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Nuno Beato, "Os Demónios do Meu Avô" e o cinema de animação: "Se não abrirmos a porta ao streaming, nunca vamos ter indústria"

A primeira longa-metragem de um dos grandes nomes da animação portuguesa está prestes a chegar às salas. O realizador fala sobre "Os Demónios do Meu Avô", os sete anos de produção e o estado da arte.

Praticamente viver dentro de um estúdio, rodeado por técnicos de luz, animadores, designers e informáticos, “só” para ver nascer um filme. Nuno Beato (“Ema e Gui”, “Mi Vida en Tus Manos”, entre outros projetos), realizador e um dos nomes portugueses mais fortes da produção de animação, conseguiu, ao fim de sete anos, dar ao mundo a sua primeira longa-metragem, “Os Demónios do Meu Avô”. Uma das caras da Sardinha em Lata  anda de festival em festival a mostrar a história da Rosa, uma empresária cosmopolita com um burnout da cabeça aos pés, que é obrigada a voltar a terras transmontanas para revisitar o passado deixado pelo avô.

O filme balanceia entre o 3D e o stop-motion. Em Trás-Os-Montes, há textura, campo, barro, a olaria de Rosa Ramalho e os seus demónios, musicados pelos Gaiteiros de Lisboa, que assustam, mas ajudam. Um tempo que já não existe ou que está só à espera de ser outra vez acarinhado. Cheira a casa por todo o lado com pitadas de terror — o filme também esteve no MOTELX. Mas é para todas as idades. E agora, aos 46 anos, tomou o gosto de trocar a cadeira de produtor pela de realizador. “Já tenho o apoio para desenvolvimento da próxima longa-metragem. Tenho também vontade de focar a minha carreira na realização e fugir um pouco da produção. Não totalmente, mas queria-me focar nisso. Nunca tive esse tempo. Só agora é que consegui porque tive muito apoio na Sardinha em Lata. Gostava de aproveitar esse momento”, confessa.

Este é já outro dos grandes momentos da animação portuguesa, depois da estreia de “Nayola”, de José Miguel Ribeiro, sua primeira primeira-longa metragem, e da quase conquista do Óscar de Melhor Curta-Metragem de Animação na edição deste ano por parte de João Gonzalez com o seu “Ice Merchants”. O filme de Nuno Beato estreia-se esta quinta-feira em território nacional, mas o estado de graça, para o realizador lisboeta, pode durar pouco. Não é por não acreditar no talento. Também não é pelos apoios públicos, que este ano tiveram um aumento. É pela “falta de vontade política” e pelo contínuo desinteresse das televisões em não apostar em séries de animação. Para Nuno Beato, nada disto são queixas. Mas sim factos. “É um momento importante para chamar à atenção, mas não vejo vontade política de olhar para o cinema de animação de outra forma. Além de uma arte, ela pode e deve ser uma indústria. Lá fora está em crescimento e aqui andamos sempre a rumar contra a maré. Houve mudanças nestes anos todos, claro. Se não tivesse sido assim, estas longas não tinham acontecido.”

Como tantos outros animadores já ouvidos pelo Observador, a área só se faz por gosto e por obsessão. Não da que nos deita para a cama, doentes, mas da que não nos permite parar, estar com os mais próximos, aproveitar a vida de outra forma. Nuno Beato não quer parar, mas deseja que outros players do mercado entrem no país. À cabeça? As plataformas de streaming. É que um filme como “Os Demónios do Meu Avô” fez-se da forma mais profissional possível com “apenas” três milhões de euros, numa coprodução com Espanha e França. Mas basta uma Netflix entrar com 40 milhões de euros e tudo fica mais fácil. E, para o também produtor, a identidade nacional nunca se perderá. A tal do autor, do criador, da arte pela arte que deslumbra e torna este género num dos mais premiados do país. “Há espaço para tudo. Se não abrirmos um pouco essa porta, nunca vamos ter indústria. Não posso fechar essa porta. E não é preciso fechar a outra. As duas podem estar abertas como acontece noutros países. Não acho que seja um problema”, finaliza.

