André Ventura sabe que não é cristalino que consiga ter mais votos que Ana Gomes. André Ventura sabe que é difícil ter mais votos que os três candidatos da esquerda juntos. André Ventura sabe que é altamente improvável forçar uma segunda volta. André Ventura sabe que é praticamente impossível vencer Marcelo Rebelo de Sousa. André Ventura sabe que prometeu um verdadeiro “terramoto político” no dia 24 de janeiro. E André Ventura sabe os riscos que corre se ficar aquém dos objetivos que definiu para si próprio.
Daí que esta segunda-feira, segundo dia da campanha oficial para as eleições presidenciais de 2021, dedicado à região algarvia, André Ventura tenha lançado uma manta de suspeição sobre a forma como está a ser preparado e como vai decorrer o ato eleitoral. “Eu não alimento teorias de conspiração, mas…”. Este “mas” é uma novidade no discurso do líder do Chega. Pode ter sido um excesso de linguagem. Pode ter sido uma frase isolada. Pode até nem sequer se repetir. Mas, ao segundo dia de campanha, Ventura deixou o aviso: “Quero os votos bem contados. Não brinquem com a nossa democracia.”
Como é que vai evoluir este sentimento de desconfiança em relação às eleições é uma incógnita. E se Ventura não conseguir mais votos que Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira, o que dirá? Pior: e se André Ventura ficar atrás de Ana Gomes? Ventura prometeu, hoje mesmo, liderar uma “revolução da maioria de bem contra a minoria que explora o Estado e os nossos impostos há mais de 45 anos”. Se falhar o segundo teste à sua popularidade — as legislativas foram o primeiro — que narrativa terá para oferecer aos seus apoiantes? Usará este “eu não alimento teorias de conspiração, mas…” para mais qualquer coisa?
Num futuro alternativo, Ventura pode dizer que não conseguiu alcançar o Olimpo porque o sistema “decadente e corrupto” não permitiu. O futuro alternativo pode ter começado já hoje. André Ventura quer continuar a alimentar o mito — o dele e o da IV República; e André Ventura sabe que os mitos costumam lidar mal com a realidade.
“Votem Ana Gomes!”
Até à noite eleitoral, as juras de lealdade dos fiéis serão a realidade de André Ventura. Mas também os protestos. A iniciativa na Docapesca de Portimão estava agendada para as 14 horas. Eram 14h30 e nada do candidato presidencial. A caravana de André Ventura, cerca de 50 pessoas mais comunicação social em peso, já o esperava, enquanto um Volvo cinzento muito maltratado pelo tempo gritava frases soltas do líder do Chega.
À distância, elementos da Polícia Marítima observavam a cena, enquanto andavam para trás e para a frente agarrados ao walkie-talkie. Primeiro, dois agentes. Depois, mais dois. Finalmente sete e três carros de apoio, num aparato aparentemente desproporcional face ao número de pessoas presentes e ao baixo risco da iniciativa. Ao Observador, um dos elementos da Polícia Marítima confessou: “É por prevenção.”
Percebia-se porquê. Na véspera, em Serpa, um esqueleto tinha roubado a cena a André Ventura, naquilo que constituiu uma evidente falha de segurança. Esta segunda-feira, uma comitiva com 20 elementos da comunidade cigana esperava Ventura com cartazes e gritos de “André Ventura é fascista” ou “Votem Ana Gomes” — a mesma que Ventura chegou a classificar como “candidata dos ciganos”. Às 14h42, lá surgiu o candidato, num Mercedes preto, com um carro à frente e outro a proteger o lado onde seguia o candidato. Será sempre assim ao longo de toda a campanha, até porque, sabe o Observador, a candidatura de André Ventura está convencida de que as ações de “boicote” estão a ser organizadas pelos adversários políticos.
À entrada de Faro, por exemplo, um enorme outdoor de Ventura tinha sido adornado com um bigode hilterariano. O líder do Chega vê, ouve, regista, faz-se de vítima e tenta mobilizar o seu eleitorado contra inimigos visíveis e invisíveis. “Não há grito nem insulto, cartazes com minorias ou maiorias que nos possam parar no caminho para Belém”, gritou já em Faro. Será sempre assim porque Ventura sabe que isso vende.
Marcelo, o homem das selfies
E Ventura sabe que a narrativa do ‘nós contra eles’ também vende. As polícias contra os bandidos, os pensionistas contra os “terroristas que levantam cheques na Segurança Social”, os que pagam impostos contra os “que vivem à custa do Estado”, os que trabalham contra os que não querem fazer nada, os que querem pescar contra os que “recebem subsídios para ter os barcos parados”… os exemplos são inesgotáveis e são sistematicamente alimentados pela retórica do candidato.
O adversário do dia escolhido por Ventura podia ser qualquer um destes grupos visados. E tudo seria condensado numa frase: “Esta é a revolução da maioria de bem contra a minoria que explora o Estado”, atirou para gáudio para os cerca de 70 apoiantes que o ouviam e que não tinham pudor em gritar frases soltas como “morte aos ciganos, esses filhos da puta” ou “estamos a ser governados por um indiano e é o indiano que lhes dá o dinheiro”.
Mas o adversário do dia foi outro, neste caso Marcelo Rebelo de Sousa. Ventura aproveitou facto de o Presidente da República ter abdicado de fazer campanha nesta primeira semana para tentar criar outra narrativa: ele, o David que vai ao terreno, que está com as pessoas, que dá a cara, está a tentar derrotar o Golias Marcelo, que acha que já ganhou, que quer despachar isto, que encara as eleições com soberba.
“O Presidente prefere não fazer campanha porque acha que não precisa. Desrespeita assim o eleitorado e acha que ficar fechado no Palácio de Belém e ir a sessões com quem quer que seja justificará o respeito do eleitorado. Julga que ter tirado ‘selfies’ durante cinco anos lhe vai dar uma reeleição certa”, criticou Ventura. É esta vitória antecipada — que o líder do Chega já assumiu várias vezes como um dado adquirido — que Ventura quer contrariar. Amanhã, 12 janeiro, o guião não será muito diferente.