E quando discutimos que estamos a começar um novo junho de 2013, vem um grupo de intelectuais, de classe média, em geral brancos, dizer que temos de ter cuidado. Porque isso pode ser o estopim de um governo Bolsonaro ainda mais ditatorial. Eles [quem está associado a Bolsonaro] estão ligados a grupos de extrema direita armados, grupos de milícia, para colocarem algumas pessoas infiltradas nesses movimentos, criando situações de grande caos social que justificariam a intervenção do exército ou medidas mais fortes. E talvez contassem com o apoio da população, ainda mais durante a pandemia. É por isso que vários intelectuais dizem que ainda não é o momento de ir para a rua. Houve uma resposta muito forte, principalmente da periferia, de diversos grupos negros organizados, ao dizerem que isso era conversa de intelectual branco, porque as suas vidas estavam em perigo ou acabavam por morrer. Agora é a hora de ir para cima, defendem. Sinto que agora vivemos esse intensificar, tanto da parte da elite bem intencionada que gostaria de mudar a estrutura social e económica do Brasil, como da periferia que diz que isto já está mau.

Para a periferia já não chega a palavra.
Exato, estão a morrer. Quer dizer, sempre estiveram a morrer. E aí voltamos ao nosso passado. Fomos o último país a acabar com a escravidão, fomos os que recebemos mais pessoas escravizadas de África, essa estrutura ainda não se desmontou.

Estamos aqui a falar de uma realidade que acabou um pouco por ficar na sombra, também fruto de um maior foco mediático centrado nas manifestações dos EUA. Deduzo que seja complicado para quem filma estes protestos e convulsões sociais. Aquela ideia de “olhem para nós, aqui também está a acontecer isto”.
O Brasil foi muito influenciado no início pelas manifestações nos EUA  mas há uma pergunta que paira por aqui: “Lá nos EUA houve uma morte terrível do George Floyd, cá há uma por semana, temos diversas a acontecer o tempo inteiro relacionadas com brutalidade policial contra a população negra, o que é que está a faltar para a gente explodir também?”. Essa é uma pergunta que muita gente faz e poucos têm resposta. É uma questão cultural e de anestesia social, porque tanto tempo de injustiça fez com que muitos já não saibam reagir.

[entrevista de Eliza Capai no Festival de Berlim, em 2019:]

O filme “Democracia em Vertigem” chegou aos Óscares, também tivemos o “Bacurau”. Mas este “Espero pela tua (re)volta” é um pouco diferente. Apesar de ser parcial, escolhe dar voz a uma geração mais nova, de uma forma bastante mais crua, utilizando até imagens de arquivo. O primeiro é estritamente político, o segundo é ficção, quase uma fábula dos tempos modernos. Acreditava que ia encontrar tudo aquilo que encontrou quando decidiu fazer este documentário?
Se conversássemos no início de 2015, provavelmente seria impossível imaginar uma juventude a fazer aquilo. Mas algo estalou ali e começou. É um movimento que chamou muita atenção de vários setores progressistas. O que me fez ficar curiosa foi o facto de ser a primeira geração nascida em democracia. Nasci na ditadura, a minha geração cresceu com essa imagem da ditadura muito forte. Podíamos ficar aqui a discutir horas sobre tantos problemas que teve o primeiro governo do Lula, mas chegou e escancarou os problemas históricos do Brasil como nunca tinha sido feito. Na minha infância, ensinava-se na escola que o Brasil não era um país racista. Que era uma democracia racial, que convivíamos em perfeita harmonia. Existia esse discurso oficial.

E essa geração que vemos no filme chega nesse primeiro momento de entender que país é este. Existe um  discurso que vem do executivo sobre a necessidade de acabar com a fome e a miséria, que somos um país extremamente racista e que precisamos de políticas públicas afirmativas. De que é preciso quotas para serviços públicos, de que precisamos que os negros cheguem às universidades. Por outro lado, a política de divisão de renda também é atrelada à questão da escola. A Bolsa Família, por exemplo, é responsável por tirar o Brasil do mapa da fome, não fez apenas com que as pessoas tenham uma alimentação básica, mas também obriga as crianças a irem à escola. Quebra um ciclo vicioso que fazia com que essas famílias nunca tivessem acesso à escola. Então quando essa geração começa a entender o país, eles falam “basta, acabou isso”. E como bons jovens que são, tudo é para ontem. É uma geração que tem urgência nessa transformação de um país menos desigual, menos racista e menos violento. E aí explode de uma maneira de diferentes formas, porque começam por não ser ouvidos, mas depois têm a sorte de ver um documentário do Chile, a “Revolta dos Pinguins”. E pensam: vamos fazer isso. É aí que conseguem uma grande inovação  no formato que força os media a falar neles. Porque antes falavam só no fim, quando alguém quebrava alguma coisa. Não havia discussão sobre a escola pública. Sobre como os jovens queriam melhorias nas escolas.

