Catarina Vasconcelos é formada em Belas-Artes e começou a sua carreira na realização em 2014, com a curta “Metáfora ou a Tristeza virada do Avesso”, uma curta documental em volta da morte da mãe. O tema volta a estar presentes em “A Metamorfose dos Pássaros”, a pirmeira longa metragem da realizadora portuguesa. É um filme sobre uma família. É um filme sobre a perda. É um filme sobre a memória. É um filme sobre a transformação. É um filme sobre tudo isto, mas também sobre como encontramos nas histórias motivos para nos suplantarmos, como a ficção pode ser um exercício, uma ferramenta, um apoio para nos relacionarmos com a morte e com a natureza das coisas.
O ponto de partida é a relação dos avós, Beatriz e Henrique. Ele é marinheiro, passa longas temporadas no mar. Ela fica em terra, a tomar conta dos seis filhos, com a ajuda de uma empregada, Zulmira. A construção de uma educação, de um ideal, começa logo nesta ausência do pai, com a mãe/avó a assumir um papel primordial na educação das crianças, entre a religião e a natureza. A educação, a ausência do pai e a austeridade dos tempos permitem também a Catarina Vasconcelos falar do Estado Novo com um sentido de descoberta: falar de uma família – a sua – através do olhar de quem não viveu esse período.
A morte súbita de Beatriz é a âncora desta “A Metamorfose dos Pássaros”: como isso transforma os que ficam. E, mais à frente no filme, como a morte da mãe da realizadora muda a vida do seu pai, a vida de Catarina Vasconcelos e a relação entre os dois. O espectador é transportado para o meio nesta narrativa familiar, de sentimentos, afetos, perda e transformação, de um ponto particular para o universal.
Contudo, o filme não tem pretensões de responder a pergunta alguma. A redenção que encontramos em “A Metamorfose dos Pássaros” tem a ver com o uso que a realizadora faz da imaginação, para ultrapassar o que precisa ser ultrapassado. Além disso, e numa dimensão muito mais estética mas nem por isso simples, “A Metamorfose dos Pássaros” é um filme muito, mas mesmo muito bonito.
O filme estreou-se na Berlinale em 2020, onde venceu o Prémio FIPRESCI, dias antes do mundo fechar. Por causa da pandemia, a estreia em sala tem vindo a ser adiada, mas não a passagem por outras mostras internacionais – é o filme português com mais presenças em festivais. Estivemos à conversa com Catarina Vasconcelos, precisamente na semana em que, finalmente, “A Metamorfose dos Pássaros” pode ser visto por todos.
[o trailer de “A Metamorfose dos Pássaros”:]
Alguma vez pensou em como esta experiência tão pessoal poderia passar para o espectador?
Nunca pensei que esta história fosse extraordinária. Sempre achei – e continuo a achar – que é uma história muito banal, passar pela perda de uma mãe, de um pai ou de alguém muito próximo. Quem ainda não passou por isso vai passar, de certeza. Nesse sentido, a ideia de perda e de morte é universal, nunca achei que fosse uma coisa que me pertencesse, que fosse do domínio desta família. Posso é dizer que nunca me preocupei com o alcance que este filme pudesse ter ou não ter. Preocupei-me em garantir que não ficasse hermeticamente fechado nesta família, que pudesse dialogar com outras famílias. Além disso, existiam coisas que não conhecia, que não me foram contadas ou de que ninguém que se lembra. Tinha uma série de espaços em branco e tive de criar, de inventar. Isso deu-me mais liberdade para me ligar a coisas maiores, no sentido de não serem só sobre a minha família, mas elementos que a transcendiam.
Apesar da sua naturalidade, nunca temos ferramentas para lidar com a perda. E partilhá-la não é comum nem fácil. Nunca sentiu que estava a dar algo de si a quem não conhece?
