O escritor espanhol Javier Marias, numa crónica publicada em “Selvagens e Sentimentais”, cunhou a expressão “recuperação semanal da infância” para descrever a especial relação entre um adulto e o seu clube de futebol. Tratou-se no fundo de uma forma mais literata de explicar e desculpar as figuras tristes que muitos de nós fazem antes, durante e após um jogo de futebol do nosso clube. Mal sabia ele que uns anos mais tarde eu a iria copiar para falar do Dragon Ball. Como costumam dizer algumas pessoas no Facebook quando decidem avisar aquele amigo que vão partilhar o seu post acerca do novo imposto sobre o património, “vou roubar”.

Podia ser recuperação diária da infância, mas ao que parece a SIC Radical prepara-se para fazer regressar Dragon Ball, agora na saga Super, em episódios semanais. E arrancam já a 24 de Setembro. Este sábado. Este sábado! Não estamos nem estaremos preparados. Seria ridículo tentar iludir-vos ao ponto de acharem que retomar a obsessão por Dragon Ball daqui a menos de 24 horas (é transmitido de manhã) será um resgate bem sucedido à memória colectiva do que foi, e continua a ser, esta saga. É impossível. Aliás, há problemas maiores do que esses nas vossas vidas. Não falo apenas daquele processo de execução fiscal que têm andado a chutar para canto. Não, é pior do que isso: as vicissitudes da vida tornam hoje socialmente inaceitável não levar um filho à natação ou ao treino de futebol derivado de uma série de animação.

[um dos trailers para Dragon Ball Super:]

Uma série de animação, repito, que devorámos há algumas vidas atrás. E também não há recap que vos salve: são centenas de episódios, personagens e desdobramentos da história em TV, livro e filme. Pessoas nascidas na década de 80 como eu — talvez a geração que mais sentiu o fenómeno em Portugal — tiveram entretanto mais que fazer. Mas lá longe, involuntariamente escondido debaixo do tapete na sala de estar do córtex, está um dos programas televisivos que mais nos apaixonou em putos que, como irei tentar argumentar, nos ensinou meia dúzia de coisas sobre a vida adulta sem nós darmos por isso. Ou nove, vá. Segundo o Buzzfeed, listas com números ímpares geram mais tráfego. Se ficaram indignados com esta admissão, não faz mal: estão aqui, não é? Obrigado pelo clique e continuem a ler. Perdido por cem, perdido por mil. Antes de irmos aos factos indesmentíveis, permitam-me dizer só mais uma coisa: BUBU QUER CHOCOLATE.

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Porra, isto soube bem.

É importante saber esperar

Há uma cena no filme “Vanilla Sky” em que Tom Cruise, aqui a interpretar um engatatão com problemas de primeiro mundo, descreve o modo como encara a sedução e se auto-define como um pleasure delayer, ou seja, alguém que adia até ao limite a obtenção de prazer. Vamos esquecer por momentos que a personagem de Tom Cruise definiu este conceito em referência a Penélope Cruz, um portento de mulher muito mais apta à máxima “não deixes para amanhã o que podes fazer hoje”. Mas dizia: pleasure delay é um conceito que desapareceu ao longo do tempo, um pouco como a carreira de Cameron Crowe, mas parece ter sido uma máxima dos criadores de Dragon Ball. Houve conflitos armados resolvidos em menos tempo que uma transformação de Vegeta em super guerreiro. E nem por isso a história se tornou menos viciante ou nos fez perder a vontade de ver como terminava. Hoje vivemos num mundo de gratificação instantânea e se um Uber chega 2 minutos depois do estimado já nos coçamos todos, mas a verdade é que passámos anos das nossas vidas embeiçados a fazer, dia após dia, o que o narrador nos dizia no final de cada episódio: “não percas o próximo episódio… porque nós também não!”

