Havia uma piada que era repetida ao longo de “La Haine”, extraordinário filme de estreia de Mathieu Kassovitz, que recebeu a Palma da Ouro de Cannes em 1995, além de revelar Vincent Cassel, que por esses dias nem sonharia que mais tarde casaria com Monica Bellucci. A piada, que surgia em momentos chave do filme, funcionando como um meta-dispositivo de espelho da própria ação, era simplicíssima: um homem caía de um prédio muito alto e, após passar em alta velocidade dois ou três andares, pensava para si mesmo “Até aqui vai tudo bem”.
É uma piada sobre a auto-cegueira, a capacidade que temos de nos enganar a nós próprios e fingir que nada se passa quando, no fundo, sabemos que há um desastre ao virar da esquina (ou ao chegar ao chão); talvez algum dirigente de algum país se tenha lembrado dela em janeiro do ano passado, quando quem acompanhava pelo Twitter os especialistas em epidemias já adivinhava que vinha aí um ano terrível; talvez à medida que a epidemia avançou para oeste um qualquer primeiro-ministro, notando que a doença ainda não assolara o seu país, tenha pensado “Até aqui tudo bem”.
Mas se isto não aconteceu entre presidentes da república e primeiros-ministros, quase de certeza que sucedeu entre os presidentes das ligas europeias e os dirigentes da UEFA: durante semanas, perante o crescimento exponencial das infeções, o futebol continuou; até que de repente simplesmente parou e, ao longo de uns meses, ninguém pensou mais em futebol. Não é de admirar que isto haja sucedido nas primeiras semanas de confinamento a nível europeu, que coincidem com as maiores vendas de álcool alguma vez registadas na história do nosso mundo.
Tão inevitável quanto aqueles primos irritantes que aparecem para a ceia do Natal mesmo quando ninguém os convidou, o futebol voltou. A Europa começava a desconfinar e um lembrete foi discretamente entregue aos clubes e às ligas: vocês receberam uma pipa de massa de cadeias de TV e de streaming para produzirem conteúdo; ou devolvem o dinheiro ou desatam a produzir conteúdo.
Produzir conteúdo futebolístico não é fácil: é preciso juntar um número mínimo de jogadores de cada lado, jornalistas têm de se deslocar aos estádios, bilhetes têm de ser vendidos, forças de segurança contratadas para lidar com os adeptos, pessoas que nada entendem de futebol têm de ser contratadas para durante horas discutirem aos berros, todos os dias, um fenómeno que não praticaram e do qual nada entendem, enquanto batem com a mão no peito.
Como parece óbvio, produzir conteúdo futebolístico durante uma pandemia é ainda mais complicado, mas a necessidade de não devolver dinheiro já recebido torna os homens imaginativos e, de uma penada, ligas, clubes e UEFA desenharam o regresso ao futebol de modo a acabar a época de 2019/20, e fizeram-no em condições que tornaram a época 2020/21 propícia não a um filme de estreia de um francês desconhecido, mas antes a “Fellini 8 e Meio”, fita que parece ter sido criada sob o efeito de substâncias tóxicas (e provavelmente foi).
Reunidas as mais brilhantes mentes que pensam a estratégia para a produção do conteúdo chamado “futebol” um plano foi alcançado: o Europeu seria adiado, a época acabaria mais tarde mas os meses de paragem seriam recuperados colocando as equipas a jogar tudo (taças, taças da liga, campeonato, Champions, Euro League) num horário que por vezes as obrigava a jogar de dois em dois dias. Menos de 15 dias depois da época acabar (com a final da Champions) os campeonatos arrancavam.
E assim chegámos à mais estranha das épocas de futebol desde a II Grande Guerra: em Itália a Juve, ao fim de oito (ou nove ou dez, já ninguém sabe) anos a vencer o campeonato, segue em 6.º, atrás do Milan, que há uns anos parecia arrasado e é agora guiado por um homem de 37 anos de idade, Ibrahimovic. O Sassuolo é 4.º; a Atalanta está apenas a dois pontos da equipa treinada pelo homem com a barba mais bem feita de toda a história do futebol mundial, Andrea Pirlo.
Em Inglaterra a confusão é ainda maior: os dez primeiros estão separados por apenas 7 pontos, o Manchester City segue em 6.º e atrás do Aston Villa, uma equipa treinada por Ole Gunnar Solskeijer vai em segundo, os Spurs, o Leicester e o Everton vão à frente do Chelsea. Mas não é só a confusão na tabela classificativa que é sem precedentes – é a quantidade de golos e as equipas a serem goleadas: o Liverpool já perdeu por 7-2, os Spurs deram 6 ao United, o City levou 5 em casa.
Sabemos que no que toca a futebol – um desporto que inventaram mas que não sabem praticar – os ingleses são loucos, só que a loucura desta feita espalhou-se pelas seis principais ligas: em Espanha há dez pontos de distância entre o primeiro e o sexto – só que o sexto é o Barcelona e o primeiro não é o Real Madrid. O Atlético de Madrid parece o grande favorito e como se isto não fosse suficientemente alucinante dá-se o caso de Simeone andar a jogar ao ataque.
Dois argumentos demonstram inequivocamente que esta é a época mais tresloucada de que há memória, mais próxima de um episódio das “Wacky Races” do que de um tradicional derby com vencedor anunciado: em França, o PSG vai em terceiro (algo que não acontecia desde que o clube se tornou um franchise do departamento de marketing de um dos países mais cruéis do mundo, o Qatar); em Portugal, a tabela é encabeçada pelo Sporting – e já passámos o Natal.
