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O Ano do Macaco de Patti Smith, entre a depressão americana e a luz de Lisboa

Fernando Pessoa, Trump e os 70 anos da mulher que mudou o rock'n'roll. O Observador faz a pré-publicação de "O Ano do Macaco", o terceiro livro de memórias de Patti Smith que chega a Portugal dia 7.

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Primeiro surgiu “Apenas Miúdos”, em 2010, o livro em que Patti Smith recorda o início do percurso que a transformou num dos nomes maiores da cultura popular, ícone do rock’n’roll e influência artística inegável. Cinco anos depois, “M Train” recupera essa mesma história viajando até 1975, ano da edição do primeiro álbum que editou, “Horses”. “O Ano do Macaco” surge agora na edição portuguesa pela Quetzal, um ano após a publicação original nos EUA. 

É o terceiro livro de memórias de Patti Smith. “O Ano do Macaco” é uma espécie de diário de viagem de 2016, o ano em que a artista completou o 70º aniversário. As viagens, as companhias, as angústias, as perdas e as conquistas, tudo faz parte destas páginas que o Observador revela agora, nesta pré-publicação. São três excertos, de três momentos específicos. Uma passagem por Lisboa, a América depois das eleições que deram a presidência a Donald Trump e o eterno Sam Sheppard passam por estas linhas.

A capa de "O Ano do Macaco". na edição da Quetzal (à venda a 7 de agosto)

Intervalo

Nada se pode resolver, de facto. Querer resolver tudo é uma ilusão. Há momentos, quando a mente parece emancipada, em que pode surgir um brilho espontâneo, mas não passa de mera epifania.

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Estas eram as palavras que eu cineticamente transportava, como se a maldita tabuleta me tivesse seguido até Nova Iorque. Endireitei-me na cadeira com um sobressalto. Suponho que devo ter cochilado durante breves instantes, enquanto trabalhava no computador, pois uma sequência de vogais erráticas estava acrescentada a uma frase inacabada.

— A prova é a base de tudo. Só a prova pode demonstrar a verdade matemática.

— Se não considerarmos o detetive-poeta — disse eu, mal-humorada.

Levantei-me para ir à casa de banho e a primeira coisa que fiz foi limpar o assento da sanita, pois é sempre possível descobrir impressões digitais. Provas, digo para mim mesma enquanto lavo as mãos. Euclides sabia-o. E também Gauss e Galileu. Provas, digo eu, agora em voz alta, olhando para tudo em meu redor. Num impulso de decisão, abro a janela, desfaço a cama e prendo o lençol de cima à parede, para poder apreciar a sua brancura. Tiro de uma caixa onde guardo coisas antigas uma caneta de desenho, dessas que os artistas usavam no século xx. Depois de ter ficado imóvel durante vários minutos, desenhei na superfície da folha as curvas e sinuosidades da estratosfera.

Nos dias seguintes, anotações de vária ordem sucederam-se na folha. Frases dispersas em grego, expressões algébricas, fitas de Möbius entrelaçadas, e a ferrugem na espiral da mola de roupa a deixar no lençol sinais de uma equação indecifrável.

— Nada se pode resolver — diz a placa, de forma reprovadora.

— Nada está resolvido — diz a justiça, em coro com os pratos da sua balança.

Prolongo a minha estada na cidade de Pessoa, embora não seja fácil dizer o que ando bem a fazer. Lisboa é a cidade ideal para nos deixarmos levar pelo tempo. Manhãs em cafés a escrevinhar umas coisas em mais um caderno, parecendo que cada página em branco oferece uma fuga, ao receber a fluidez constante da caneta.

Seguindo as suas vozes, entro na biblioteca de um enorme salão que possui exemplares de grande porte, preservados ao longo dos tempos, e cujas gravuras estão legendadas a lápis como num caderno de recortes. O navio a chegar ao porto de Brandisi quando Virgílio exalou o último suspiro. Navios fantasmagóricos presos no meio da água gelada do oceano Ártico, cobertos por véus de gelo que brilham como diamantes africanos. Ossos flutuantes de gigantes pré-históricos que outrora foram orgulhosos icebergues. Naufrágios de embarcações com emigrantes e os rostos azulados das crianças e as colmeias que são cada vez menos e uma girafa morta.

Nada se pode resolver, murmura uma nuvem de pó, quando volto a pôr o grosso volume na estante igualmente cheia de pó. Nem uma única coisa resolvida, cosmicamente ou comicamente. Sinto a tabuleta a vir no meu encalço. Retalio e vou eu no encalço dela, embora tenha pena de a ver perder o vigor, como se já não fosse a mesma.