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[o trailer oficial do filme “Os Demónios do Meu Avô:]

Tem fé na mudança da animação ou acha que este interesse súbito é só isso mesmo: súbito?
Começa logo pela pior pergunta…

Também a fiz ao José Miguel Ribeiro [realizador de “Nayola”]…
Gostava de dizer que sim, que estamos a falar de uma verdadeira mudança, mas temo que não. Isto é, na verdade, o resultado de muitos anos que estão para trás, do meu trabalho e do de outros colegas, das escolas, de todos os profissionais. Estão a dar alguns resultados este ano. Sim, é a primeira vez que chegamos tão longe nos Óscares, mas já tivemos outros momentos históricos. Este é capaz de ser o mais forte porque foi a coincidência das longas metragens, dos 100 anos da animação portuguesa, a Laura Gonçalves, o David Doutel e o Vasco Sá, que fizeram filmes com sucesso. Foi um ano fora do normal, a Covid-19 adiou alguns projetos que só saíram agora. É um momento importante para chamar a atenção, mas não vejo vontade política de olhar para o cinema de animação de outra forma. Tudo passa por aí. Além de uma arte, ela pode e deve ser uma indústria. Lá fora está em crescimento e aqui andamos sempre a rumar contra a maré. Houve mudanças nestes anos todos, claro, não quero ser assim tão negativo. Se não tivesse sido assim, estas longas não tinham acontecido. Mas a animação está a responder bem, mostrámos que conseguimos chegar lá.

Esse seu receio é meramente político ou também financeiro? O ICA anunciou este ano o aumento os apoios.
Quando falo em “político”, falo também na parte económica. Além do ICA, do Ministério da Cultura, talvez fosse importante que o Ministério das Finanças olhasse para a animação de outra forma. É claro que temos o Pic Portugal, que traz a indústria de Hollywood para cá e isso é bom. Mas na animação propriamente dita, ainda não está a acontecer. Ou, pelo menos, de forma estratégica e continuada com crescimento. Temo que para o ano estejamos mais ou menos no mesmo lugar antes de começarmos este caminho.

Sente que está a navegar sozinho neste objetivo de criar uma indústria?
Comecei a navegar muito sozinho há alguns anos e agora, com este despertar para a animação, há autores e produtores que, felizmente, também começam a olhar para esse caminho. Seja cinema de autor ou comercial, os profissionais têm ido embora porque não têm trabalho de continuidade. Estamos constantemente a perder profissionais de qualidade, ainda por cima com a indústria lá fora a crescer. É muito apetecível vir buscá-los agora, ainda para mais quando já se pode trabalhar à distância. Estamos a dar passinhos enquanto outros países nos estão a ultrapassar a olhos vistos. Mesmo a nível da qualidade, que acho que é algo muito autêntico que temos.

"Tivemos esta semana a notícia que Portugal é o país convidado em Annecy, em França, um dos maiores festivais do género. Nunca tivemos lá um stand. A Sardinha em Lata teve lá um, Portugal nunca esteve lá representado. Olhamos para Espanha e estão lá, das várias regiões. A Polónia tem um stand enorme. Nós não estamos. Não há financiamento para um produtor ir lá vender o que produz."

Se pudesse sugerir uma alteração imediata, qual seria?
Uma aposta séria nas séries de animação com financiamento semelhante a outros países. Temos um financiamento muito reduzido e não há uma visão de que elas podem aguentar uma indústria. Depois, a distribuição, claro. Como produtor, não existem apoios para ir a mercados de animação. Esse dinheiro tem de sair dos projetos. Quando falo com outros países, esses apoios existem. Acham estranho não termos. Tivemos esta semana a notícia que Portugal é o país convidado em Annecy, em França, um dos maiores festivais do género. Nunca tivemos lá um stand. As únicas vezes foi de forma particular. A Sardinha em Lata teve lá um, Portugal nunca esteve lá representado. Olhamos para Espanha e estão lá, das várias regiões. A Polónia tem um stand enorme. Nós não estamos. Não há financiamento para um produtor ir lá vender o que produz.

E o apoio de festivais do ICA?
É para realizadores. Não é para produtores. Não quero substituir um pelo outro. Falta é o outro lado na indústria. Apostou-se muito em realizadores, veem-se resultados, mas nunca se apostou no outro lado. É preciso ter essa perspetiva económica, está tudo muito frágil. Mesmo entre as televisões, a única que investe é a RTP e só falamos da RTP2, que tem um orçamento muito limitado.

É estranho que um setor tão premiado não colha “vontade política”, como refere. Sendo também autor de séries, nunca sentiu essa vontade por parte das televisões?
O financiamento é muito limitado para sermos competitivos a nível internacional. Mesmo o financiamento do ICA, que foi aumentado por pressão nossa, continua a níveis baixos. Para curtas-metragens, o ano passado, rondava os 900 mil euros. Para séries, falamos de 600 mil euros. Não faz sentido para mim. É nada. Não se consegue fazer muito com isto. As televisões vão a reboque disto e há outras que nem sequer querem ter nada a ver com isto. Preferem comprar lá fora. Investem zero. Não há leis que nos protejam nesse sentido. Daí falar dessa vontade política. Gostava que esta mostra de animação que fizemos este ano trouxesse essa discussão. Estamos a falar de produção.

