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BELGA MAG/AFP via Getty Images

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"O meu receio é que os governos olhem para a tecnologia como uma solução total"

Richard McKay (Universidade de Cambridge) investiga a discriminação na SIDA e vê semelhanças com a Covid-19 — e riscos, também. O maior, que lhe tira o sono, é o uso dos dados de doentes por empresas.

Richard McKay, historiador de epidemias, é investigador na Universidade de Cambrige e especializou-se no estudo de uma das maiores epidemias da História da Humanidade: a SIDA. Nesse campo de estudos, focou-se no tema da discriminação — um tema vasto para uma doença cujo estigma cabe de forma desigual a alguns grupos, como os homens homossexuais.

Numa entrevista por Skype com o Observador, McKay falou sobre as semelhanças e as diferenças da epidemia de Covid-19 com a da SIDA — e como a atual pandemia também pode ser um veículo de discriminação. “O fardo das epidemias é sempre carregado de forma desproporcional e geralmente isso segue linhas de discriminação”, diz. “Os mais pobres sofrem mais.”

Uma das formas como essa discriminação pode surgir em tempos de Covid-19 pode não ser muito distinta da que se viu com a epidemia da SIDA, garante, focando-se no caso de Gaétan Dugas — o canadiano que ficou injustamente conhecido o “Paciente Zero” da SIDA nos EUA, depois de uma fuga de informação. Esses erros podem agora ser repetidos com a Covid-19, com os nossos dados nas mãos de empresas tecnológicas que “têm um mau historial no que toca ao abuso da confiança do público”. É isto que tira o sono a Richard McKay, que ainda assim mantém (alguma) fé na Humanidade.

Richard McKay é um historiador da Universidade de Cambridge especializado do estudo da epidemia da SIDA

Tem uma vasta produção académica sobre o tema da discriminação no contexto da SIDA. Consegue ver algumas semelhanças entre esse contexto e aquele que vivemos agora com a Covid-19? Ou seja, é possível que, com esta epidemia, surjam casos de discriminação nas mesmas linhas ou diria que há diferenças substanciais?
Uma das coisas em que tenho reparado é que a epidemia com a qual tenho mais experiência de investigação — que é a epidemia da SIDA — é talvez aquela que tem sido menos evocada nos últimos tempos por aqueles que têm feito comparações históricas. Tem havido muitas referências à gripe pneumónica de 1918…

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A chamada Gripe Espanhola.
Exato. E percebo que haja razões para que tenha sido assim até aqui. O VIH é uma infeção muito mais lenta no seu desenvolvimento, ao contrário dos vírus em que as pessoas desenvolvem sintomas muito depressa. A velocidade com que a Covid-19 se tornou visível, e visivelmente espalhada em todo o mundo, é muito diferente. Mas, apesar de tudo isto, há semelhanças com a SIDA. Por exemplo, dá-se uma importância extrema à origem do vírus e, a partir daí, surgem ações discriminatórias correlacionadas com a origem do vírus. Ao saberem que o vírus começou em Wuhan, na China, muitas pessoas associaram imediatamente o vírus a pessoas que são asiáticas.

Mas isso parece já ter passado, até porque já é uma pandemia há muito tempo. Neste momento essa discriminação não pode já estar em italianos ou espanhóis? Aqui em Portugal, calculo que um espanhol que atravesse a fronteira nos próximos tempos poderá vir a ser olhado com alguma reticência…
Certo. Este é um fenómeno que muda com o tempo e por isso o grupo com que essas associações são feitas pode ir mudando, sobretudo consoante o que é publicado nas notícias sobre a epidemia. Pode começar na China e acabar nos italianos. Foi noticiado até que ocidentais estavam a ser discriminados na China depois do pico original do vírus e quando parecia que a China já tinha a epidemia sob controlo.

"Há semelhanças com a SIDA. Por exemplo, dá-se uma importância extrema à origem do vírus e, a partir daí, surgem ações discriminatórias correlacionadas com a origem do vírus. Ao saberem que o vírus começou em Wuhan, na China, muitas pessoas associaram imediatamente o vírus a pessoas que são asiáticas."