— Nada se pode resolver — repete a tabuleta.

— Nada está resolvido — diz, em sintonia com ela, a natureza.

Procuro consolo nas nuvens a mudar constantemente de forma — um peixe, um colibri, um rapaz com visor e respirador, imagens de tardes que já passaram.

Um aquecimento global sem precedentes, a extinção progressiva dos recifes de corais e a plataforma glaciar do Ártico a decompor-se são as coisas que mais me apavoram nos dias de hoje. E vivo também o pavor de ver o Sandy a entrar e a sair do estado de consciência, em luta constante contra sucessivas infeções bacterianas enquanto vai traçando planos de acordo com a possibilidade do cenário apocalíptico que ele vê poder adivinhar-se a partir do hotel Heart o’ the City, no filme Matrix. Posso ouvi-lo a pensar, posso ouvir as paredes a respirar. Talvez seja preciso fazer uma pausa, uma espécie de intervalo, mudar de cenário, de modo a permitir que uma outra coisa venha à superfície. Qualquer coisa negligenciável, ligeira e totalmente inesperada.

Há algum tempo, durante um intervalo de Tristão e Isolda no La Scala, ao procurar as instalações sanitárias, entrei sem querer numa sala que não estava fechada à chave e continha o guarda-roupa que Maria Callas usou nas suas atuações. Ali, à minha frente, estava o distinto vestido preto de quando fez de Medeia no filme realizado por Pier Paolo Pasolini. Também lá estavam a sua túnica, o diadema com o véu, vários colares de pesadas contas de âmbar e a casula bordada, e igualmente pesada, que ela foi obrigada a usar enquanto corria pelo deserto debaixo de um calor tão intenso que o próprio Pasolini, ao que consta, dirigiu as filmagens em calções de banho. A sua Medeia, ainda que interpretada pela soprano de mais gabarito em todo o mundo, não cantava, o que eu e o Sandy considerávamos uma coisa primorosamente irreverente, acrescentando uma nota deliciosa à sua magnífica interpretação. Tomei nas mãos os colares de âmbar e passei os dedos de alto a baixo da sua túnica, essa que a transformara na bruxa da Cólquida. O sinal sonoro fez-se ouvir e eu apressei-me a voltar ao meu lugar, não tendo ninguém que ia comigo reparado em nada. Não faziam ideia de que, no tempo de um intervalo, eu tocara o vestuário sagrado de Medeia, cujos filamentos continham resíduos do suor da grande Callas e as impressões digitais invisíveis de Pasolini.

Patti Smith ao vivo no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, em 2015

© Hugo Amaral/Observador

— Nada se pode resolver, mas eu estou de partida dê por onde der — digo a mim própria enquanto arrumo a pequena mala de viagem.

As mesmas coisas de sempre: seis t-shirts da Electric Lady, seis conjuntos de roupa interior, seis meias com abelhas desenhadas, dois cadernos, remédios herbáticos para a tosse, a máquina fotográfica, as últimas caixas de negativos já um pouco fora do prazo para a máquina polaroide e um livro, Collected Poems, de Allen Ginsberg, uma forma de saudar o seu aniversário dali a uns dias. A sua poesia acompanhar-me-á numa pequena tournée de leituras que vou fazer nas cidades de Varsóvia, Lucerna e Zurique, com tempo de sobra durante o dia para me embrenhar nas suas ruas, umas já familiares e outras nem tanto, na perspetiva de descobertas inesperadas. Uma errância despreocupada, no fundo, uma pequena pausa face ao clamor ruidoso do mundo. As ruas que Robert Walser pisou. O túmulo de James Joyce tão perto, ao cimo de um pequeno monte. O fato de feltro de Joseph Beuys singelamente pendurado numa galeria pouco frequentada de Oslo.

Nas minhas viagens, tenho o hábito de desligar das notícias, preferindo reler os poemas de Allen Ginsberg num único volume que é uma espécie de extensa jukebox hidrogénica e contém todos os cambiantes da sua voz. Ele não era pessoa que pudesse ignorar o que neste momento se passa em termos políticos e tenho a certeza de que sairia à liça, elevando a sua voz sempre que lhe fosse possível para encorajar toda a gente a ser vigilante, a mobilizar-se e a ir votar, e sem se importar de ser levado para uma esquadra num carro da polícia por ter demonstrado de forma pacífica a sua desobediência.

