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The Remains, Bobby Hebb, The Cyrkle e The Ronettes já tinham atuado. Os relógios marcavam 21h27 quando os quatro membros dos Beatles subiram ao palco. John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr interpretaram 11 temas. A atuação durou cerca de meia hora. E foi isto.

A 29 de agosto de 1966, há meio século, os fab four deram o derradeiro concerto na carreira da banda — última excetuando a aparição no telhado do edifício da editora Apple, em 1969, em Londres, que marcou o fim da rodagem daquele que seria o seu último filme, Let It Be, e a gravação daquela que seria a última peça da discografia, embora a penúltima a ser registada, lançada após Abbey Road.

O concerto de Candlestick Park, em São Francisco, na Califórnia, era o ponto final da terceira digressão pelos Estados Unidos. Desta vez, os Beatles tinham cumprido 15 compromissos. Duas prestações em Toronto, no Canadá, outras duas em Nova Iorque e as restantes em diversos locais do país, de norte a sul, de este a oeste, de Chicago a Los Angeles, sob a pressão de horários apertados e esgotantes. O ânimo da banda em relação às longas e intensas digressões estava em baixa. Ninguém quis fazer o anúncio oficial de que os Beatles jamais voltariam a pisar um palco, mas havia um acordo tácito entre os quatro músicos de que aquela vida na estrada tinha chegado ao fim.

Um momento histórico sem anúncio formal

Todos sentiram que se tratava de um momento histórico nas suas carreiras. A caminho do recinto onde costumava jogar a equipa de baseball San Francisco Giants, Paul McCartney perguntou a Tony Barrow, assessor de imprensa dos Beatles, se transportava o gravador de cassetes portátil que costumava levar para os concertos. Barrow respondeu afirmativamente. Enquanto a banda tocava, o colaborador dos Beatles colocar-se-ia no meio do relvado, entre o palco e as bancadas, com um braço levantado a segurar um microfone. O som é pobre, mas o evento ficou registado, tal como McCartney desejava.

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[perto de 28 minutos. E é tudo. Com um som péssimo]

https://www.youtube.com/watch?v=hZqmEnjvS2M

Sobre os amplificadores, os elementos dos Beatles colocaram as máquinas fotográficas que levaram para o estádio. Nos intervalos entre cada tema, fotografaram-se, de costas para o público, captando imagens que hoje em dia seriam qualificadas como selfies. Ringo Starr descia do estrado em que estava instalada a bateria para poder ficar nas fotografias. Nenhuma decisão formal tinha sido tomada, mas todos pareciam estar conscientes de que o circo tinha de parar. E que, muito provavelmente, como acabou por suceder, iria parar naquele dia.

Música? Qual música?

O que levou os Beatles a abdicarem das aparições ao vivo quando eram a banda de maior sucesso do mundo? Em primeiro lugar, a música. “Houve ocasiões em que as nossas vozes estavam tão más que nem conseguíamos sequer cantar. E ninguém dava por nada porque havia imenso ruído”, explicou John Lennon, citado no livro The Beatles Anthology, que conta, em discurso direto, a história da banda por quem melhor a conheceu, isto é, os próprios Beatles.

A gritaria das fãs abafava o som dos instrumentos e das vozes que chegavam através das colunas. Lennon, McCartney, Harrison e Starr nem conseguiam ouvir o que tocavam e sentiam que estavam a tocar cada vez pior, pormenor tanto mais frustrante quando sabiam que os alicerces da banda tinham sido construídos através de inúmeras atuações ao vivo. Uma prática que lhes permitia estarem sempre bem oleados e ensaiados, ao ponto de conseguirem gravar um álbum inteiro em menos de 24 horas, como sucedeu com o disco de estreia, Please Please Me.

Vêm aí novidades dos Beatles

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O título é “Eight Days a Week, The Touring Years” e o filme é realizado por Ron Howard. Trata-se de um documentário, com estreia internacional marcada para 15 de setembro, que retrata as digressões realizadas pela banda de Liverpool entre 1962 e 29 de agosto de 1966, data do concerto realizado em Candlestick Park. Howard terá tido acesso a imagens inéditas que mostram os bastidores dos espetáculos, a vida de hotel em hotel e o contacto com os seguidores da banda. Mas esta não é a única novidade prevista para os próximos meses. O disco “The Beatles at the Hollywood Bowl”, gravado ao vivo em 1964 e 1965, vai ter uma edição remasterizada que chegará às lojas físicas e digitais a 9 de setembro.

