É o fim de uma era, mas não é o fim da linha. Nem o fundo do poço. No caminho cada vez mais “verde” que a Galp quer fazer, rumo à neutralidade carbónica em 2050, ainda há muito petróleo por explorar. Mas não em Angola.
Esta segunda-feira, não foram só os lucros de 881 milhões de euros a fazer história. Mais de 40 anos depois de ter começado a produzir petróleo, precisamente em Angola, a empresa anunciou o adeus aos poços de ouro negro do país, onde ficará apenas com a distribuição de combustível.
Os ativos de exploração petrolífera vão ser vendidos à Somoil, Sociedade Petrolífera Angolana, por 830 milhões de dólares, cerca de 777 milhões de euros. Um valor “bastante acima do consenso do mercado”, disse Filipe Silva, CEO da Galp, na conferência para analistas que teve lugar após a divulgação dos resultados. A ação poderia ser vista como o início do fim do petróleo para a Galp, também em linha com a imagem de “empresa em processo de descarbonização” que quer passar. Mas está longe de ser essa a realidade. O Brasil, atual galinha dos ovos de ouro da Galp, tem petróleo para dar e vender, e há outros “diamantes” em bruto que podem mudar o rumo da história.
Na conferência desta segunda-feira, reservada unicamente a analistas e tudo em inglês (quer a conferência, quer os comunicados divulgados), o CEO da Galp adiantou algumas pistas sobre os motivos para a venda em Angola e o que pode reservar o futuro para a petrolífera. “Vamos continuar a fazer esta empresa crescer e, ao mesmo tempo, promover a sua transformação gradual de uma empresa cinzenta para verde”, começou por dizer Filipe Silva, que assumiu os comandos da empresa a 1 de janeiro, sucedendo a Andy Brown. Mas “até 2030”, o upstream, ou seja, a exploração e produção de petróleo, “vai continuar a crescer”, adiantou. “Mesmo com o desinvestimento em Angola”. No Brasil, garantiu, o investimento é para continuar.
Então, o que justifica o abandono de uma parte (rentável) da história da Galp? O crescente investimento nas energias renováveis é um dos argumentos. A empresa espera que a capacidade das suas operações de renováveis atinja os 4 gigawats (GW) em 2025 e tem um pipeline de 9 GW. E, por isso, precisa de se retirar de algumas operações mais maduras noutros negócios, como é o caso de Angola, para ter capacidade de avançar para outras com mais potencial e fazer parte da grande revolução do carbono. “É nesta base que vamos continuar a expandir o nosso negócio nas renováveis, e que também vai ajudar a descarbonizar a nossa pegada comercial e industrial”, resumiu Filipe Silva. Isto porque a exploração de petróleo em Angola é menos “verde” do que outras da Galp, como a do Brasil.
No que toca ao investimento, a Galp prevê aplicar por ano, e em média, mil milhões de euros até 2025. A venda da exploração em Angola por quase 800 milhões vai contribuir para essa meta. “Os resultados da venda vão permitir manter o valor do investimento [capex] nos mil milhões de euros, à medida que vamos desenvolvendo Bacalhau [no Brasil] e que vamos investindo na descarbonização e vamos construindo o nosso portefólio de renováveis”, referiu Filipe Silva.
“À medida que investimos mais em renováveis, e porque já consolidámos as renováveis, queremos mostrar um EBITDA verde como parte do nosso mix de EBITDA”, acrescentou ainda.
Filipe Silva admitiu ainda que “poderá haver mais desinvestimentos, dependendo de quão rápido avançarmos com outras iniciativas de emissões reduzidas”, que não dizem apenas respeito às renováveis, mas também poderão estar ligadas ao hidrogénio e aos biocombustíveis (HVO), exemplificou. Mas o Brasil está fora de questão. Sem deixar de reforçar que “é importante continuar a investir muito significativamente na produção e exploração” de petróleo, Filipe Silva quis vincar que “o envelope” do petróleo terá de ser baseado em zero emissões. E Angola não está a contribuir para essa mudança.
“Gostamos de estar em reservas gigantescas com baixa intensidade em carbono. Mesmo se formos minoritários. No Brasil, os campos são mais jovens e terão uma vida mais longa. As emissões de CO2 dos nossos ativos angolanos estão em linha com a média da indústria, o que é razoável. Mas as emissões por barril dos nossos ativos no Brasil estão muito abaixo disso. Este desinvestimento melhora a nossa intensidade carbónica”, explicou Filipe Silva.
Bacalhau será rentável. São Tomé e Namíbia são “diamantes”
Ainda no que toca à mudança cromática no esquema de investimentos empresa, o CEO adiantou que o projeto Bacalhau, no Brasil, que começou a ser desenvolvido em 2021, terá uma produção de 40 mil barris por dia, ao passo que Angola está nos 12 mil “e em queda”. Bacalhau, por si só, representa um investimento de 1,6 mil milhões de euros para a Galp, mais do dobro do que resultará da venda dos ativos angolanos. “Se queremos atingir as zero emissões em 2050, temos de manter a disciplina na nossa exposição à produção e exploração de petróleo”. Bacalhau é, de resto, a grande aposta do futuro para a Galp. Deverá entrar em produção em 2025 e é “um ativo extremamente rentável para a Galp”, resumiu Thore Kristiansen, administrador da petrolífera.