Ao passar cada fronteira, sinto que os processos do movimento assumem a qualidade de qualquer coisa de extraterrestre. As crianças parecem-me personagens de desenhos animados, bonecos de papel, com pequenos casacos vestidos, a arrastar as suas malas de viagem cheias de autocolantes demonstrativos das suas muitas viagens. Apetece-me ir atrás delas, mas continuo a descida até Lisboa, a cidade das noites calcetadas, como estava previsto.

Aí, encontro-me com os arquivistas da Casa Fernando Pessoa, onde sou convidada a ficar o tempo que queira na encantadora biblioteca pessoal do poeta. Dão-me luvas brancas, o que me permite examinar alguns dos seus livros preferidos. Há romances policiais, os poemas reunidos de William Blake e Walt Whitman, e edições preciosas de Flores do Mal, de Iluminações e dos contos de fadas de Oscar Wilde. Os seus livros parecem fornecer mais indicadores para conhecer a figura de Pessoa do que a sua escrita, dada a circunstância de ele ter inventado vários heterónimos, que escreviam como se fossem entidades autónomas. Mas os livros, esses, foram comprados e amados pelo próprio Pessoa. Este pequeno mundo, composto por vários autores, intrigou-me. O escritor cria um conjunto de personagens independentes umas das outras, com vida própria e assinando obras individuais, à volta de setenta e cinco, nada mais nada menos, cada um com o seu chapéu e o seu casaco. Assim, como poderemos saber quem foi o verdadeiro Pessoa? A resposta encontra-se aqui à minha frente, nos livros que leu e em toda esta biblioteca tão especial e tão bem preservada.

As calçadas empedradas conduzem-me ao que é agora a minha casa provisória. O meu quarto é um misto encantador de simplicidade e pormenores fora do comum. Há uma cama de madeira trabalhada e uma pequena secretária com um pisa-papéis de vidro branco e um abre-cartas com manchas na lâmina.

A gravação do poema Salutation to Walt Whitman, para o arquivo oral da Casa Fernando Pessoa, escrito por um desses heterónimos, Álvaro de Campos, foi para mim um momento de grande exaltação. Curiosamente, eu tinha lido na noite anterior o poema que Ginsberg dedicou a Whitman, e os bibliotecários à guarda de quem estão os livros de Pessoa ficaram encantados com a coincidência. O tempo passou num instante e esqueço-me de perguntar se ali existe algum daqueles chapéus de abas largas que Pessoa costumava usar, que presumo estejam guardados nas caixas originais, talvez num armário meio escondido e entre os sobretudos com que saía à noite para os seus furtivos passeios. Ao voltar para o hotel, passo pela estátua de bronze que o representa, sentindo que transmite uma certa ideia de movimento.

Prolongo a minha estada na cidade de Pessoa, embora não seja fácil dizer o que ando bem a fazer. Lisboa é a cidade ideal para nos deixarmos levar pelo tempo. Manhãs em cafés a escrevinhar umas coisas em mais um caderno, parecendo que cada página em branco oferece uma fuga, ao receber a fluidez constante da caneta. Durmo bem, sonho pouco, limito-me a existir apenas num intervalo que ninguém interrompe. Num passeio ao crepúsculo, a música ecoa pela velha cidade, evocando em mim a voz harmoniosa do meu pai a trautear baixinho Lisbon Antigua, precisamente, uma das suas melodias favoritas. Lembro-me de, em criança, lhe ter perguntado o que queria dizer o título. Ele sorriu e disse que era um segredo.

E agora, amigos meus, repicam os sinos ao início da noite. Candeeiros iluminam as ruas calcetadas. No meio de um silêncio que lembra os quadros de Edward Hopper, faço o caminho que Pessoa fez tantas vezes. Um escritor capaz de criar personalidades diferentes, com maneiras distintas de ver o mundo, e tantos diários, assinados por tantos nomes. Caminhando pelas calçadas de paralelepípedos, passo por uma janela e vejo um senhor todo bem-posto ao balcão de um bar, ligeiramente debruçado, a escrever qualquer coisa num caderno. Está de sobretudo castanho e chapéu de feltro. Tenho o impulso de querer entrar, mas reparo que não existe porta. Fico a observá-lo pelo vidro e o rosto que se me depara é ao mesmo tempo familiar e estranho.

— Ele é como qualquer de nós.

A tabuleta, a minha clarividente némesis, regressara, mas desta vez, estando há algum tempo a viver uma solidão que impusera a mim mesma, até fiquei contente.