Fala-se muito pouco da forma como lidamos com a morte, com a perda. Mas não sinto que ao partilhar esta experiência ela se torne menos minha. Pelo contrário, o que aconteceu com a partilha deste filme e a feitura deste filme, foi de repente ter olhares exteriores que se ligavam ao meu ou que acrescentavam coisas ao meu olhar. Tal como o filme é feito de partilha, tive muitas pessoas que começaram a fazer o mesmo comigo, partindo das suas histórias. O que isso acrescentou à minha história foi muito mais do que poderia imaginar. Quando a minha mãe morreu, senti-me a pessoa mais sozinha do mundo: era muito nova, tinha 17 anos. Não conhecia meninos ou adolescentes à minha volta cujos pais tivessem morrido. Portanto, achava que aquilo só estava a acontecer-me a mim. E durante muito tempo não tinha colegas cujos pais tivessem morrido. Isso fazia com que a experiência fosse muito solitária. Depois cresci e percebi que não tinha a ver com a idade em que isto me tinha acontecido. Não falamos disto, ponto, não há espaço para os mortos ou para falar de quanto isto nos custa. Achamos que são assuntos que são mórbidos, que não devem ocupar a nossa vida. Se pudermos falar um pouco mais destes assuntos, talvez eles se tornem menos assustadores e mais naturais. É o que eles são, toda a gente diz que vamos morrer, mas depois ninguém fala verdadeiramente disto. Sinto que tenho muito para aprender sobre a experiência da morte e do luto. Nunca se resolve, é irresolúvel. A morte não se resolve, não há uma resposta certa, não há solução.
Muita da memória que não viveu, como a infância do seu pai, é representada no filme como um local mágico. Mas a infância não é um local que, quando a imaginamos, revela-se melhor do que realmente foi?
Percebi que para explicar quem era a Beatriz, tinha de explicar o que a Beatriz tinha criado, que tinha criado uma família. Tornou-se importante pensar o que seria a infância e esse período em que não contactamos com a ideia da morte. Ou se contactamos, é de uma forma que não nos é próxima. Pelo menos nesta família especifica, há famílias e pessoas que passaram por mortes muito súbitas, quando eram muito jovens. Nunca tinha pensado nisso assim, mas sim, se calhar a infância é o momento do maravilhamento e que de alguma forma o fim não existe, estamos só a crescer. O pior que nos podem dizer é que temos de ir para a cama, naquela idade é uma tragédia. Mas a ideia de fim é uma ideia que não ocupa ou não deveria ocupar… isto pensando só de um ponto de vista ocidental, privilegiado. Pensando na minha família, creio que houve um momento em que a ideia de fim não existia. E a família que é retratada em “A Metamorfose dos Pássaros” segue o ideal do que pode ser a infância antes do contacto com a morte: esse mundo do maravilhamento, de todas as possibilidades, de conseguirmos até o impossível. Que acaba por cair por terra quando há uma perda. Mas diria que sim, houve o criar desse universo quase mágico, onde tudo possível.
Falou no crescer. Há muita verticalidade no filme: as plantas, os pássaros, o crescer. De onde vem isso?
Se há coisas que vejo na minha avó, nos meus tios e no meu pai, é esta ideia de educação rígida, austera, muito vertical. Imagino que também vem de uma mulher que está a criar uma família em terra, que está mais sozinha, tem apoio – desta outra mulher, que é a Zulmira, que habita a casa –, mas toda a ideia de família do Estado Novo assentava no facto também de existir uma cabeça de casal que tinha de ser um homem. E a Beatriz passa muito tempo sozinha. Há qualquer coisa de muito interessante nisto dela passar os valores, da educação, e em paralelo viver a religião, uma relação com a natureza, com as plantas, as árvores, com as coisas que crescem no sentido dos céus. Este sentido de verticalidade está relacionada com a educação, a ideia da fé e depois, para mim, muito mais relacionado com a ideia de natureza. Não é por acaso que tudo o que é inexplicável, dos mortos aos ovnis, colocamos no céu. Temos uma relação com o céu… estamos sempre neste movimento ascendente, para tentar perceber o que se passa connosco em terra. Tentamos saber coisas sobre nós, mas metemos tudo lá em cima, onde não podemos tocar em nada. A ideia de verticalidade vem da minha avó, mas vem destas camadas, deste pensar, de como pensamos a vida, a nossa existência aqui.