Vamos olhar para “Os Demónios do Meu Avô”. Há sempre a intenção de que a história seja o mais universal possível, mas uma mulher que volta à sua terra para se reconetar com as suas raízes, é muito português. Não é exclusivo, mas não deixa de ser uma marca nossa. O público português é sempre exigente com o que é seu, basta olhar para as reações mais negativas a “Rabo de Peixe” [Netflix]. Quando o Nuno desenvolveu esta ideia, preocupou com essa autenticidade?
Na verdade, falando mais agora como realizador, a partir do momento em que entro na história e acredito no que quero contar, o resto vem de forma natural. Ou seja, encontrar o sítio onde se passa, as referências que vou buscar. A história nasceu de uma relação cidade/campo. Depois claro que vou buscar o que me é mais próximo: o meu país. É a velha máxima: falar da nossa aldeia para que nos oiçam no mundo inteiro. Não houve aqui nada forçado. Foi tudo acontecendo. Fizemos investigação, fomos para Trás-os-Montes, porque seria interessante do ponto de vista estético, mas não só. Depois vêm os caretos, as aldeias fantásticas de pedra de xisto. Mais tarde veio a Rosa Ramalho, da zona de Barcelos, para experimentar os demónios de uma maneira muito pura e autêntica.

Após anos de formação, de procura de contratos internacionais, de um papel importante enquanto produtor e de sete anos de trabalho, Nuno Beato estreia "Os Demónios do Meu Avô"

Em animação é mais fácil “suavizar” temas mais sensíveis. Descobrir algo sobre familiares que nos deixam pode ser, no mínimo, perturbador. De onde é que vieram estes demónios?
Comecei à procura com o Possidónio [Cachapa, escritor, um dos argumentistas, com Cristina Pinheiro]  de como representar a figura do avô quando já não está vivo. Queria representar a sua presença para a Rosa. Os demónios não nasceram naturalmente, só quando começámos a caracterizar melhor este avô, que não é o avozinho querido, é uma pessoa, com os seus defeitos e feitios. Começámos a criar estes demónios na cabeça dele, depois fui em busca da imagem, porque se o avô tinha de deixar os demónios representados, tinham de estar em barro, para ter textura. As peças começaram a juntar-se e fui parar à olaria portuguesa. Daí, Barcelos. São peças muito autênticas, tive de fugir do meu desenho natural, que conseguiu sobreviver à Igreja Católica. A Rosa Ramalho lá fazia os Cristos para agradar ao público mas falamos de algo muito mais ancestral. Uma representação do medo. Foi tudo isso que me levou a este universo português. Porquê inventar o que já existe? Os japoneses fazem o mesmo.

Refiro-me aos demónios porque há um lado assustador inerente a estas criaturas. Tentou resfriar essa parte para não “assustar” públicos mais novos?
Não, não me restringi de nada. É certo que a palavra “demónios” assustou alguns produtores e distribuidores, tiveram receio de colocar a palavra noutras línguas. O filme acabou por ir para festivais de terror, como o Motelx, só que nunca olhei para os demónios como figuras demoníacas no seu único sentido. Não gosto de personagens más e boas. Isso para mim não existe. Há pessoas que fazem coisas boas e más. Os demónios são representações, têm de ter um lado simpático, mas também assustador. Essa é a essência de todas estas personagens neste filme. A lógica é essa, desde a raiz. Vou sempre trabalhar nesse sentido. Nunca foi um esforço passar o filme para outros públicos. Foi muito mais complicada a parte do burnout.

O lado mais adulto da vida da Rosa. É um tema muito atual. Se se aligeirar é perigoso.
Sim. Até a forma como falamos do tema num filme que se pretende que seja familiar. Primeiro, discuti muito isto com o Possidónio, de não fazer uma história só adulta. Temos consciência que a distribuição a nível internacional ainda está muito ligada ao público infantil. Este não é, mas é para a família. Queríamos que apanhasse várias gerações. Este tema pode ser discutido entre essas gerações. A consequência do burnout da Rosa é a falta de contacto. Se olharmos para as crianças estão também a ser alimentadas com horários excessivos, vai à natação, às explicações, etc. Toca a todos. Essa foi a lógica para não o tornar um problema exclusivo de adultos.