— Achas mesmo isso? — perguntei.

— Absolutamente — respondeu ela, em tom de certo modo afetado.

— Sabes — murmurei —, tinhas razão. Sempre vou a Ayers Rock.

— As solas dos teus sapatos já lá estão.

Não perguntei à tabuleta como estavam a correr as coisas ao meu marido na parcela do universo que lhe fora atribuída. Não lhe perguntei sobre o que acontecera ao Sandy. Nem ao Sam. São coisas tão proibidas como rezar aos anjos. Sei isso muito bem. Não podemos ficar a pensar no destino de uma vida, de duas vidas. Em vez disso, devemos fazer os possíveis por aumentar a esperança no coração de cada homem.

Patti Smith fotografada em 1975 por Robert Mapplethorpe

As calçadas empedradas conduzem-me ao que é agora a minha casa provisória. O meu quarto é um misto encantador de simplicidade e pormenores fora do comum. Há uma cama de madeira trabalhada e uma pequena secretária com um pisa-papéis de vidro branco e um abre-cartas com manchas na lâmina. O papel para escrever é escasso, não dando para mais do que uma carta, mas é um pergaminho com desenhos muito elegantes. Quanto ao chão da casa de banho, é todo ele feito com pequenos ladrilhos azuis e brancos que brilham à luz, a fazer lembrar o pavimento dos banhos romanos.

Sento-me à secretária e tiro do meu saco a velha máquina Polaroid Land, para verificar os foles. O livro do Allen está aberto em A Supermarket in California. Vejo-o sentado no chão, de pernas cruzadas, junto ao gira-discos, a cantar em coro com Ma Rainey. Ou a declamar Milton, Blake ou a letra de “Eleanor Rigby”. Ou a pôr pachos de água fria na testa do meu filho, quando ele teve uma enxaqueca. O Allen a entoar cânticos, a dançar, a uivar. O Allen já no seu sono de morte, com um retrato de Walt Whitman acima dele e o seu companheiro de toda a vida, Peter Orlovsky, ajoelhado ao seu lado, envolvendo-o de pétalas brancas.

Estou cansada, mas contente por ter desvendado, de certo modo, o segredo da cidade. Na gaveta da mesa de cabeceira há um pequeno guia da vila de Sabrosa, a terra de Fernão de Magalhães. Tenho uma memória vaga de uma vez ter desenhado na mesa da cozinha um barco a dar a volta ao mundo. Isto enquanto o meu pai preparava café e assobiava Lisbon Antigua. Na minha mente, quase consigo ouvir as notas de música em conjunto com o som da cafeteira. Sabrosa, murmurei. Alguém me vem apertar o cinto de segurança. A cama de madeira encostada a um canto do quarto parece já tão longe. Foi um intervalo, sem consequências de maior, mas delicado e saboroso.

A santa sé

Era o dia de finados. As ruas secundárias tinham enfeites de caveiras fabricadas com pasta de açúcar e senti pairar no ar uma loucura bolorenta. Os maus pressentimentos acerca de uma eleição no Ano do Macaco ganhavam força em mim. Não é caso para preocupação, dizia toda a gente, a maioria vai decidir bem. Não é bem assim, retorquia eu, quem decide são os que estão quietos e calados e não vão votar. E quem pode censurá-los, quando uma eleição destas, tão corrompida quanto dispendiosa, se baseia num monte de mentiras contadas às pessoas? São milhões de dólares atirados para dentro de um buraco coberto de plasma, gastos na exibição perversa de incontáveis programas de propaganda política. Estes são tempos de verdadeira escuridão. Porque todo esse dinheiro podia e devia ser utilizado para retirar das escolas tudo o que contém chumbo, para dar apoio aos sem-abrigo, para despoluir os rios. Em vez disso, um dos candidatos atira despudoradamente dinheiro à rua em gastos e mais gastos, enquanto o outro acumula em seu nome uma grande quantidade de prédios devolutos, o que não deixa de ser também uma forma gritante de imoralidade. Contudo, apesar das muitas dúvidas, fui votar.

Os dias foram decorrendo e não era possível desfazer o que tinha sido feito. Passado o Dia de Ação de Graças e com o Natal a aproximar-se, vagueei pelas ruas de mais comércio ao ritmo de um murmúrio constante na minha cabeça: Não me ofereçam nada. Não me ofereçam nada. Era apenas eu a arcar com a amarga culpa da derrota. Como era possível termos batido tão fundo?