De onde vem essa obsessão com a natureza e de ser essencial para a experiência que envolve o espectador?
Não sou crente, não tenho fé como tinha a minha avó. A minha avó era uma mulher muito crente, acreditava em Deus e em tudo o que isso implica. A minha mãe também não era crente, tinha uma relação com Deus que tem muito mais a ver… há um excerto em “O Guardador de Rebanhos” em que o Alberto Caeiro diz que não crê em Deus, mas se Deus forem as plantas, o outono, os rios, o mar, então eu acredito em Deus [Catarina Vasconcelos está citar de memória mas também a tirar conclusões sobre o poema]. A minha mãe dizia-me isso com alguma regularidade. E sou muito mais herdeira deste pensamento quase animista da relação com o mundo natural, do que herdeira de um pensamento do sagrado, de Deus. Mas também vi, nas coisas que a minha avó deixou, a sua relação com a natureza. O que nos une às três é uma ligação com a natureza. A natureza acaba por aparecer neste filme como uma espécie de consolo. A natureza traz uma coisa extraordinária, para pessoas não crentes, que é a seguir ao inverno, vem a primavera. A seguir a tudo morrer, há uma estação extraordinária em que tudo nasce. E para não crentes, pessoas que não acreditam em vida depois da morte, isto é incrível, olhar para a natureza e perceber que dá esta oportunidade cíclica da vida, de se transformar, ser uma outra coisa. Quando olhamos para a natureza, acabamos por ter mais esperança nisto tudo.
As cartas que lê no filme, é verdadeira? E as plantas cresceram, de facto, durante aquele período em que a casa que vemos na história esteve sem ninguém?
Era maravilhoso se eu dissesse que as plantas realmente cresceram em casa deles. Mas não, não cresceram. Mas era um desejo que eu tinha. E o cinema, a ficção, permitem isso: e se isto pudesse ser? Acredito que o cinema não pode trazer justiça à vida, mas pode trazer-nos possibilidades e pode trazer-nos formas de a repensar. E de alterarmos a nossa história, mesmo que seja no plano da ficção. Podemos recontar a nossa história e recontar como quisermos, com toda essa esperança e toda essa… diria com um olhar mais distante. Por isso conseguimos torná-la outra coisa.
E as cartas não foram lidas.
Não, foram queimadas. O “off” que aparece nas cartas no filme foi escrito por mim. Houve uma altura em que fiquei muito frustrada com isso, porque achava que era fundamental para o filme ler as cartas. “A Metamorfose dos Pássaros” é um resultado do saber e do não saber, da possibilidade de imaginar, as cartas são imaginadas, sou eu a pensar o que eles deveriam dizer um ao outro. O que gostavam que dissessem. Sei que foram trocadas dezenas de fotografias, era um elemento que eu tinha. Posso imaginar como seria para o meu avô, ver os filhos a crescer, quando tinha missões de dois anos no mar. Comecei a pensar sobre isso e, outra vez, este não é um caso único na história de Portugal, de pessoas em missão, no mar, também li muitos testemunhos, livros referentes a este período. Como eram estas relações à distância, como era criar uma família à distância.
As verdadeiras relações à distância. Agora estamos mal habituados?
Sim, podemos fazer isto que fazemos neste momento [conversar via Zoom, através da internet]. Na altura nem podiam falar.
A estreia do filme foi adiada por causa da pandemia. Foi apresentado na Berlinale [onde venceu o prémio FIPRESCI], no início de 2020, entretanto passou por vários festivais, recebeu vários prémios. Até que ponto lhe pareceu um processo interminável? Ou estaremos aqui a dramatizar sem necessidade?