"Em animação não podemos fazer muitos filmes na vida, demoram muito tempo. Se não aprendemos a ouvir as opiniões dos outros, mais negativas ou positivas, não vale a pena."

O 3D surgiu de uma sugestão dos parceiros franceses. Sempre teve na cabeça dividir o filme em dois tipos de animação?
Esse é um dos desafios que mantém neste género: brincar com várias técnicas para servir as narrativas. A versão inicial era para ser em 2D, a mudança tem a mesma lógica, mesmo antes de França entrar. Ter um traço mais limpo, apático, menos textura, com contraste de cores mais suave, pastel, para depois vir algo cheio de textura, que nos leva para as cores quentes, da terra. Havia essa intenção desde o início. Quando surgiu o 3D, primeiro recuei como autor, mas depois pensei que servia a narrativa. O 3D é sempre mais frio. Disse que sim. Mesmo sabendo que há críticas nesse aspeto, mas até acho positivo porque reforça a narrativa. O facto das pessoas não se afeiçoarem logo ao filme nos primeiros 15 minutos, traz uma força muito maior quando entra o stop-motion. Esse contraste consegue-se com isto: com a falta de emoção que o 3D traz. Tenho tido um bom feedback nesse aspeto.

Engraçado dizer isso. Parece que estamos a ver dois filmes. O lado intencional  de o partir literalmente é que não sabia.
Sim, gosto dessa sensação por parte do público. Era isso que pretendia. É menos bonito, não é tão emocionante. Mas é o que dá força. Se não existisse, o stop-motion não tinha a força que tem.

É quase robótico, uma metáfora para os dias frenéticos que vivemos dentro das cidades.
Exactamente. Estou contente.

É raro um realizador dizer que fica contente com o público não gostar de partes do seu filme.
Vai ao encontro do que pretendia. Se me dissesse mal do stop-motion, já ficava a repensar nas coisas. Assim, não. Acho que acrescenta.

Algum feedback já o surpreendeu?
Há sempre. Até agora, tem sido tudo o que tínhamos pensado. Mas esta é a primeira vez que faço uma longa-metragem. Tudo acrescenta. Em animação não podemos fazer muitos filmes na vida, demoram muito tempo. Se não aprendemos a ouvir as opiniões dos outros, mais negativas ou positivas, não vale a pena.

"Os demónios são representações, têm de ter um lado simpático, mas também assustador. Essa é a essência de todas estas personagens neste filme"

Como é um dia a animar este filme?
O processo passa por muitas fases diferentes. A parte das filmagens é uma das mais intensas, com doze sets montados ao mesmo tempo, doze câmaras, doze personagens em cada cenário e seis animadores a rodarem entre esses sets. Mais equipa de reparação de marionetas, de iluminação, fotografia e construção de cenários. Coordenar todas estas equipas para conseguir que um animador não parasse, foi um puzzle muito complicado de gerir. E muito mais quando apareceu a Covid-19 pelo meio. Houve uma grande aprendizagem, a animação é muito mais difícil em longa-metragem. Coisas tão simples como uma boneca romper-se e já não dar para fazer um plano. E assim o animador ficava parado. É muito caro um animador ficar parado um dia. Há um lado emocionante, mas muito complexo e demorado. Não é só o lado bonito de fazer bonecos em miniatura, mas há um lado muito próximo do que é a indústria que não acontece nas curtas-metragens. Aí é mais tranquilo, o autor vai para o estúdio fazer os desenhos, aqui era acelerado, até por causa do orçamento. Custou 3 milhões de euros, mas é muito abaixo com a mesma lógica noutros países da Europa.

Tudo passou por si?
Estive sempre presente menos quando estava com o novo coronavírus em casa. Tinha de coordenar à distância. Gosto de meter a mão na massa em praticamente tudo. Construí, animei, sou um realizador muito presente e adoro trabalhar em equipa. Claro que estive também a coordenar, fiz direção de animação, que foi o que mais me consumiu. Havia muito pouco espaço de manobra. Um animador animava cerca de 4 segundos por dia. Não havia muito espaço para falhar, ou seja, fazer o take dois. Repetimos poucos planos. É um filme que tem aproximadamente mil planos, se repetimos uns vinte foi muito. Requer uma coordenação muito grande. Conversávamos muito com o animador antes de começar. Até porque o animador tinha de fazer várias personagens e adaptar-se.