Além disso, também na China, houve relatos de vários africanos a serem discriminados, o que motivou até alguns problemas diplomáticos.
E juntaria a esse grupo ocidentais afro-americanos. Há vários grupos que são vistos como outsiders que são postos de lado em diferentes circunstâncias. E essa é uma comparação que podemos fazer com a epidemia da SIDA. Depois, nas sociedades em que a noção de imunidade de grupo foi testada — em que se pensou na ideia de alguns grupos, como as pessoas acima dos 70 anos ou problemas de saúde, terem de se proteger a eles próprios — houve outra semelhança com a epidemia da SIDA, que é a diferenciação daqueles que são afetados por esta espécie de purga da sociedade. Na verdade já vemos isso com trabalhadores do setor da saúde ou com minorias. A diferença é que na epidemia da SIDA, embora tivesse havido períodos em que toda a sociedade parecia ter medo do VIH, isso não se traduziu na perceção de que toda a gente podia ser afetada e que toda a gente teria de estar em confinamento. Isso demonstra que o fardo das epidemias é sempre carregado de forma desproporcional e, geralmente, isso segue linhas de discriminação. Os mais pobres sofrem mais.

Mas ao contrário de outras epidemias, nestas já há elementos de sobra para dizer que é uma doença democrática, à falta de melhor expressão, no sentido em que é abrangente. No Reino Unido, o primeiro-ministro foi um dos infetados. Não acha que esta abrangência pode diluir o potencial discriminatório da Covid-19? É que nesta altura já se sabe que esta doença afeta pessoas de todos os géneros, cores de pele, orientação sexual e por aí fora. Basta ser-se da espécie humana para contraí-la e espalhá-la.
Não diria que a doença é democrática. Quando vemos pessoas de determinado contexto de forma desproporcional entre os infetados, não podemos falar de uma doença democrática. O que é que queremos dizer com democrática? Mas diria que é, provavelmente, bom que os casos passem rapidamente de ser de apenas um grupo para deixarem de estar concentrados em torno de uma minoria visível — mesmo que os exemplos persistentes e tentativas racistas, especialmente nos EUA, de criar uma ligação entre a China e o vírus exacerbem essa tendência. Mas creio que é provavelmente melhor para pessoas que pertencem a minorias visivelmente identificáveis, que têm sofrido crimes de ódio no passado, que esta doença seja mais diversa no que diz respeito a quem pode ficar sob risco. Diria que isso é algo bom.

Coronavirus in Hong Kong

"As pessoas vão olhar com muito mais suspeição para alguém que tussa do que para a pessoa que se senta ao lado dela e que não tosse, mas que pode estar assintomática e infecciosa", diz Richard McKay

Miguel Candela Poblacion/Anadolu Agency via Getty Images

Compreendo que diga que é algo bom, no sentido em que não ajuda à estigmatização de um determinado grupo. Mas pergunto-lhe agora pelo reverso da medalha: o que é de uma sociedade em que, quando nos sentamos num autocarro, sabemos que qualquer pessoa nos pode infetar? Que efeitos é que isto pode criar numa sociedade?
Por um lado, pode criar um sentimento de paranoia generalizado. As pessoas podem pensar: “Pode ser esta pessoa, pode ser aquela pessoa. Se apanhar a doença, é de quem?”. Mas tendo a pensar que as pessoas vão recuar a um conjunto de ideias previamente estabelecidas para identificar quem é que os pode ou não colocar em maior risco. Há um historial que nos demonstra que as pessoas associam os germes às pessoas que parecem mais sujas ou que aparentam estar doentes. E as pessoas vão olhar com muito mais suspeição para alguém que tussa do que para a pessoa que se senta ao lado dela e que não tosse, mas que pode estar assintomática e infecciosa. O meu instinto diz-me que seria demasiado cansativo, até exaustivo, para as pessoas manterem um tipo de vigilância em que suspeitam que pode ser qualquer pessoa.