Na noite das eleições, fui com um grupo de amigos ver essa telenovela horrível que dá pelo nome de eleições americanas a um sítio com um ecrã de grandes dimensões. Um por um, à medida que a noite avançava, todos foram tendo consciência do que o novo dia ia trazer. O fanfarrão urrou. E o silêncio tomou conta de todos. Vinte e quatro por cento da população tinham eleito o pior de nós para representar os outros setenta e seis por cento. Um grande viva à apatia americana, um grande viva à sapiência distorcida do Colégio Eleitoral!

Incapaz de dormir, fui até Hell’s Kitchen. Alguns bares já estavam abertos, ou talvez nunca tenham chegado a fechar, e ninguém varrera o chão ou limpara as mesas para tudo estar em ordem quando o dia começasse. Talvez uma tentativa de fingir que um novo dia não estava a chegar ou de negar a evidência daquilo que esse dia trazia. Pedi um shot de vodca e um copo de água. Tive de tirar o gelo dos copos e pô-lo no prato dos pretzels já bafientos. O rádio estava ligado, sintonizado numa estação ao meu gosto, que transmitia naquele momento Billie Holiday a cantar “Strange Fruit”. A sua voz, de um sofrimento lacónico, produziu em mim arrepios ao mesmo tempo de admiração e vergonha. Imaginei-a sentada ao balcão de um bar, com uma gardénia no cabelo e de chihuahua ao colo. Imaginei-a de blusa e saia branca, a dormir vestida e amarrotando a roupa nos bancos de um camião da tournée, por lhe ter sido impedida a entrada num hotel sulista de brancos, apesar do facto de ser Billie Holiday, apesar do facto de ser simplesmente um ser humano.

A ventoinha no teto estava coberta de pó. Fiquei a vê-la girar, ou melhor, os meus olhos deixaram-se levar pelo movimento giratório. Devo ter dormitado por momentos, talvez embalada pelos acordes da parte final de uma outra canção que passava na rádio. Nova Iorque, eu adoro-te, mas estás a dar cabo de mim. Montes cheios de pinheiros, os ovos num cesto logo pela manhã.

— Mais uma bebida?

— Não sou de beber muito — comentei. — Apenas um café.

— Deseja leite?

A empregada era bonita, mas pendia-lhe do lábio um pedaço de pele. Não consegui deixar de ficar a olhar para ele. Na minha mente, esse pedaço de pele ficava cada vez maior e mais pesado, depois desprendia-se, caindo no caldo de uma panela imaginária a cozinhar ao lume, e alargava-se como se fosse uma piscina a borbulhar de onde emergia uma imitação da vida. Abanei a cabeça. As coisas que se passam nas nossas cabeças podem ser tão aleatórias. Estava na hora de me ir embora, mas a verdade é que, meia hora depois, ainda ali me encontrava. Não tinha fome nem sede, mas pensei pedir qualquer coisa para justificar estar sentada no mesmo sítio há mais de uma hora. Contudo, ninguém parecia incomodar-se com isso, talvez porque já houvesse uma paralisia pós-eleitoral a tomar conta de todos nós.

Os dias foram decorrendo e não era possível desfazer o que tinha sido feito. Passado o Dia de Ação de Graças e com o Natal a aproximar-se, vagueei pelas ruas de mais comércio ao ritmo de um murmúrio constante na minha cabeça: Não me ofereçam nada. Não me ofereçam nada. Era apenas eu a arcar com a amarga culpa da derrota. Como era possível termos batido tão fundo? Mais uma vez, a ruidosa manipulação dos desequilíbrios sociais resultara. Noite feliz, sem dúvida, noite feliz. Metralhadoras embrulhadas em papel de alumínio, empilhadas à volta de árvores artificiais decoradas com pequenos bezerros de ouro, alvos erguidos nos jardins das traseiras cobertos de neve.

"Quase sem dar por isso, passei do meu septuagésimo aniversário para a noite de fim de ano atolada em confetes. Saudei as minhas botas tão viajadas, desejando-lhes um bom ano novo"

Patti Smith

Estávamos em pleno inverno, mas não parecia, a avaliar pela temperatura do ar. Ao atravessar Houston Street, reparei que o Menino Jesus estava ausente da cena que representa a Natividade, montada em frente da igreja de St. Anthony. E também não havia pássaros pousados nos ombros de São Francisco. Donzelas de touca branca, iguais a figurinhas de gesso, preparavam uma festa já despida de significado. Nunca me senti com tanta fome, nunca me senti tão velha. Subi as escadas até ao meu quarto a cambalear, murmurando: Ainda outro dia tinha sete anos, em breve vou fazer setenta. Sentia-me verdadeiramente cansada. Ainda outro dia tinha sete anos, repeti, sentada na ponta da cama, ainda de casaco vestido.