É produtor há muitos anos, também  já realizou outros tantos projetos. O que é que aprendeu, sendo esta a sua primeira vez neste registo?
Encontrei o formato em que me sinto mais confortável e me dá mais prazer realizar. Já fiz publicidade, séries, curtas-metragens, um pouco de tudo, mas posso dizer que, para já, nunca imaginei que ia conseguir fazer uma longa-metragem. Ter essa oportunidade é excelente. Quando a comecei a fazer, tendo mesmo sido muito desgastante, gostei de todo o processo. Do tempo que há para contar a história, da coordenação e colaboração. Há muito da equipa neste filme. Dou a cara, mas tem um bocadinho de todos. Uma curta-metragem é um trabalho mais isolado, mais autoral de equipas pequenas. Eu gosto da indústria e de trazer essa diferença, esse detalhe que a curta-metragem nos traz. E da identidade.

"Gosto mais do trabalho de estúdio do que ir a festivais e ganhar prémios. Na verdade, são desafios que me coloco, contar melhor a história, desenhar melhor, dá-me prazer ultrapassar esses obstáculos. É como um atleta a tentar ultrapassar o seu próprio recorde."

Quantas pessoas trabalharam neste projeto?
Tenho dificuldade em dar um número certo, mas nas filmagens eram 30 pessoas mais uma equipa de 15 a 20 pessoas em França, por exemplo. Depois houve a construção com cerca de 40 pessoas, são várias fases diferentes a coordenar equipas. Nunca foi igual durante estes sete anos de produção.

Não teve assim histórias caricatas que guardou? Houve um funcionário da Pixar que “salvou”, com um back up de última hora, o filme “Toy Story”. Acabou despedido este ano.
Felizmente, não. Fomos tomando várias medidas para evitar essas histórias. O maior desafio foi mesmo durante a pandemia. Apanhámos o antes, o durante e o depois. Todos os dias faltava-nos alguém. Tínhamos a diretora de iluminação a gerir o foco em casa, através do telemóvel. havia sempre alguém que tinha tido um contacto. Não bastava fazer a primeira longa metragem, em stop-motion, em Portugal, mais este problema para gerir.

Essa foi a altura fundamental do filme?
Sim. Ainda adiámos um pouco as filmagens durante a pandemia porque pensávamos: isto passa. Mas depois tivemos de arrancar. Tornou todo o processo mais duro.

Teve esta ideia depois de ver um vídeo na internet. Percebeu logo que podia ser neste formato longo?
Era uma ideia que estava na gaveta. Teve a ver com uma disciplina que tive no mestrado de cinema, que fiz na Universidade Lusófona. Tinha escrito este tratamento para uma longa-metragem que era, na verdade, um exercício da disciplina. Um dia olhei para o tal exercício e tornei-o num filme. Já tinha nascido para ser uma longa-metragem.

Quanto tempo demorou, do início ao fim? O José Miguel Ribeiro demorou dez anos, mas assumiu que teve de ser assim.
Aproximadamente sete anos. Os primeiros anos foi a trabalhar o desenvolvimento. Depois veio o apoio à produção. Se falarmos só nessa fase, foram cinco anos. Com o desenvolvimento, foram sete anos. Foi um bom timing com os problemas que tivemos pelo meio. Às vezes o mais demorado é o processo de financiamento do que propriamente produzir o filme.

Sobre esse processo, o mais difícil é convencer quem invista no filme?
Qunado falamos de longas-metragens, estamos a falar de quantidades muito grandes de dinheiro onde é difícil ir a financiadores privados. Demora tempo e tem custos elevados. As montagens financeiras acontecem com os sitemas que cada país tem já organizado. Há apoios de cada país e depois os produtores tentam angariar o dinheiro. Aqui tivemos o apoio do ICA e do Pic Portugal, que foi, sem dúvida, importante. Depois ainda houve outros apoios em géneros de empresas privadas. Foram importantes mas não fora messes o bruto do orçamento. O que é preciso é encontrar outros produtores que garantam financiamento em apoio de distribuição ou apoios regionais. Juntam-se vários e depois faz-se o filme. Implicam diferentes calendários, diferentes datas de entrega. É tudo um puzzle difícil de gerir. Se vier uma Amazon Prime ou uma Netflix, que financia totalmente, aí é diferente. Chegam com o dinheiro, compram e não é preciso todo este trabalho.