Vamos começar a arranjar bodes expiatórios, então?
O que é um bode expiatório? Se olharmos com atenção, um bode expiatório é uma resposta em que, pela via de um atalho, pegamos numa pessoa representativa de um grupo e dizemos assim: se nos livrarmos dessa pessoa, livramo-nos também dos pecados da sociedade. É um atalho mental para conseguirmos algo, uma descarga catártica de stress acumulado. E questiono-me, a partir do momento em que a Covid-19 se torna mais individualizada, se podemos sequer falar de bodes expiatórios. É, claramente, um processo semelhante, mas seria uma decisão interpretativa. Quando a noção de bode expiatório surgiu na Europa, na Idade Média, assumiu um reflexo cultural em que certos grupos servem a função de serem aqueles em quem pomos as culpas. Culpámos os leprosos, depois culpámos os judeus. O processo de encontrar um bode expiatório pode ter alguma ligação a um grupo mais amplo.

"As pessoas vão olhar com muito mais suspeição para alguém que tussa do que para a pessoa que se senta ao lado dela e que não tosse, mas que pode estar assintomática e infecciosa. O meu instinto diz-me que seria demasiado cansativo, até exaustivo, para as pessoas manterem um tipo de vigilância em que suspeitam que pode ser qualquer pessoa."

Falemos agora dos certificados de imunidade, ou passaportes de imunidade. Há alguns países onde esta possibilidade tem sido amplamente discutida e, no caso do Chile, o governo já informou que vai avançar com essa medida. Ainda se sabe pouco sobre o que é a imunidade à Covid-19, ou sequer se tal coisa existe, mas pergunto-lhe ainda assim: como olha para esta possibilidade? Poderá ser um novo fator de discriminação? Ou, pelo contrário, e pegando no exemplo que referiu há pouco, um certificado de imunidade pode amenizar a discriminação à pessoa pobre que está a tossir a um canto do autocarro, ao contrário de um passageiro engravatado?
Hesitaria muito em apostar nessa possibilidade, certamente nos próximos meses. Que forma terá esse certificado? Haverá testes para toda a gente? Saberemos se há ou não imunidade depois de estarmos infetados? E, se houver, quanto tempo é que essa imunidade dura? Para mim, parece-me um pesadelo na sua aplicação prática.

Mas, para lá da logística do processo, o que pensa das possibilidades que isto pode criar? Há uma possibilidade algo distópica, mas não tão distante quanto isso, em que as empresas podem preferencialmente contratar pessoas que saibam que são imunes à Covid-19.
Para mim é difícil ir para lá da logística deste processo, até porque sabemos muito pouco sobre a imunidade a longo prazo que uma infeção pode ou não conferir. Se um empregador não souber se essa tal imunidade dura ou não para lá da próxima época de gripe, pergunto-me se fariam contratações com base nesse certificado. É melhor falarmos sobre isto daqui a dois anos e vermos o que acontece.

"A minha maior preocupação são as empresas que se estão a juntar para ajudar os governos a fazer essas aplicações. Sobretudo se os governos não forem cuidadosos e não derem os passos necessários para que dados que são anónimos não sejam potencialmente atribuíveis a alguém."

Além dos certificados de imunidade, há o tema do rastreamento de contactos. Não há aqui também um perigo de discriminação? Num artigo que escreveu recentemente a propósito da Covid-19, recordou o caso de Gaétan Dugas, que ficou conhecido como o “Paciente Zero” da SIDA, noção essa que é errada. E no seu artigo explica que Gaétan Dugas cooperou com as autoridades de saúde ao dizer-lhes com quem manteve relações sexuais (o que levou à sua estigmatização), ao passo que outros que tinham um estilo de vida semelhante não tiveram aquele rótulo porque simplesmente não partilharam essa informação. Há um risco de discriminação associado à prática de rastreamento de contactos?
O que esse caso deixou em evidência são os riscos relacionados com a divulgação para os media de um paciente e da sua ligação com outros pacientes. Nesta era digital, em que os nossos telemóveis são monitorizados e os anunciantes nos conseguem identificar de uma maneira assustadora, pode dar-se o caso em que algumas pessoas podem ser identificadas mesmo sem serem nomeadas. O que o exemplo do “Paciente Zero” nos demonstra é que quando partilhamos informação esse risco existe. Quero ser muito claro e dizer que o rastreamento de contactos por si só, quando é feito de forma adequada, não é algo que conduza a esse tipo de fuga de informação. Mas é algo que deve ser salvaguardado de forma muito cuidadosa a cada passo.