“Lennon Report”, que estará acessível a partir de 7 de outubro, é outro filme e conta a história do assassinato de John Lennon, em Nova Iorque, a 8 de dezembro de 1980. Centra-se nos depoimentos da equipa médica que tentou salvar o músico. Médicos, enfermeiros, agentes policiais e outros pacientes do Roosevelt Hospital, onde Lennon foi declarado morto. O crime já foi tema de “Capítulo 27” (2008), filme centrado na figura de Mark Chapman, autor do homicídio, interpretada por Jared Leto.

“Ninguém escutava a música durante os concertos”, confirma Ringo Starr no mesmo livro. No princípio, os Beatles achavam alguma graça. Era uma novidade, o arranque da beatlemania. Depois, o barulho ensurdecedor que chegava da audiência transformou-se num pesadelo. “Estávamos a tocar realmente mal e a razão pela qual eu me juntei aos Beatles foi porque eles eram a melhor banda de Liverpool”. Para o baterista, aquilo que era mais importante estava claro: “nós éramos músicos, cantores, compositores e performers” e “o meu plano era o de continuar a tocar boa música”. Posto isto, “as digressões tinham de acabar em breve porque já não estavam a funcionar”.

O contraste entre a progressiva sofisticação do trabalho de estúdio e a forma como a banda soava ao vivo começou a ser demasiado evidente. No início de agosto de 1966, os Beatles tinham lançado um dos grandes álbuns do seu percurso. Revolver testemunhava a banda a explorar as possibilidades de um trabalho mais demorado, a experimentar caminhos novos. O disco acabou por marcar o início de uma nova era, aquela que, a breve prazo, com a banda dedicada à composição e ao apuramento dos arranjos, iria abrir as portas à edição de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que, para muitos apreciadores, é o álbum que assinala o auge da carreira dos fab four e o melhor disco de sempre na história da música pop/rock. O tema que fecha Revolver, “Tomorrow Never Knows”, é um dos exemplos mais fortes, com a utilização de loops e de efeitos destinados a alterar a voz de John Lennon.

[“Tomorrow Never Knows”, uma das pérolas de Revolver]

Nada neste processo de evolução ajudava à qualidade dos concertos. Começava a ser impossível, para os quatro músicos, reproduzirem ao vivo aquilo que tinham registado durante o tempo passado em estúdio. E, se o conseguissem fazer, quem iria escutar? Não será por acaso que o alinhamento adotado para as atuações agendadas durante a última digressão, incluindo aquela que os Beatles cumpriram em Candlestick Park, não inclui qualquer tema de Revolver. Pelo contrário, foi uma mistura de “clássicos” do repertório e de algumas canções mais recentes que os Beatles interpretaram no concerto de “despedida”: “Rock And Roll Music”, “She’s A Woman”, “If I Needed Someone”, “Day Tripper”, “Baby’s In Black”, “I Feel Fine”, “Yesterday”, “I Wanna Be Your Man”, “Nowhere Man”, “Paperback Writer” e “Long Tall Sally”. E, ainda assim, executados de forma medíocre, de acordo com os membros da banda.

Quartos de hotel ou celas?

Ninguém poderá dizer se canções imortais como “Strawberry Fields Forever” e “Penny Lane”, gravadas e lançadas em single alguns meses depois do concerto de Candlestick Park, teriam sido editadas tal como as conhecemos caso os Beatles tivessem prosseguido mergulhados numa agenda dura de concertos. Mas, se a vontade de aperfeiçoar a música foi decisiva para travar o rodopio, não foi a única razão para explicar a opção drástica. Outros motivos foram-se acumulando.

A fama, o sucesso e a fortuna dos Beatles provocaram inveja? Acontece que a vida de Lennon, McCartney, Harrison e Starr não terá sido particularmente interessante enquanto decorria aquele período em que, segundo George, “parecia que todo o Mundo tinha enlouquecido e que os Beatles eram as únicas quatro pessoas sãs que sobravam à face da Terra”. E 1966 ia ser um ano de sustos e de perigos.

Entre o final de junho e os primeiros dias do mês seguinte, a banda andou em digressão pelo Extremo Oriente. Para Tóquio, estavam agendadas três datas, concertos que iriam decorrer no Budokan. O local tinha um lugar especial entre os habitantes e os Beatles viram-se atraídos para o centro de uma polémica que agitou a cidade. As vozes mais conservadoras consideravam que o recinto estava destinado às artes marciais e não era adequado para a música pop. No fim, os críticos foram forçados a ceder e tudo correu de acordo com os planos. Mas havia outro problema.