Também é um caminho que irá procurar? As plataformas de streaming estão a abrir um pouco a porta a países como Portugal.
É o próximo passo. A imagem real já o está a fazer e ainda bem. Espero que a animação venha a seguir. Infelizmente, a nível internacional, houve um desinvestimento na animação mas, por vezes, são só momentos que acabam por passar. Já aconteceu noutros países. Em Espanha, houve um grande apoio a uma longa de animação, o “Klaus”, onde até estavam dois portugueses. A Netflix mete 40 milhões, não dá para comparar com o meu, que teve 3 milhões. Fica tudo mais simples. Não quero minimizar o trabalho de produção nestes casos, mas não é preciso ter plano A, B e C. Mais as preocupações inerentes a esse processo. É um caminho muito mais tranquilo para quem realiza e produz.

Não teme que a mão das plataformas agarre na identidade nacional.
Não. Há espaço para tudo. Se não abrirmos essa porta nunca vamos ter indústria. Não posso fechar essa porta. E não é preciso fechar a outra. As duas podem estar abertas como acontece noutros países. Não acho que seja um problema.

A obsessão vem quando se faz algo que se gosta. Queremos fazer o melhor que sabemos. E queremos puxar mais por nós próprios. Tentar fazer melhor. É uma competição interna.

O Nuno produtor e realizador de agora, já pensou “ainda bem que fiz esta escolha”?
Não sei. Não consigo ter essa distância para dizer isso. É um caminho muito duro, tem tirado muito de mim. Fico um pouco, às vezes, como a Rosa. Tiro muito de mim para colocar o trabalho em primeiro lugar e não dou o que devo a quem me é próximo. Talvez consiga dizê-lo daqui a uns anos.

É uma realidade transversal a várias pessoas que trabalham neste setor. É solitário e obssessivo?
Sim.

Mas a obsessão surge na procura da perfeição?
Vem quando se faz algo que se gosta. Queremos fazer o melhor que sabemos. E queremos puxar mais por nós próprios. Tentar fazer melhor. É uma competição interna. Gosto mais do trabalho de estúdio do que ir a festivais e ganhar prémios. Na verdade, são desafios que me coloco, contar melhor a história, desenhar melhor, dá-me prazer ultrapassar esses obstáculos. É como um atleta a tentar ultrapassar o seu próprio recorde.

Lembra-se quando se apercebeu que queria seguir este caminho?
Foram vários momentos. O difícil nunca foi esse lado, sempre me deu prazer. Foi importante para me manter na realização, a produção veio como consequência. Comecei como animador, era uma espécie de magia ver as personagens ganharem vida. Dava-me prazer. Talvez muito mais o início do que agora. Ficou o bichinho e colocava isso à frente. Houve momentos economicamente difíceis, pensei duas vezes se continuava a trabalhar na área, ou, pelo menos, se continuava a trabalhar em Portugal. Mas sou um apaixonado, sim.

"Um animador animava cerca de 4 segundos por dia. Não havia muito espaço para falhar, ou seja, fazer o take dois. Repetimos poucos planos. É um filme que tem aproximadamente mil planos"

Estudou em Lisboa.
Sim. Fiz o 12.º ano na Escola António Arroio e comecei logo a trabalhar em animação. Fiz um curso de três meses na produtora Animais e comecei a trabalhar. Fui fazendo vários cursos e workshops, o mestrado só chegou mais tarde quando já dava aulas. A minha formação veio muito do trabalho e dos vários workshops. Tudo o que aparecia, inscrevia-me. Foi assim que fui evoluindo.

Esteve alguma vez preparado para emigrar?
Pelo menos duas vezes. Concorri uma vez à Arman, no início da minha carreira, onde fui selecionado para uma entrevista. Mandava-se um VHS com o portfólio. A segunda entrevista era em Inglaterra, mas não tinha condições económicas. Cancelei, não fui. A seguir, já tinha o meu filho, que tem hoje 15 anos, ele era muito pequeno, estava com vontade de não ir, só que a situação em Portugal estava complicada. Concorri como animador em França, passei na primeira fase, mas à segunda já não fui escolhido. Fiquei contente, podia ficar com o meu filho.

O que é que se segue?
Já tenho o apoio para desenvolvimento para uma longa-metragem. Está muito no princípio porque ando na rota dos festivais. Mas já estou a trabalhar nela. Tenho também vontade de focar a minha carreira na realização e fugir um pouco da produção. Não totalmente, mas queria-me focar nisso. Nunca tive esse tempo. Só agora é que consegui porque tive muito apoio na Sardinha em Lata. Gostava de aproveitar esse momento. De dar mais.

E trabalhar outros demónios.
Claro, claro.

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