"O Presidente já disse que queria acabar com todas as formas de ativismo. Essa geração ativista vê-se explicitamente ameaçada pelo maior poder da República. Sinto que há muita depressão, ataques de ansiedade e angústia nessa geração porque tudo o que lhes ensinaram, que seria o futuro deles, foi cancelado."

Os jovens precisavam de ser levados a sério, era isso?
Sim. E aí forçam os media a falar neles e sobre a escola pública, forçam a opinião pública a falar nisso e a popularidade do governador de São Paulo cai. O que faz com que o governador os comece a ouvir.

As vozes que vamos ouvindo e nos guiam pela história toda: a Marcela Jesus, a Nayara Souza e o “Koka”. Parecem personagens de ficção.
Como é que jovens que vêm de escolas das periferias e precarizadas conseguiram um grau de organização política daquele tamanho? Essa foi a pergunta que me guiou. Percebi que tinham diversos movimentos, com questões internas contrárias entre si, mas que tinham  pontos em comum, como a luta feminista ou a luta contra o racismo. Depois também há a questão central da representatividade: quem tem direito a falar sobre isto? Na primeira ocupação que vi, a porta-voz que era uma menina  negra, o que não foi por acaso. Eles sabiam que tinha de ser alguém da base da pirâmide.

Estes movimentos surgem entre 2013 e 2015, numa altura em que não há Bolsonaro à vista. Tivemos Dilma Rousseff ou Lula, onde supostamente haveria um maior apoio de uma parte da população ligada à esquerda. Às vezes também acontece em Portugal: não é por um governo ser de esquerda que existe menos contestação. Como é que isso se explica? As pessoas exigem mais aos que são da sua cor política.

Quando há um governo disposto a fazer transformações, que escancara as questões de emergência e se dispõe a falar com o povo, isso gera um desejo de melhoria numa franja da população. Ainda é preciso algum tempo para estudar as manifestações de 2013, mas começam com um pedido ao direito de um passe de livre acesso à cidade. Num primeiro momento, quanto à cobertura mediática, ela é contra esses movimentos. Quando cresce muito, boa parte da grande media pega nesses discursos e inflama-os. Começou como uma manifestação de esquerda e depois termina, em alguns momentos, com pessoas que reconheceríamos estar ligadas a Bolsonaro. Que são contra os partidos políticos, extremamente violentas, de extrema direita e onde há pedidos de um regresso da ditadura militar. Algo que nunca tinha visto. Poucas pessoas imaginavam que isto ia terminar num 2018 como foi. Com um Bolsonaro a chegar ao poder.

Os jovens com quem contactou não estavam à espera que Bolsonaro fosse eleito, deduzo. Nem a própria Eliza.
Não, foi uma surpresa. Fomos algumas vezes a estúdio para gravar os miúdos. Vimos a edição do filme juntos e fizemos uma gravação no final entre julho e agosto de 2018, com os quatro candidatos presidenciáveis (Geraldo Alckim, Jair Bolsonaro, Fernando Haddad e Guilherme Boulos), onde lhes pedia uma frase diferente caso um dos candidatos ganhasse. Falaram de todos, menos do Bolsonaro. Disseram que não queriam. Pedi-lhes para imaginarem, disseram-me que não tinha hipótese de ganhar. E não falaram. Até ao episódio da facada, boa parte da esquerda achava impensável que o Bolsonaro ganhasse. Mesmo para o próprio filme… comecei a pensar que estava a registar a tal geração e que, a partir dela, o Brasil seria cada vez mais um lugar que procuraria a democracia e o fim das desigualdades e violências. Foi um grande susto terminar o filme como terminou.