[os Beatles ao vivo em Tóquio]

A segurança era apertada, as autoridades policiais vigiavam permanentemente os quatro elementos da banda e não era suposto poderem sair do hotel. Para os Beatles, verem-se enclausurados nos quartos era uma situação demasiado penosa. Apenas tinham autorização para sair às horas dos concertos. Quando as atuações terminavam, eram de imediato conduzidos de regresso ao hotel. A agenda era controlada ao minuto. “Eles gostavam que nós saíssemos dos quartos às 7h14, para entrarmos no elevador às 7h15, que demorava um minuto e oito segundos a descer para entrarmos nos carros, e por aí fora. Quando batiam à porta, nunca estávamos prontos. Furámos completamente aqueles horários”, disse Ringo Starr.

“Eu e o John conseguimos escapar do hotel às escondidas. E o Paul e o Mal [Evans, manager das digressões] também. A segurança apanhou o Paul e o Mal, mas eu e o John conseguimos ir até a um mercado e foi ótimo. Sentimos um enorme alívio por termos conseguido sair”, contou Neil Aspinall, amigo dos tempos da escola de McCartney e de Harrison, que viria a ser administrador executivo da editora Apple. A polícia acabou por apanhá-los e recambiou-os para o hotel.

Para passarem o tempo, os Beatles organizavam atividades, como vulgares reclusos a quem era negada a liberdade de se movimentarem para onde quisessem. “No quarto do hotel fizemos uma pintura comunitária. Cada um de nós começou a pintar num dos cantos do papel e fomos avançando até ao centro, onde os nossos desenhos se encontraram”, recordou Paul McCartney em “The Beatles Anthology”. No Japão, a rigidez ameaçou os nervos dos quatro músicos. Nas Filipinas, iria ser bem pior.

Assim que aterraram começaram as “más notícias”

A loucura dos fãs apostados em tocar nos Beatles ou, simplesmente, em aproximarem-se o suficiente para verem e fotografarem de perto os seus ídolos implicava fortes medidas de segurança. Nos aeroportos, os aviões que transportavam os membros da banda aterravam e deslocavam-se até a um dos extremos da pista onde os quatro e a respetiva bagagem eram recolhidos por automóveis, enquanto Neil Aspinall tratava das formalidades.

Em Manila, foi diferente. “Assim que aterrámos, começaram as más notícias”, contou George Harrison. Os músicos foram enfiados num carro, sob a ordem de não levarem as malas, dada por polícias e militares de “ar ameaçador” que estavam por todo o lado. Sem quaisquer explicações, foram transportados até ao porto da cidade e levados para um barco que estava ancorado ao largo, onde foram, surpresa, fechados num quarto, impedidos de comunicar com Neil Aspinall, Mal Evans ou Brian Epstein, o manager dos Beatles. Para melhorar as perspetivas, o convés estava apinhado com homens armados, o que reforçava a ideia de que jamais se deviam ter metido na aventura de ir fazer um concerto nas Filipinas.

Duas horas depois de terem sido sequestrados, os Beatles foram libertados. Mas as peripécias não iriam terminar. Brian Epstein tinha recebido um convite para que Lennon, McCartney, Harrison e Starr participassem numa receção destinada a fãs da banda, em que a anfitriã era Imelda Marcos, primeira-dama das Filipinas, consumidora compulsiva de sapatos e mulher do ditador Ferdinand Marcos que mandou nos destinos do arquipélago entre 1965 e 1986. Epstein respondeu com uma negativa: os Beatles, pelo menos na época, não se envolviam em política. O “não” foi insuficiente para demover Imelda.

[os fab four descrevem as peripécias em Manila]

Enquanto a mulher do ditador aguardava pelos fab four no palácio presidencial, os Beatles permaneciam no hotel e gozavam uma folga antes do concerto que estava agendado para a capital filipina. Viram, pela televisão, as imagens do evento a que era suposto comparecerem, mas mantiveram a recusa, mesmo quando lhes começaram a bater à porta e a exigir, em tom ameaçador, que se deslocassem até à receção onde eram esperados. As represálias não demoraram.

Para começar, o serviço do hotel em que estavam instalados sofreu uma forte deterioração, o que se refletiu na falta de qualidade da comida que passou a ser-lhes servida. E, para terminar em beleza, foram alvo de tentativas de agressão quando se deslocaram para o aeroporto com o objetivo de, uma vez cumpridas as duas atuações ao vivo previstas, perante cem mil pessoas, escaparem daquele inferno. Fizeram a viagem praticamente sem escolta, depois de terem enfrentado dificuldades em arranjar automóveis que os conduzissem até ao aeroporto. Por todo o lado havia gritos e ameaças, numa manhã em que as manchetes dos jornais acusavam os Beatles de terem dado uma “banhada” à primeira família do país.