Como é que um desporto conservador, com diferenças abissais de qualidade entre os clubes históricos e os outros, com diferenças abissais de dinheiro distribuído entre os clubes históricos e os outros, com diferenças abissais nas decisões de arbitragem que pendem para os históricos e os outros, como é que um desporto que há muito se cristalizou em torno de uma dezena de clubes de topo e que faz tudo para que essa hierarquia não se altere, se tornou nesta coisa viva, cheia de graça, emotiva, imprevisível em que os jogos parecem andar a ser ganhos pelos melhores?
As teorias abundam mas meia-dúzia delas parecem ser mais sensatas que outras. Antes de mais os principais clubes não tiveram praticamente pré-época e os seus jogadores não tiveram descanso, o que acabou por trazer vantagens ao clubes que antes só poderiam sonhar com o 6.º ou o 8.º lugar. As lesões musculares atingiram, na época de 2020/21, números históricos, incomparáveis com anos anteriores. É certo que as lesões atacam todos os clubes, porque como a época este ano começou mais tarde o intervalo entre cada jogo é menor, mas também é certo que as lesões têm atacado mais os grandes clubes, os que foram longe na Champions, os que têm mais jogos.
A pressão diminuiu: com menos tempo para recuperar entre jogos e mais jogadores lesionados, os jogadores resguardam-se mais e já não fazem tantas piscinas a ir pressionar o guarda-redes e depois voltar para o meio-campo e depois pressionar o central e depois voltar para o meio-campo – consequentemente, equipas reativas como o Leicester, os Spurs e o United, que nos últimos três anos nem ousariam sonhar com o título, têm este ano reais possibilidades de vencer, ao passo que equipas ultra-ofensivas e extremamente pressionantes, como o Liverpool e o Manchester City, estão a perder pontos como não perdiam há anos.
Há ainda o efeito dos adeptos – ou da falta deles. Não se chama Teatro dos Sonhos a Old Trafford, o estádio do Manchester United, por ser um sonho jogar lá; mas porque a jogar em casa o United podia sempre sonhar com a vitória, mesmo que estivesse a perder por 0-2 aos 90 minutos – de repente havia 7 minutos de descontos, um penalty, uma expulsão e o jogo virava.
Mas com bancadas vazias não há ninguém a puxar pelos jogadores – e isto funciona contra os clubes grandes, que têm estádios maiores e uma massa associativa maior. O fear factor, o medo dos grandes palcos que assola os jogadores médios, desapareceu; e, sem pressão do público, os árbitros sentem-se à vontade para apitar contra os grandes como nunca o fizeram. (Isto é factual, note-se.)
Ao que se junta as infeções por Covid: entre lesionados e infetados os clubes grandes dão por si, por vezes, com menos 6 ou 7 jogadores disponíveis; os que regressam da infeção nem sempre conseguem recuperar o ritmo. Muitos jogadores perderam familiares e amigos; e só cada jogador sabe o medo que sente de ser infetado porque a sua profissão o obriga a contactar sem máscara diariamente com dezenas de outros atletas a respirar ofegantemente.
O mais provável é que, com o tempo, com as vacinas, com o apuro das condições sanitárias e um maior conhecimento da doença, os grandes acabem por recuperar – se a Juve deve este ano perder o campeonato, na Alemanha o Bayern vai no segundo lugar; o Liverpool está em primeiro ex-aequo e o City, ganhando os dois jogos em falta, fica apenas a um ponto. Ainda assim é muito provável que em Itália e Espanha haja surpresas, e Portugal e França também para lá caminham (embora no caso de França seja igualmente provável que Pochettino, acabado de ingressar no PSG, o torne campeão).
Se não olharmos a clubismos, isto, do ponto de vista do adepto de futebol (e não do adepto de um clube), é ótimo, é um sonho.
A dúvida agora é se alguma vez o futebol voltará a ser o que era. Já não é o desporto do povo que foi durante quase um século; já quase não há ligação nenhuma entre os clubes e as gentes da terra em que os clubes estão sediados. Já pouco mais há do que uma desculpa para fazer marketing, produzir conteúdos, vender sapatilhas. Mas se os estádios permanecerem vazios, exatamente a que desporto estamos a assistir e porque é que, a ser assim, não vemos antes jogos de FIFA, nas consolas?
Ninguém sabe – mas há algumas conclusões que se podem tirar de tudo isto: quando todos os clubes estão quase nas mesmas condições (sem pré-época, que favorece os grandes, com as decisões dos árbitros a serem tomadas sem a pressão dos adeptos), de repente os grandes não são tão grandes e os pequenos perdem o medo aos grandes e conseguem parecer menos pequenos.
Talvez sem querer o futebol tenha descoberto uma espécie de democracia, de novo-socialismo – e se daqui para a frente houvesse um número máximo de adeptos no estádio? Não se daria o caso de o futebol se tornar mais competitivo e democrático? E se aos jogadores fosse dado o mesmo número de dias de férias de um trabalhador comum, o que limitaria a pré-época, diminuindo a vantagem dos grandes clubes? Não seria tudo mais emotivo?
No meio do pesadelo, esta loucura democrática do futebol 2020/21, esta maior redistribuição dos pontos, este regresso às velhas goleadas tem sido um bálsamo para todos aqueles que já não têm pachorra para um desporto em que ganham sempre os mesmos. Que a pandemia passe – mas que as “Wacky Races” se mantenham como matriz da bola, este é o desejo deste romântico para o futebol de 2021.