Porque essa ideia sobre o futuro destes jovens que está presente no filme, acaba por ser “cercada” pela eleição de Bolsonaro. Por alguém que aparentemente é contrário àquilo que os miúdos defendem. Que futuro é que consegue prever para essa geração?
Agora estou a observá-los, porque estão na fase adulta. De repente, quando chega a vez deles, já adultos, tudo é cortado. O Presidente já disse que queria acabar com todas as formas de ativismo. Essa geração ativista vê-se explicitamente ameaçada pelo maior poder da República. Sinto que há muita depressão, ataques de ansiedade e angústia nessa geração porque tudo o que lhes ensinaram, que seria o futuro deles, foi cancelado. E logo num momento de muitas hormonas, de muita euforia. Foi um corte muito abrupto. Se para mim, que tenho 40 anos, é um choque e é deprimente o que está acontecer, imagina o que é receber essa notícia com 20 anos? Especialmente nestes grupos vulneráveis no Brasil. Existem parcelas destes movimentos que continuam nas ruas e o engajamento pode acontecer com manifestações ou com arte. A Marcela está ligada a grupos negros, a Nayara continua muito ativa nas organizações estudantis e planeia ser candidata nas próximas eleições, e o “Koka” está mais ligado à parte cultural. São um reflexo dessa geração, mas se olhar de perto, essa mesma geração está destruída. A promessa foi invertida.

"Qualquer obra de arte ou ação nossa é política, mesmo que não tenhamos consciência"

Referiu agora o “Koka”, um rapaz negro brasileiro, que está presente nas manifestações e tem sempre intervenções musicais, através do hip hop. Num dos momentos finais do filme, vemos esse rapaz com mais amigos, a conversar sobre os protestos e sobre como sofrem repressão policial e, ao mesmo tempo, está outro amigo a ser questionado por um polícia. Ao ponto de ter de apresentar um documento da sua própria bicicleta. Esse momento define o Brasil?
Mesmo para quem não é negro no Brasil. Não entendi logo sobre o que é que eles estavam a falar quando filmei. Como branca de classe média no Brasil, não sabia que um menino negro tinha de andar com um papel da bicicleta e também do telemóvel. Essa é a rotina deles. Aquela cena é o resumo da questão racial lá, de como é tratada.

Os jovens desconfiaram de si? Foi difícil ganhar a confiança deles?
Os três principais confiaram muito. Entregaram-se no processo. Havia uma oferta gigante no casting. Há outra coisa que estes jovens também fazem: colocar a luta política como estética nos próprios corpos. As roupas, as afros, a maquilhagem das raparigas, ou a questão LGBT, que é muito forte. Se queria fazer um filme que dialogasse com esse movimento, que fosse um filme para jovens que conseguissem chegar ao fim dos 93’ minutos, tinha de colocar no próprio corpo do filme essas questões políticas de que as personagens discutem. Quando os conheci, foi óbvio para mim que deviam ser eles. Por exemplo, quando conheci a Marcela, na véspera da minha entrevista havia uma manifestação. E foi nessa manifestação em que a  Marcela se ajoelha ao pé da Maria, e que [manifestante mais velha] acabou por ser violentada pela polícia. Esse momento resume o que é ser mulher pobre no Brasil. Cada um deles teve algo que faria com que representassem causas muito maiores do que cada um deles.

Esse momento, por exemplo, é daqueles em que um realizador pensa “pronto, tenho aqui o filme”? Ou não?
Sim. Na hora estava desesperada porque a ambulância nunca mais chegava, tivemos uma hora ali a gravar. Ao mesmo tempo, ver que souberam reagir àquilo, com um kit médico. Depois disse: que triste que isto ocorra e também que bom que aconteceu à frente da câmara. Quando se torna algo assim público, levanta-se o debate. Também queria ter retratado outras questões, como a perseguição policial que esses jovens sofrem, mas não tinha imagens. Optámos por mostrar os assuntos mais sensíveis, como as imagens da polícia militar, que não foi banida da constituição, contra corpos adolescentes. É um desenho de como este Estado militarizado trata a juventude pobre.