Pessoas de cabelo loiro são mais bem sucedidas

Não vos maçarei com mais um estudo científico do Instituto de Estudos de Hogwarts-o-Velho. Irei apenas, para o propósito deste artigo, dizer-vos que esses estudos existem, que respeito o contributo dado pela ciência ao mundo, e que sou alguém que gosta de aceitar estas fantochadas como verdades absolutas. Pois bem, os Super Sayians, a quem por uma questão de rigor histórico-televisivo nos referiremos como Super Guerreiros, são uma espécie de hino à capacidade transformacional do ser humano pintado a lápis. São os Vegetas, os Songokus, os Trunks que, num ápice, redobravam a sua potência físico-técnica e assim nos davam os melhores minutos desse episódio. Sempre que as circunstâncias da vida coloravam o seu cabelo, sabíamos duas coisas: vinha aí pancadaria da boa e o tipo que tivesse o cabelo loiro tinha melhores hipóteses de vencer. Hoje, muitos de nós continuam a transformar-se em super guerreiros na auto-estrada, quando alguém se atravessa na nossa faixa, ou quando a senhora da segurança social nos diz que o nosso problema terá de ser resolvido noutro balcão. Talvez, segundo a ciência, nos falte o cabelo loiro para conduzirmos essas situações a bom porto. Ou talvez nos falte noção, esse Ebola da sociedade ocidental. Bom, como saberão, a realidade tende a estragar uma boa história, e terá sido com isso em mente que Akira Toriyama, criador da saga, explicou — de forma excessivamente factual — porque é que os seus super guerreiros são loiros: porque precisava de os distinguir de uma forma que chamasse a atenção da malta. Ah, e porque isso poupava tempo a um dos seus assistentes, responsável por pintar o cabelo de Songoku de preto.

[por falar em super guerreiros:]

Todas as boas histórias na vida têm o seu momento “cheese pull”

O momento “cheese pull” é um conceito de pacotilha inventado por publicitários que se refere àquele momento nos anúncios de pizzas em que vemos alguém arrancar uma fatia e uns quantos fios de queijo se nos apresentam num suave movimento, quase erótico, segundos antes de serem devorados. É um momento que, segundo pessoas que foram à escola, estimula sentimentos irracionais no indivíduo. No caso da pizza, esse sentimento surge sob a forma de um apetite irresistível. No caso do Dragon Ball, esse sentimento traduziu-se numa vontade de enfardar todo e qualquer plot twist que nos atirassem à cara. Trinta e três personagens novas? Siga. Aquele indivíduo voltou a ressuscitar? Compreende-se. Tudo fizemos por mais um daqueles momentos cheese pull que passarei a replicar sonoramente. Dêem-me só um segundo. Não é bem isto. Afastem-se só 3 passos. Não, 3. Mais perto. Isso, está bom. Estão prontos? OK…

KAAAAAMEHAMEHAAAAAAA

Não sei quanto a vocês, mas foi por esta espécie de onomatopeia que eu vivi durante uma parte da minha infância e adolescência. Nunca mais me esqueço daqueles intervalos no recreio em que o Diogo, munido de uma Game Gear com antena TV, permitia a uma turma inteira assistir a mais um episódio, sempre na secreta esperança de sermos recompensados com um kamehameha. Dias felizes.

[em várias línguas, para ser ainda mais incrível:]

É OK gostar dos maus

Tanto que a ficção televisiva actual é um desfile de vilões, uns melhores do que outros, mas todos convencidos a persuadir-nos de que aquele corpo esquartejado e atirado ao rio teve mesmo de ser. Mas antes disso, antes mesmo de alguém se ter lembrado da piada “Diga-se o que se disser acerca do Hitler, mas”, Dragon Ball deu-nos, a nós putos, uma das personagens moralmente mais conflituosas que havíamos visto até então. Pelo menos eu, que não retirei grandes ilações do Bugs Bunny, continuo a achar o Pateta um pateta e só mais tarde percebi que aqueles desenhos animados estranhíssimos sugeridos pelo Vasco Granja eram uma invenção do Jan Svankmajer. Falamos portanto de Vegeta.

vegeta

Cá está, Vegeta, é mesmo ele, uma espécie de Tony Soprano das lutas em gravidade zero

Descobrir Vegeta naquela altura foi, transpondo para a realidade fantasista de uma criança, compreender que um miúdo às vezes podia comportar-se mal. No meu caso foi mais por ser um puto estúpido do que por terem morto os meus pais (como o Vegeta), mas nunca fui pessoa de deixar que o pormenor me detivesse. Hoje gostar de vilões é mainstream. E sim, Tony Soprano, Dexter ou Omar Little podem ter sido os maiores, mas poucos terão garantido a mesma empatia que o Vegeta.