A nossa raiva pacífica dá-nos asas, dá-nos a possibilidade de fazer com que as engrenagens funcionem ao contrário, unificando o tempo. Fazemos a reparação de um relógio, otimizando uma aptidão para refazer todo o caminho de regresso ao século xiv, digamos, marcado pelo aparecimento das ovelhas de Giotto. Repicam sinos renascentistas enquanto um cortejo de enlutados acompanha o caixão que contém o corpo de Rafael, voltando depois a ouvir-se no momento em que o último golpe do escopro revela o corpo esbranquiçado de Jesus Cristo.

Cada um segue o seu percurso, tal como eu segui o meu, assim me encontrando então num canto sombrio da oficina dos irmãos van Eyck a cheirar a ovo e a óleo de linhaça. Aí vi um repuxo pintado de uma maneira tão extraordinária que induzia a sede. Fui testemunha da precisão do mais novo, quando os pelos negros do pincel tocaram na ferida fresca do Cordeiro Sagrado. Saí dali depressa, para que não houvesse colisão temporal entre nós e segui viagem, sobrevoando os campos verdes indicadores de prosperidade rural e pontuados por cruzes evocativas dos que pereceram na Grande Guerra, até um século xx que ia desbravando o seu caminho. Não eram sonhos de interpretação difícil, mas delírios provenientes do contacto direto com um tempo, vivido. Nessas deambulações pelo tempo, testemunhei coisas maravilhosas até ao momento em que, já bastante cansada, sobrevoei uma pequena rua ladeada por pequenas casas com paredes de tijolo, acabando por escolher o telhado de uma que tinha uma claraboia empoeirada. O fecho estava destravado. Tirei a touca, sacudindo ao mesmo tempo algum pó de mármore. Peço desculpa, disse eu, olhando na direção de um punhado de estrelas, o tempo urge e não há um único coelho que seja capaz de acompanhar a sua velocidade. Peço desculpa, voltei a dizer enquanto descia a escada de mão, perfeitamente consciente de onde tinha estado.

Trinta de dezembro. Quase sem dar por isso, passei do meu septuagésimo aniversário para a noite de fim de ano atolada em confetes. Saudei as minhas botas tão viajadas, desejando-lhes um bom ano novo, tal como fizera precisamente na passagem do ano anterior. Um ano decorrera desde que chegara de carro ao Dream Motel, onde houve coisas que estiveram longe de bater certo e uma tabuleta previu que havia de me deslocar a Uluru. Um ano se passou desde o dia em que Sandy Pearlman ainda vivia. Um ano desde que o Sam tinha ainda capacidade de preparar uma chávena de café e escrever com a sua própria mão.

Uma espécie de epílogo

Primeiro morreu Muhammed Ali, depois o Sandy, Fidel Castro, a princesa Leia e a mãe dela. Aconteceram várias coisas impensáveis, geradoras de coisas terríveis, e depois veio a esperança de um futuro, mas essa esperança esfumou-se e aqui estamos agora, a ver mais uma vez seres humanos como protagonistas infelizes de um filme que vai passando em ecrãs gigantes e transforma a privação num espetáculo de massas. Injustiças de cortar o coração são os novos factos da vida. O Ano do Macaco. A morte do último rinoceronte-branco. A devastação que atingiu Porto Rico. O massacre de estudantes. As palavras pejorativas e as ações humilhantes contra os nossos imigrantes. Os órfãos da Faixa de Gaza. O que é feito do sonho de uma existência que parecia tão ao nosso alcance? O que é feito do escritor estoico que tinha na palma da mão tatuada uma miniatura do mundo? Que irá acontecer-lhe?

Sam Shepard não ia fisicamente subir os degraus de uma pirâmide maia ou trepar pelas escarpas de uma montanha sagrada. Em vez disso, ia descobrir uma maneira de entrar suavemente no sono eterno, tal como fazem as crianças da cidade sem vida quando espalham folhas de papel vegetal sobre os corpos dos mortos para lhes facilitar o caminho até ao paraíso.