A Eliza chega a Portugal numa altura de grande discussão sobre o racismo. O debate está, mais uma vez, polarizado. Quer que o seu filme seja mais provocador ou que promova diálogo? Ou se não chega só debater, é preciso ação.
Não há uma regra. Todos os filmes são muito importantes. As várias formas de expressão tem de ter o seu espaço. Mas também é importante ter filmes que retratem a realidade, tanto como o meu, como o “Bacurau”, que é uma metáfora. Qualquer obra de arte ou ação nossa é política, mesmo que não tenhamos consciência. O realizador tem de ter consciência sobre o que está a falar e como está a produzir o seu filme. No meu caso, queria provocar reações viscerais para que as pessoas pensassem nos nossos tempos. Pensassem no que estão a fazer no mundo e como vão reagir. Deveria revoltar-me? Com o que é que estou revoltado? E o que preciso de fazer? Não é preciso fazer o que está no filme, claro. A pergunta de “o que é que eu estou a fazer com a minha vida” é feita pela arte, que nos provoca de várias formas. O meu próximo filme vai ser muito mais existencial e menos engajado. Não vejo como melhor ou pior. A liberdade que deve haver na arte é essa. Gastamos tanto tempo a fazer um filme que nos devemos questionar “porquê”.

"A média brasileira está a demorar a perceber como lidar com esta nova realidade. Como lidar com um governo que está baseado nas fake news, em criar grandes cortinas de fumaça. Não se pode participar nesse jogo, é mau para o próprio jornalismo e para a ordem democrática."

O cinema brasileiro teve um grande ano de 2019. Com a pandemia, como será? Acredita que o seu futuro como realizadora pode estar comprometido?
Venho de um cinema muito independente. Este é o meu terceiro filme e o primeiro que faço com fundos públicos. No primeiro gravei sete meses em África. Fiz tudo sozinha. Se tivermos esse tal retrocesso que está desenhado, vou voltar para formas mais independentes. O que vejo é que, no geral, há uma recessão tremenda no audiovisual. O Ministério de Cultura transformou-se numa Secretaria. A Agência do Cinema não faz nada. Estávamos a chegar a um auge de muita gente a poder realizar, com verbas, o que fazia com que se gerasse um cinema muito rico. Porque estávamos a aprender e a melhorar juntos. E estamos agora a terminar de viver esse período. Só que a produção no Brasil demora muito tempo, ainda há quem esteja a fazer filmes desde 2018. No ano que vem ainda vamos ter grandes produções na Berlinale ou em Cannes, mas depois é difícil ser otimista.

Gostava de entrevistar Bolsonaro?
Já pensei nisso no início. Mas hoje, acho que já falou tanto, e como a conversa dele é tão em zigue zague, seria mais interessante fazer um recorte de arquivo. Tenho vontade de entrevistar quem fala verdade, os documentários que faço são com pessoas que têm vontade de falar sobre as suas vidas.

[uma Ted Talk de Eliza Capai:]

E os apoiantes, gostava de documentá-los?
No dia da vitória dele, estava a realizar um projeto, com outra amiga, sobre os sonhos que as pessoas estavam a ter nessa altura. Porque notámos que muita gente andava a sonhar. E o sítio onde gravámos foi perto onde o eleitorado do Bolsonaro estava a comemorar em São Paulo. Continuamos a gravar, e apanhamos o momento em que foi anunciado, estando nós no meio dos seus apoiantes. Foi uma experiência muito forte. Na posse dele fui para Brasília porque queria ver as pessoas. Estava muito assustada, porque vivemos cada vez mais em bolhas, as redes sociais fazem-nos pensar que o mundo é muito igual àquilo que nós pensamos. Estava muito enganada sobre o país onde vivo. Queria tentar entender quem o apoiava. Tinha um estereótipo do que era um bolsonarista e ali estavam 115 mil pessoas, muito diferentes, de cores, classes sociais e religiões diferentes. Ajudou-me a humanizar o que estava  a acontecer. Fiz algumas entrevistas no meio da multidão, fiquei com vontade de voltar a essas pessoas, talvez nas próximas eleições.

Isso seria importante. Parece que não temos ouvido as pessoas que votam nesses partidos. Tendemos a achar que são todos iguais: racistas, xenófobos ou até de extrema-direita. Quando, na verdade, até podem só ser um tio ou primo nosso, que estão cansados do chamado “sistema”.
Temos de falar sobre isso. Só que faço filmes sobre pessoas em quem acredito, mesmo que venham de realidades diferentes. Sinto que para conseguir fazer um filme sobre bolsonaristas tenho de estar aberta para entender aquela pessoa. Não tenho vontade de fazer um filme onde vou julgar alguém. A média brasileira está a demorar a perceber como lidar com esta nova realidade. Como lidar com um governo que está baseado nas fake news, em criar grandes cortinas de fumaça. Não se pode participar nesse jogo, é mau para o próprio jornalismo e para a ordem democrática. Espero estar apta para entender esse outro Brasil da mesma forma que mergulhei naquela geração do movimento estudantil.