Mais do que o melhor do mundo, as crianças são badass

O universo de Dragon Ball gira em torno de Goku mas toda a coisa permanece muito infantil. O traço da animação japonesa e as personagens construídas conservam, entre temas sérias e verdadeiras lições (não como estas), um grau de infantilidade que casa na perfeição com a agressividade exibida frequentemente por boa parte dos protagonistas. Foi absolutamente intencional e é brilhante por isso. Até uma personagem relativamente adulta como Bubu fazias birras ridículas. Este é um mundo no qual as crianças e os seus atributos de personalidade ocupam posição central, e é dessa humanidade em formação que vão nascendo alguns dos super-heróis e super-poderes. Moral da história: se chateias uma criança, és capaz de vir a ter problemas. Eu, por exemplo, só viria a perceber verdadeiramente isto depois de o meu filho nascer.

O trabalho compensa

Se Goku ou Songoku é quem é hoje, deve-o tanto ao traço de Akira Toriyama como aos ensinamentos de Max Weber. É nesta pequena personagem, mais do que em qualquer outro agente societal dos planetas Namec, Alpha ou Kanassa, que vemos representado, de modo altamente moralizador, o culto do trabalho. Goku trabalha desalmadamente para atingir os seus objectivos. Quando não trabalha é penalizado por isso. E por isso regressa à labuta, até ser premiado por isso. Perguntem a Cristiano Ronaldo ou àquela senhora do anúncio do Intermarché que abre o supermercado às 4 da madrugada e vão ver se eles não concordam.

Às vezes é complicado não reagir com um par de lambadas

Poucas séries infantis naquele tempo terão tido tanto arraial de pancada como a saga Dragon Ball. E que maravilha que era. Recordemos: o “Mortal Kombat” no Gameboy, o “Dragon Ball” na TV, imitar o “Karate Kid” na rua (fiquei com um olho negro à conta disso; obrigado António Pedro). A malta vivia para esta representação semi-figurada de violência física. E saímos todos mais ou menos uns cidadãos às direitas, não foi? Mais ou menos. A verdade é que a entrada na idade adulta testa a nossa resistência à opção pelo confronto físico. Por exemplo, olhem isto: ainda ontem estava a ler uma entrevista de um jornalista-arquiteto sobre o seu novo livro, e só não lhe enfiei um par de lambadas porque ele não estava ao pé de mim. Acham excessivo? Vi personagens animadas irem desta para melhor por muito menos.

goku

Era disto que falávamos: vezes hpuve em que Goku não teve paciência.

Demasiada bazófia pode dar mau resultado

Há uns dias o Sport Bible publicou um vídeo de guarda-redes que defende uma grande penalidade e fica tão satisfeito consigo mesmo que não se apercebe que o efeito da bola a levaria a entrar. Há muitas situações destas em “Dragon Ball”, e na vida em geral. São criadas para reforçar o efeito cómico desta história. Cerca de 67.23% das personagens em “Dragon Ball” escorregam frequentemente em cascas de bananas deixadas ao chão por eles próprios. Mais ainda se revirmos os episódios hoje, mas nem por isso menos divertido.

Envelhecer é uma arte

Querem combater essa emoção urbano-depressiva que se apodera de vocês e vos faz sentir que já estão na segunda, e fatal, metade das vossas vidas? Parafraseando um conhecido cartaz da claque do Sporting, ponham os olhos no Tartaruga Genial. Um velhote de óculos escuros, ali entre um aristocrata falido, o nosso tio alcoólico (tenho um tio que é ambas) e uma personagem que só a cabeça de um japonês poderia de facto imaginar. Tartaruga Genial é um mestre de artes marciais prestigiadíssimo, inventor do mítico kamehameha, que utiliza óculos escuros em qualquer circunstância, tira regularmente as camisas havaianas do guarda-fatos, nos vai divertindo com os seu génio sedutor, e, na voz de Ricardo Spínola, nos faz acreditar que o melhor ainda está para vir. Para quem leu até ao fim, é bem possível que chegue amanhã.

Vasco Mendonça é publicitário e co-CEO da associação recreativa Um Azar do Kralj