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Escondido do bulício da mais movimentada avenida da capital, o Parque Mayer é hoje um espaço de silêncio. O teatro ABC foi abaixo, o Variedades está entaipado, quase tudo o resto desapareceu. A bilheteira já só vende entradas para um espaço, o Maria Vitória, que ainda exibe peças de revista à portuguesa. Ao centro ergue-se uma das peças mais importantes deste puzzle outrora fundamental da vida cultural lisboeta. O cineteatro Capitólio, agora pintado de branco e resgatado da degradação em que passou as últimas duas décadas, reabre ao público esta sexta-feira.

Por dois dias não se vai ouvir silêncio no Parque Mayer. O primeiro evento que o renovado Capitólio recebe é o festival Vodafone Mexefest. Pela sala principal, pelo terraço e pelos bastidores vão passar nomes como Mike El Nite, Talib Kweli e Mayra Andrade. Depois, parece não haver planos. O futuro ainda é incerto para o espaço cultural que, em 1931, se instalou num dos primeiros edifícios modernistas de Lisboa.

“O Capitólio sempre foi visto como uma referência no Parque Mayer”, explica Jorge Trigo, coautor de três volumes sobre a História daquele local, encaixado nas traseiras do palácio homónimo, virado à Avenida da Liberdade. O contraste para os edifícios circundantes é evidente: linhas direitas, grandes janelas para o exterior, uma torre de vidro na fachada. Lá dentro encontravam-se, originalmente, outros elementos que tornavam o Capitólio único. Além de um enorme vão em betão armado, pioneiro à época, “foi o primeiro cineteatro em Lisboa que teve uma passadeira rolante”, acrescenta o especialista em teatro.

O desenho do arquiteto Luís Cristino da Silva fez com que o Capitólio se destacasse na paisagem da capital, mas foi o que se passou lá dentro que o tornou num dos marcos culturais da Lisboa do século XX. “As estruturas iniciais davam oportunidade de ter várias valências”, diz Jorge Trigo ao Observador. Logo em 1931 se estrearam ali peças de teatro, operetas, zarzuelas, espetáculos de music hall e filmes, projetados tanto na sala principal como no terraço.

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Uma sala histórica e polivalente

É essa polivalência que agora vai poder regressar. Ao projeto original de Cristino da Silva foram feitos vários acrescentos ao longo dos anos, como um primeiro balcão que quase duplicou a capacidade da sala e um telhado para cobrir o terraço. Na reabilitação, da autoria do arquiteto Souza Oliveira, esses elementos desapareceram. “Vai voltar a ser polivalente. Vai ser uma mais-valia muito importante”, comenta Jorge Trigo, que fez parte do júri do concurso que escolheu o projeto de renovação do cineteatro.

Quem não partilha deste entusiasmo é Vasco Morgado Júnior. O presidente da Junta de Freguesia de Santo António, que é onde se localiza o Parque Mayer, tem pedigree no assunto. Neto de Laura Alves e do empresário teatral Vasco Morgado, filho de Vera Mónica e do (também) empresário (e também) Vasco Morgado, o autarca está (isso… também) ligado ao mundo do espetáculo. “Com dois dias e meio estava num camarim aqui dentro porque a minha mãe vaio fazer uma substituição na peça Inspetor Precisa-se, em que entrava a minha avó”, diz o presidente da junta.

É essa história pessoal que o leva a criticar a forma como o Capitólio foi reabilitado. “Nada disto é funcional. Se isto é para ser uma sala de espetáculos, não entendo”, desabafa Vasco Morgado, que diz desconhecer qual a estratégia para o espaço. O Capitólio tem atualmente 400 lugares sentados e, quando a plateia é recolhida, pode receber cerca de 1.500 espectadores em pé. “Estou muito contente por isto estar tudo bonitinho, mas não está funcional”, repete o autarca, elencando um conjunto de questões. “Que tipo de programação queremos? E depois do Mexefest? Quem é que vai agarrar isto?”

O Observador procurou saber junto da Câmara Municipal de Lisboa, dona do espaço, como será o futuro do Capitólio, mas não obteve respostas. Tudo o que foi possível saber é que este é um dossier que está diretamente nas mãos de Fernando Medina, o presidente.

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Um mundo à parte, também na decadência

“Estamos a falar dum mundo à parte, onde um povo heterogéneo se agita e vive e onde todos se conhecem uns aos outros. Com um simples bilhete de acesso comprado à noite, o cidadão pacato, disposto a esquecer a monotonia ou as preocupações de um dia de trabalho, conquista direito à cidadania desse grande mundo onde tudo é diferente, das pessoas às coisas, ao próprio ar que se respira, onde a realidade se confunde com a fantasia, o drama com o riso, a fortuna com a pobreza.”