Era precisamente aí que queria chegar. Há vários países que já estão a fazer isto, através de aplicações para telemóvel, desde a autoritária China à democrática Coreia do Sul, além de que países como França já estão a preparar a sua própria aplicação, a STOP Covid. Que riscos é que estão associados a isto?
A minha maior preocupação são as empresas que se estão a juntar para ajudar os governos a fazer essas aplicações. Sobretudo se os governos não forem cuidadosos e não derem os passos necessários para que dados que são anónimos não sejam potencialmente atribuíveis a alguém. É compreensível que haja preocupação e alguma hesitação por parte de grupos de defesa das liberdades civis. Estamos a viver um período muito complexo e existe uma pressão muito alta para os governos agirem e fazerem algo. E nem sempre é boa ideia formar um novo sistema quando há muita pressão para que isso seja feito depressa. Por isso, pergunto-me se as lições do passado vão ser aplicadas e utilizadas. O meu receio é que os governos olhem para a tecnologia como uma solução total — e eu duvido que esse grau de confiança seja adequado.

Image of Aids virus

Imagem do VIH, o vírus que causa a SIDA (Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images)

Universal Images Group via Getty

Fala das empresas, mas o certo é que estes são mecanismos orquestrados e promovidos pelos governos, isto é, as autoridades centrais. Não há aqui o risco de nesta pandemia haver uma discriminação levada a cabo pelo governo em si, além da discriminação que já é feita entre cidadãos? Os governos podem muito bem pegar nestas informações e decidir quem é que pode sair de casa, quem pode ir onde, e por aí fora.
Em muitos países, a legislação que tem sido feita para lidar com a epidemia não é propriamente bem redigida e tem várias inconsistências. Por isso, olho com muito cuidado para legislação que seja feita à pressa e sob um estado de emergência para exigir o uso de uma tecnologia de rastreio de contactos. Há razões para termos cautela. Além disso, as empresas de tecnologia têm um historial que não é merecedor de confiança do público. E por isso há motivos para cautela. Também creio que é preciso referir que ao longo do século XX, com o desenvolvimento de antibióticos a meio do século, houve um desinvestimento na saúde pública, o que aconteceu ainda mais com as medidas de austeridade. Esquecendo o caso do “Paciente Zero”, posso dizer que confio muito mais num trabalhador do setor da saúde do que numa empresa tecnológica, apesar de saber que os níveis de financiamento que eles têm recebido podem não permitir-lhes estar num nível em que possam responder bem a isto. Se houver nos países um fluxo massivo e a ideia de que é preciso um exército de pessoas para rastrear contactos de forma imediata… Isso sugere que quando avançamos a essa velocidade criamos possibilidades para que algo corra mal.

Então é isso que lhe tira o sono, em matéria de Covid-19?
É uma das minhas maiores preocupações. Ou seja, a possibilidade de empresas tecnológicas, que têm um mau historial no que toca ao abuso da confiança do público, fazerem um uso dos dados que vá além do nosso consentimento para poderem fazer novas incursões. Será difícil darmos um passo atrás, caso entremos por aí. Portanto, se me dessem a escolher entre um sistema de rastreio de contactos centrado numa aplicação e um sistema desenvolvido por humanos, eu preferiria o dos humanos.

Tem fé na Humanidade, então… Ora aí está algo que parece ser cada vez mais raro.
[risos] Sou a favor de que sejam apoiados pela tecnologia, mas penso que a maneira como a informação é recolhida tem de ser monitorizada com muito cuidado, com datas estritamente definidas para quando essa informação tem de ser apagada e garantias que previnam que as pessoas sejam identificadas mais tarde. Portanto, é uma certa fé na Humanidade, mas sem esquecer a devida preocupação quando os sistemas não têm os recursos necessários e se lhes exige que ajam depressa e sob pressão política.

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