No aeroporto, os empurrões e os socos começaram a chover, embora dirigidos, sobretudo, aos membros da comitiva dos Beatles. Ainda assim, os quatro decidiram esconder-se por detrás de um grupo de freiras. “É um país católico, não vão bater nas freiras”, pensaram, de acordo com Ringo. Finalmente, entraram no avião, mas, antes de o aparelho levantar voo, Brian Epstein, Mal Evans e Tony Barrow ainda foram retirados da cabine para lhes ser extorquida uma taxa de saída do país, qualificada como exorbitante. No essencial, de acordo com George Harrison, tratou-se de uma forma de as autoridades filipinas recuperarem o dinheiro ganho pelos Beatles em contrapartida pelos concertos que deram em Manila.

Para que tudo acabasse em grande durante a digressão de 1966, a John Lennon, Paul McCartney, George Harrison e Ringo Starr só faltava colocarem os pés em solo norte-americano e terem de enfrentar uma fúria de inspiração religiosa.

Mais famosos do que Jesus Cristo? Que atrevimento

Uma declaração feita durante uma entrevista pode passar despercebida no momento em que é publicada. Mas também pode ressuscitar mais tarde e provocar reações inesperadas. John Lennon passou por esta experiência. Numa conversa entre os Beatles e Maureen Cleave, para o “Evening Standard”, religião foi um dos temas abordados. E Lennon declarou: “Neste momento, somos mais populares do que Jesus”. O contexto era o de que a Igreja Anglicana fazia pouco para conquistar crentes, estava a atravessar um processo de decadência, e o músico revelava as suas dúvidas sobre quem sobreviveria mais tempo, se o rock and roll ou o cristianismo.

Durante meses, ninguém refilou. Mas quando os Beatles aterraram nos Estados Unidos, os ânimos estavam exaltados. Havia manifestações de repúdio pelas afirmações de John Lennon e eventos em que o objetivo era, simplesmente, o de queimar material relacionado com os Beatles, incluindo discos da banda. O Ku Klux Klan também estava envolvido no assunto, membros da organização chegaram a exibir um disco da banda de Liverpool pregado numa cruz, e houve rádios a proibir a passagem de canções. Em Memphis, as autoridades locais tentaram cancelar uma atuação. Um artigo publicado em março, em Inglaterra, tinha sido recuperado pela revista Datebook e dado à estampa nos Estados Unidos pouco tempo antes de os Beatles regressarem para a última digressão da carreira.

[fãs queimam material dos Beatles, no Alabama, em 1966, e as explicações de John Lennon]

A pressão foi enorme. Todos os membros dos Beatles receberam ameaças de morte, não apenas o autor da declaração que incendiou a atmosfera que rodeava a banda naqueles dias. Contrariado, convicto de que as suas afirmações tinham sido interpretadas de forma enviesada, John Lennon acabou por dar explicações e pedir desculpa.

Quando não eram as chamas das fogueiras ateadas para destruir álbuns e singles dos Beatles, surgiam as tempestades. Nalguns recintos onde os Beatles iriam tocar, a chuva caía sobre o equipamento e ameaçava eletrocutar os músicos. Em Cincinnati, quando Mal Evans chegou, pronto para montar o sistema de som, não encontrou uma fonte de energia. O organizador local do evento julgava que se tratava de uma banda que tocava guitarras, sim, mas acústicas.

Candlestick Park tinha capacidade para acolher 42,5 mil espectadores, mas o último concerto dos Beatles em que foram cobrados bilhetes apenas atraiu 25 mil pessoas. O cansaço parecia não estar apenas a pesar sobre os ombos dos quatro membros da banda. Provavelmente, quem estava interessado na música preferia ficar em casa a escutar os discos, em vez de se sujeitar a uma barragem de gritos.

A cassete de Tony Barrow durava 30 minutos e a última canção do concerto, “Long Tall Sally”, tema de que é co-autor Little Ricard, ficou cortada. O local da atuação, onde Paul McCartney regressou para dar um concerto a 14 de agosto de 2014, foi demolido. Os Beatles voltaram ao estúdio em novembro de 1966. Gravaram “Strawberry Fields Forever”, “Penny Lane” e “When I’m Sixty Four”. Os três temas deveriam fazer parte de um novo álbum, na altura ainda sem título, mas apenas o último fez o seu caminho até ao alinhamento de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band. As duas outras canções ocuparam os dois lados de um single que foi lançado a 17 de fevereiro de 1967 no Reino Unido e quatro dias antes nos Estados Unidos. Concentrados no trabalho de estúdio, os Beatles estavam prestes a demonstrar que o melhor ainda estava para chegar.

[veja as imagens da demolição de Candlestick Park, em 2015]