Longe vão os tempos em que o Parque Mayer correspondia à descrição que Jorge Trigo e Luciano Reis fazem nos livros que editaram em 2005. “Houve uma época em que havia espetáculos nos quatro teatros. Havia público para todos”, diz Jorge Trigo ao Observador, recordando que por aquele espaço “passou tudo”. Luta livre, boxe, patinagem, grandes concertos. “Até a companhia de Amélia Rey Colaço, quando o Teatro Nacional D. Maria II ardeu, ocupou lá um espaço.”

Foi em 1967, quase no fim de uma década em que o teatro de revista tinha voltado ao Capitólio pela mão de atores como Raul Solnado e Carlos Coelho. Essa nunca foi, no entanto, a principal vocação daquele sítio. “Houve um período bastante grande em que se dedicou quase exclusivamente ao cinema”, recorda Trigo. Em 1934, por exemplo, foram exibidos na mesma noite os filmes A Severa e A Canção de Lisboa, o que a imprensa descreveu como um acontecimento sensacional. Nesse ano foi ali que estreou Alvorada, de Murnau. E, mais tarde, já durante a década de 1950, foi naquela ampla sala que se projetaram películas como Stromboli, de Rossellini (com Ingrid Bergman) ou O Grande Assalto, com Robert Mitchum.

Depois do 25 de Abril, o Capitólio voltou a inovar. Em 1976, durante semanas a fio, com cinco ou seis sessões diárias quase sempre esgotadas, o mítico filme pornográfico “Garganta Funda” marcou a receção dos lisboetas à liberdade e determinou uma mudança de rumo na programação da sala. “A Senhora Sabe da Poda?”, “China Girl”, “O Diabo em Miss Jones” e “No Cetim, Já Experimentou?” foram alguns dos muitos filmes eróticos e pornográficos de que, a partir de então, o Capitólio passou a ser casa.

“Há um risco de isto se tornar um elefante branco”

“No fundo, ali sempre foi um mundo dentro da cidade de Lisboa”, resume Jorge Trigo. O Parque Mayer era um espaço de relativa liberdade num país amordaçado pelo Estado Novo. Havia restaurantes e cafés onde o público podia conviver diretamente com os artistas — Vasco Santana, Ivone Silva, Eugénio Salvador, Beatriz Costa, Milú e tantos outros –, havia barracas de farturas e de diversões várias, havia cabarets e casas de passe, chegou até a haver um pequeno lago com barquinhos. Mas, acima de tudo, havia um teatro de crítica social e política que tentava escapar às apertadas malhas da Censura. “O censor ia assistir aos ensaios, ia às estreias, mas depois os próprios atores davam a volta ao texto”, ri-se Trigo.

Tudo começou a mudar a partir de 1974. Já com liberdade para escrever o que queriam, muitos autores “entraram no exagero e as pessoas começaram a não gostar”, resume o escritor. Lentamente, um a um, os teatros entraram em decadência e foram fechando. O Capitólio foi classificado como Imóvel de Interesse Público em 1983 e, a meio dos anos 90, fechou. “O Parque Mayer só não morreu de vez porque o Hélder Freire Costa manteve o Maria Vitória sempre aberto”, diz Jorge Trigo.

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O próximo teatro a ser reabilitado é o Variedades, disse Fernando Medina a meio de outubro. Mas Vasco Morgado, o presidente da junta, tem um projeto muito mais ambicioso para o Parque. O plano prevê a construção das escolas de música, dança, teatro e cinema do Conservatório, um museu do brinquedo, a instalação Museu do Teatro, do Teatro Infantil de Lisboa, e ainda lojas e restaurantes. “É um bocadinho romântico? É. Mas este é um país de romantismo”, atira o autarca. Até agora, Vasco Morgado não tem visto abertura da Câmara Municipal de Lisboa e do Estado para levar isto avante, mas garante que não desiste. “Eu vou levar este projeto à Europa”, afirma, convencido de que “há um risco real de isto se tornar um elefante branco”.

Também Jorge Trigo alerta para as potenciais nuvens no horizonte do Capitólio. “É evidente que o Parque Mayer do século XXI não será o de 1922. Vai depender muito das propostas que existirem, da programação que para ali for”, diz. Crê, no entanto, que a reabertura do Capitólio vai ajudar a catapultar aquela zona. “Não é fácil. A câmara está cheia de boa vontade, e ainda bem, mas vai ter muitas dificuldades.”