"Se queremos a mudança pelo bom senso que, para mim, como sendo de classe média branca, é fácil, imagino o que será para uma mãe negra que perde o filho..."

Em Portugal, de vez em quando, discute-se o racismo e o nosso passado colonialista. De um lado há quem não acredite que o país seja estruturalmente racista, do outro há quem defenda que precisamos de falar sobre os crimes que cometemos. Como é que países como Portugal podem resolver os seus dilemas históricos, como estes que falamos aqui? É pelo lado mais ativo, de derrube de estátuas, de manifestações, ou pelo lado do diálogo?
Temos esse desejo de haver uma ação que resolva essa questão complexa como é o racismo. Só se vai resolver com um conjunto de várias ações, que muitas vezes vêm de movimentos contrários. Como os que aconteceram nos Estados Unidos, em que uma pequena parcela dessa massa se radicaliza. O que é importante, porque pedem que se preste atenção e acabam por acontecer alterações, de legislação por exemplo. Em relação a Portugal, tenho vários debates aqui, com pessoas inteligentes e esclarecidas, e fico muito assustada como a questão da colonização e da escravatura são vistas. Tenho família portuguesa, historicamente estou mais relacionada com os escravocratas do que com os escravizados. No Brasil há um debate, mais do lado progressista, muito forte sobre a questão da escravatura e sobre as consequências na sociedade. Em Portugal ainda há uma visão um pouco romântica sobre a colonização e sobre as relações com África. Não consigo entrar nas igrejas de ouro aqui, porque passo fisicamente mal. Fez-se um altar maravilhoso que custou a vida de muitas pessoas. Como é que isso ainda hoje é exibido de uma forma orgulhosa? Claro que há grupos críticos, mas não se questiona toda a estrutura do país. Essa é a minha humilde visão. Tem de haver um ensino crítico sobre a colonização. Fiquei chocada quando soube que no momento da descolonização dos países de língua portuguesa, Portugal transformou as leis de imigração. O que antes era direito de sangue e de terra, passou só para direito de sangue, ou seja, “agora vocês já não servem mais, fomos lá, fizemos o que quisemos, e agora já não são bem vindos aqui porque esta casa é nossa”. É de uma violência histórica muito grande. Vou acompanhando um pouco esse debate de como é que voltamos para essas ex-colónias e dialogamos frontalmente com eles.

Mas será sempre difícil explicar aos mais velhos estas questões à luz dos valores deste século, por exemplo. Vai ser preciso algum bom senso.
Tem de haver várias escalas. As pessoas que estão no poder não são as que sofrem as consequências desse racismo. Se queremos a mudança pelo bom senso que, para mim, como sendo de classe média branca, é fácil, imagino o que será para uma mãe negra que perde o filho… Ou para uma cabo verdiana, angolana ou moçambicana em Portugal que tem uma vida precária. Será que tem de ter calma? A combinação de vários movimentos: de quem a mudança tem de vir do poder político e de quem tem raiva. Imagine ter um tetra avô que foi amarrado num navio, teve os dentes quebrados, ou uma trisavó que foi violada sistematicamente pelo seu senhor, porque ela era uma posse. Cada um de nós tem de provocar esse debate onde quer que esteja. Em casa tive debates de forma intelectualizada, quando me enervava, acalmava-me. Dos vários movimentos que vejo, eu não faria assim, mas a soma disso pode trazer transformações. No filme, isso só acontece porque houve essa soma. Temos de dar uns passos atrás e perceber porque é que essas formas de fazer, que nos colocam no espelho e nos lançam uma linguagem violenta, nos desestabiliza. Porque é que nos incomoda tanto. Em vez de irmos contra, é pensar como somar pelo lado em que acreditamos.

No videoclube da Zero em Comportamento os filmes e programas de filminhos podem ser vistos por 3€, durante 72 horas. A subscrição anual pode ser repartida, por 4,92€ mensais, ou de uma única vez, pelo preço de 45,51€. A assinatura de 6 meses custa 25,83€. No caso de subscrição, todos os conteúdos estão disponíveis, sem limite de tempo ou de visualizações.

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