É uma boa definição, essa do “processo interminável”. Agora é ir buscar toda essa energia porque vamos estrear um filme que já é de 2020… mas é estranho, o filme tem estado a ter uma vida muito bonita, extraordinária e parece que finalmente vai ter a estreia que já deveria ter tido. É uma maratona, o tempo e a energia necessários para o lançamento do filme, é preciso voltar a ir buscar o entusiasmo. É como os atores, que têm de ir buscar esta coisa da primeira vez. Eu não sou atriz, mas esta ideia de ser um processo interminável… Mas estou muito contente, é num momento extraordinário, podemos ter as salas a 100%, há uma vacinação mais completa, ao mesmo tempo isto parece ser o momento certo.
As fotos e os posters do filme parecem ter uma preocupação de não passar uma imagem uniforme do filme. Foi sempre essa a ideia?
Não venho do cinema, não estudei cinema, mas Belas-Artes. Esta relação com a imagem, de como a imagem é criada, esta obsessão – muito consciente – com as imagens, aconteceu não só pelo meu background de Belas-Artes, mas porque o diretor de fotografia, o Paulo Menezes, também estudou pintura. O Paulo dizia “Isto está um bocado Silva Porto” e eu dizia “Não está nada, está mais Caravaggio”. Às tantas tínhamos conversas surreais, era muito engraçado. Toda a equipa trabalhava para isto, a assistente de realização, a Mariana [Veloso] também vem das Belas-Artes. Toda a equipa trabalhava num contexto quase de atelier. As imagens foram criadas com esse sentido. Em relação à campanha, temos o cartaz oficial do filme – o Jacinto, mais novo, com estas folhas – mas havia a curiosidade de explorar estas imagens que tínhamos criado e que fossem representativas dos vários sentidos. Quando colocámos as imagens umas ao lado das outras, foi quase como se tivéssemos montado um corpo humano, através dos vários sentidos. Ao passar o filme para a rua queríamos que houvesse uma noção de mistério, que as pessoas pensassem “o que será que vou ver neste filme?”.
Ao longo do filme pensei muito em Derek Jarman e Peter Greenaway, ambos muito influenciados pelas Belas-Artes: as cores, a sua composição… foi influenciada por alguém em específico?
Acho que fui influenciado por vários realizadores e realizadores. É interessante falarmos do Peter Greenaway e do Derek Jarman. Vivi em Londres durante alguns anos e são dois realizadores com um universo visual absolutamente estonteante. Vi todos os filmes de ambos, tenho a certeza que me influenciaram profundamente. O Derek Jarman, com o “Caravaggio”, sem dúvida, mas também o seu último filme, que é de uma beleza, de uma emotividade… bom, não sei como o descrever, é um filme que me comove muito.
O “Blue”?
Sim. É incrível e de uma ousadia… e de uma exposição dele próprio, das suas questões. Sem dúvida, acho que desde sempre, desde que vi, quando era muito nova, um filme da Agnès Varda, aquilo influenciou-me muito, no sentido da sinceridade e honestidade das nossas coisas perante a câmara. Acho que sou influenciada por muitas coisas, sem as quais não poderia fazer o que faço. E digo com o maior dos reconhecimentos a todas as realizadores e realizadores que vi e que tenho visto. Em Portugal temos realizadores e realizadores extraordinários, não posso deixar de pensar que o “Trás-os-Montes”, do António Reis e da Margarida Cordeiro, me influenciou imenso. Ou mesmo em Espanha, o Víctor Erice. Há toda esta relação com a imagem que é quase pictórica. E há outros realizadores que não aparecem no filme, mas que para mim, pela sua liberdade foram muito importantes, como o Stan Brakhage, que trabalha muito com a experimentação do filme. Não sei até que ponto essa parte vem mais de Belas-Artes, de pensar de como podemos jogar com a própria imagem estando dentro dela.