Mas nem tudo no futuro da Galp poderá ser renovável e verde. Há duas operações em curso que podem mudar o rumo dos investimentos: Namíbia e São Tomé e Príncipe. “Dois grandes diamantes” em bruto do portefólio da Galp, classificou Thore Kristiansen. “Se forem bem sucedidas, dada a dimensão desses ativos” tudo pode mudar. Na Namíbia, a Galp tem atualmente duas licenças de exploração numa área com 20 mil quilómetros quadrados. Os trabalhos de prospeção continuam, e já foi provada a existência de hidrocarbonetos. Falta comprovar a viabilidade da exploração comercial.
Em São Tomé e Príncipe, a Galp está presente em três blocos. Um deles, com mais de cinco mil quilómetros quadrados, “encontra-se na Zona Económica Exclusiva do país, localizado numa zona pouco explorada, mas de alto potencial, uma vez que se encontra próximo de províncias com um sistema petrolífero comprovado”, nota a empresa no seu site oficial.
“Vai haver uma altura em que as pessoas vão olhar para a Galp e ver um negócio mais verde”, destacou o CEO. Outro dos projetos que contribuem para esta confiança é o que se está a desenhar para antiga refinaria de Matosinhos, onde a Galp quer instalar um “grande hub verde”. Se os planos correrem como previsto, a aposta no biocombustível (HVO) não deverá passar, assim, apenas por Sines. Os responsáveis adiantaram que o projeto “está a avançar” e que a decisão final de investimento será tomada na primeira metade de 2023. A Galp está a avançar sozinha, no essencial, mas encontrou um parceiro internacional “com uma pegada forte no Oriente”.
A transformação da empresa também poderá trazer boas notícias para os acionistas. “Com as ações da Galp, garantem crescimento, uma yield competitiva, com um bom retorno e estão a participar ativamente na transição energética com uma criação de valor significativa”, sublinhou o CEO logo no início da apresentação. Questionado sobre a possibilidade de um aumento da remuneração acionista, Filipe Silva sublinhou que a fasquia para os dividendos continua a ser um terço do cash flow operacional ajustado. “Se continuarmos a apresentar resultados muito depressa, acredito que a administração vai olhar para a política de distribuição de dividendos”, admitiu.
Galp quer distribuir 900 milhões aos acionistas por resultados obtidos em ano de preços recorde
O primeiro sinal do desinvestimento da Galp em Angola foi avançado no final de abril do ano passado pela Bloomberg. Citando, na altura, “fontes ligadas ao processo”, a agência avançava que a empresa estaria a considerar reduzir o seu portefólio de hidrocarbonetos. Já há dez meses a petrolífera estaria, portanto, a trabalhar com consultores financeiros para atrair possíveis compradores para os ativos de Angola. Um analista do Caixa BI afirmou então que, “ao contrário do Brasil, Angola não é uma área de crescimento para a Galp no segmento da produção e exploração”, apesar de ser uma “sólida fonte de rendimento”.
O mesmo analista considerava que a venda poderia ser positiva, porque permitiria monetizar a posição que a empresa tem em ativos já com maturidade avançada. “A estratégia da empresa está agora mais focada na transição energética, com os seus ativos principais no segmento da produção e exploração a estarem localizados no pré-sal do Brasil”. As previsões não poderiam ter sido mais certeiras.
O que tem a Galp em Angola?
Além do Brasil e Moçambique, Angola é onde a Galp concentra os seus ativos mais importantes no segmento de exploração e produção de petróleo. São cinco projetos sancionados e seis licenças de exploração, onde a empresa partilha direitos com “algumas das mais conceituadas empresas do sector petrolífero a nível mundial”, segundo a própria Galp, como a Chevron, a Total, a Eni e a Sonangol.
No chamado bloco 14, um gigante com 4.091 km² no norte do país, há três campos em produção, com seis áreas de desenvolvimento: Kuito, Benguela-Belize-Lobito-Tomboco (BBLT) e Tômbua-Lândana. A Galp obteve a licença de produção em 1995 e começou a operar em dezembro de 1999.
A empresa tem ainda presença no bloco 14K, que fica situado na fronteira entre Angola e a República do Congo. Aqui situa-se o campo de Lianzi, que está em produção desde 2015. Neste bloco, de 700 km², a empresa opera em consórcio com a Chevron, a Cabinda Gulf Oil Company, a Sonangol, a SNPC, a Total Angola, a Total Congo e a Eni.
Conta também com o bloco 32, o maior de todos com 5.090 km², localizado em águas ultra-profundas do offshore de Angola, e onde, de acordo com a Galp “foram realizadas várias descobertas desde o início da concessão“.
A Galp opera em Angola através de duas empresas, a Petrogal Angola, que distribui e comercializa lubrificantes, e a Sonangalp, que é detida em 49% pela Galp e em 51% pela Sonangol, que distribui e vende combustíveis líquidos e lubrificantes nos segmentos de retalho e venda por grosso.
A história da Galp no país remonta a 1982, dez anos depois de o petróleo se ter tornado na principal exportação de Angola, ultrapassando o café. Foi há 41 anos que a empresa entrou no negócio da exploração e produção no país africano, com uma participação no bloco 1/82. Em 1991, a empresa entra no campo Safueiro, no mesmo bloco 1/82, que esteve em produção até 2002. No final da década, em 1999, foi a vez do campo Kuito entrar em produção. Angola, refere a Galp, “manteve-se como o único reduto de produção até maio de 2009, com os campos BBLT e Tômbua-Lândana, no bloco 14″. 2023 será o capítulo final do “único reduto”.