Eram as perguntas que a mim própria fazia nas várias deslocações ao Kentucky. Quando escrevi pela primeira vez estas palavras, ainda não o sabia e podia pôr o filme a andar para a frente e para trás quando me apetecesse, mas a verdade é que os ponteiros do tempo giram a uma velocidade que é impossível acompanhar e geram coisas que não podemos alterar. Costumávamos rir, o Sam e eu, quando falávamos sobre esta discrepância: escrevemos sobre um tempo determinado, mas esse tempo desaparece logo e, na tentativa de ir à procura do que o tempo novo traz, escrevemos outro livro, tal como Pollock, perdendo a ligação a um quadro e começando outro, para depois recusar ambos e, num ataque de fúria, destruir paredes de vidro ao pontapé. Mas em relação ao Sam, uma coisa posso eu dizer: da última vez que o vi, o seu manuscrito estava praticamente pronto. Permanecia ali, em cima da mesa da cozinha, como um pequeno monólito, símbolo de uma vastidão que não é possível conter e com o brilho de uma luz trémula que a morte não extingue. Porquê os pássaros?, escreveu o Sam. Porquê os pássaros?, acompanhava-o a irmã. A canção que cantavam vinha de uma coluna de som portátil parcialmente enterrada na areia. Porquê os pássaros?, gritava o velho homem. E eles bateram as asas, reuniram-se em bando e depois saíram da formação, acabando por desaparecer no horizonte. O que iria acontecer ao escritor? A resposta está agora contida num epílogo que não era para ser epílogo e que acabou por sê-lo, porque não há outra solução senão levantar a cabeça e prosseguir caminho, uma vez que Hermes, de asas a sair-lhe dos tornozelos, voa na nossa direção. O que fazer agora, para além de dizer a verdade? Sam Shepard não ia fisicamente subir os degraus de uma pirâmide maia ou trepar pelas escarpas de uma montanha sagrada. Em vez disso, ia descobrir uma maneira de entrar suavemente no sono eterno, tal como fazem as crianças da cidade sem vida quando espalham folhas de papel vegetal sobre os corpos dos mortos para lhes facilitar o caminho até ao paraíso. Chega-se lá mais depressa quando se usa papel vegetal para descer qualquer montanha, como qualquer criança sabe. E há ainda outras coisas que eu sei. O Sam morreu. O meu irmão morreu. A minha mãe morreu. O meu pai morreu. O meu marido morreu. O meu gato morreu. E o meu cão, que morreu em 1957, persiste em continuar morto. Ainda assim, continuo convencida de que está para acontecer qualquer coisa maravilhosa na minha vida. Talvez já amanhã. Um amanhã a seguir-se a toda uma sequência de amanhãs. Mas voltando ao momento em que tinha ficado, e que já fazia parte do passado, como não podia deixar de ser, ali estava eu sozinha e com um saco de papel na mão em Virginia Beach. O saco de papel castanho que continha um exemplar um pouco deteriorado de A Parte dos Críticos. Fiquei ali a tentar assimilar a verdade absurda das últimas palavras do Ernest. Vá lá, rapariga, disse eu para o espelho, que se tinha descolado da caixa de pó de arroz que anda sempre comigo e que, de tanto uso, tem o aro dourado à sua volta já a perder a cor. Vá lá, disse eu para um dos olhos e depois para o outro, que não parava quieto, concentra-te no essencial. Tens de ter consciência plena de todos os pormenores da situação.

"O que é feito do sonho de uma existência que parecia tão ao nosso alcance? O que é feito do escritor estoico que tinha na palma da mão tatuada uma miniatura do mundo? Que irá acontecer-lhe?"

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O espelho escorregou-me da mão e, no momento em que bateu no chão, ouvi a voz do Sam a dizer: Estilhaços de amor, Patti, estilhaços de amor. Depois caminhei na direção oposta, utilizando a zona mais extensa do passeio. Ninguém sabe o que vai acontecer, ia eu pensando, não é possível pormo-nos a adivinhar. Mas, pergunto eu mais uma vez, e se houvesse uma maneira de espreitar por um telescópio e vermos o futuro lá ao fundo? E se ali, naquele passeio, estivesse um placard com o mapa das ruas da cidade a indicar o caminho durante 2017, até ao primeiro dia do Ano do Cão? Como seria o nosso modo de ver as coisas? Que voltas e reviravoltas espetaculares e horríveis se dariam em função da corda dourada com que nos sufocam, apertando-nos a garganta conforme as conveniências, do alfa ao ómega? Alguns golpes profundos na vida de cada um, milhões de golpes profundos na vida de todos. A morte do escritor a transfiguração de um amigo os raios que emanam dos olhos de Jesus Cristo as chamas a envolver o Sul da Califórnia a demolição do Silverdome e homens caindo como peças de xadrez esculpidas no peso de séculos e séculos de leviandade e o massacre de fiéis e as armas as armas as armas as armas. E logo ali, numa tarde de inverno, naquela zona do mapa onde as três grandes crenças puderam andar em liberdade pelos mercados, onde David foi conquistador, onde Jesus Cristo caminhou, onde se deu a ascensão de Maomé. Agora, envergonhados, verão os peregrinos a ser enxotados e as tropas a preparar-se para o combate, sem que se saiba quem vai atirar a primeira pedra. A capital politicamente neutra, designada como nova fortaleza capitalista. As oliveiras murcharão? As montanhas oscilarão? As crianças do futuro virão a ser capazes de sentir a solidariedade fraterna? Continuei a caminhar, com a sensação de que o passeio não tinha princípio nem fim. Sabia que devia haver por ali em qualquer lado um telescópio de bronze montado num bloco de pedra e estava determinada a encontrá-lo, embora talvez seja mais correto dizer que não era exatamente um telescópio, mas uma daquelas lentes panorâmicas de encurtar distâncias que estão no passeio junto à praia e focam ao longe. Do género das que necessitam de moedas para funcionar e permitem ver os cavalos selvagens em ilhas fora do nosso alcance visual como, por exemplo, Cumberland Island e Tangier Island. Eu tinha os bolsos cheios de moedas, pelo que me preparei para ali ficar algum tempo, assestando o óculo com todo o cuidado, primeiro na direção de um cargueiro, depois de uma estrela e a seguir inclinando-o para ver toda a Terra. Era mesmo possível ver o mundo como uma esfera. Eu estava no espaço e via tudo à volta, como se o deus das ciências me tivesse deixado espreitar pelas suas lentes. A Terra em rotação, a revelar-se aos meus olhos em alta definição. Lá em baixo linhas e veios, alguns dos quais rios. E também conseguia ver os ventos carregando ares malignos, as profundezas frias do mar e o branqueamento do vasto recife de corais de Queensland e as raias, pesadas pela calcificação, a afundar-se e organismos a flutuar sem vida e o movimento de potros selvagens correndo pelos pântanos e invadindo as ilhas junto à costa da Geórgia e o que resta dos garanhões à volta dos cemitérios no Dakota do Norte e uma manada de veados cor de açafrão e as grandes dunas do Lago Michigan com os nomes que lhes foram dados pelos índios. Vi a solidez do centro a desfazer-se e, tal como o Ernest tinha descrito, uma pequena ilha do tamanho do umbigo de uma laranja a lutar para sobreviver e uma tartaruga enorme e uma raposa veloz e muitas espingardas a enferrujar no meio das ervas.

No rádio, que tinha um fino tecido castanho a envolvê-lo, ao estilo dos anos quarenta, passava "Papa Was a Rolling Stone". E eu pensei, quando ele se baixou para me afastar o cabelo dos olhos, que o problema dos sonhos é que nós acabamos sempre por acordar.

Havia velhos subindo pelas rochas e deitados ao sol de mãos entrelaçadas. Havia rapazitos a pisar de propósito as flores selvagens. E vi também os dias mais antigos. Havia sinos a badalar e grinaldas lançadas e mulheres andando em círculos e havia abelhas a executar a dança do seu ciclo vital e havia ventos fortes e luas dilatadas e pirâmides desmoronando-se e coiotes aos guinchos e as ondas do mar crescendo e tudo tinha o cheiro do fim e do princípio da liberdade. E vi os amigos já falecidos e o meu marido e o meu irmão. Vi aqueles que contam como verdadeiros pais ascenderem aos montes distantes e vi a minha mãe com os filhos que perdera, de novo devolvida à sua integridade. E vi-me a mim mesma com o Sam na cozinha da sua casa no Kentucky e falávamos sobre a escrita. Ao fim e ao cabo, dizia ele, tudo pode funcionar como forragem para uma história, o que significa, portanto, que todos nós somos também forragem. Eu estava sentada numa cadeira de costas direitas de madeira. Ele estava de pé, olhando para baixo na minha direção, como fazia sempre. No rádio, que tinha um fino tecido castanho a envolvê-lo, ao estilo dos anos quarenta, passava “Papa Was a Rolling Stone”. E eu pensei, quando ele se baixou para me afastar o cabelo dos olhos, que o problema dos sonhos é que nós acabamos sempre por acordar.

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