O caminho faz-se através da escuridão. Uma penumbra da cor do mundo que resta, domínio carregado de destruição, decadência, pobreza, fome. A tristeza daqueles que sofrem, protagonistas desfavorecidos, desajustados, desprotegidos. Pessoas indefesas, como nós ou o resultado do exercício do poder numa era em que os valores estão extintos. Homens, mulheres, crianças, velhos, a condição humana e a sua natureza à procura da expiação, da redenção, da salvação. O homem sempre, antes e depois do fim e do início. À espera de si mesmo e do outro.
O caminho faz-se nessa penumbra magoada, que aqui, mais do que em Serralves — onde “Companhia”, em 2018, deu o primeiro passo nesta colaboração entre Pedro Costa, Rui Chafes e Paulo Nozolino –, mostra ao público como o trabalho dos três artistas se pode articular e pôr em diálogo. Não na forma da influência, mas na forma da coerência e da capacidade de dizer o que fica depois da economia distinguir fracos e fortes, ricos e pobres, ou, simplesmente, a vida decidir quem ganha e quem perde no tabuleiro das oportunidades. Entre o grito e o silêncio, o barulho e esse surdo calar de bocas, pensamentos, desejos, ambições e anseios.
Com inaihuração marcada para esta terça-feira, 7 de junho, e abertura ao público no dia seguinte, a exposição “Pedro Costa, Rui Chafes, Paulo Nozolino – Le reste est ombre” (verso de Fernando Pessoa), começa com Ventura, personagem/ator de Pedro Costa, oculto pelas próprias mãos, começa com o homem que não quer ver ou ouvir o que o aflige, o que o fere, o que o pisa. A chamada é de atenção para o que lhe dói, uma dor interior, não física, que se estende na morte por fome de um menino em Sarajevo, captada pela câmara de Paulo Nozolino em 1997, dois anos depois do fim da Guerra da Bósnia, ou simbolizada na mácula do “Véu” rasgado de Rui Chafes, qual ferida aberta no chão. Associações inconstantes entre as peças dos três artistas que se dividem por mais de 400 metros quadrados, na Galeria 4 do Centro Georges Pompidou até 22 de agosto. São seis salas numa encruzilhada de corredores que ditam com um impacto raro a nobreza de uma realidade que o mundo cada vez menos consegue esconder.
“É um espaço quase urbano. São ruas e casas assimétricas, diagonais, como nas Fontainhas. Casas onde se entra e sai, ora à direita, ora à esquerda, sem saber muito bem que rua tomar. Tanto se pode ver tudo como faltar ver alguma coisa.” A ideia é desenvolvida por Rui Chafes, que mostra as suas esculturas tanto em locais de passagem, como em salas mais definidas, sem que, no entanto, se assemelhem a espaços museológicos. Ali, as obras dos artistas absorvem aspetos de umas e outras, num crescendo de linguagens diferentes que ora tocam o real de forma mais evidente, ora o representam de modo alegórico, pictural, imaginário.
“Estamos a caminhar cada vez mais para uma sociedade menos humanista”, diz Paulo Nozolino, apontando o dedo à ganância, à usura, ao poder, ao seu declínio, ao erro sistemático que a história não apaga. “Ao filmar e ao fotografar a realidade, eu e o Paulo, não podemos camuflar nada”, avança Pedro Costa que reconhece que, como cineasta, prefere poder proceder como um fotógrafo, um escritor, um antropólogo, um sociólogo ou mesmo um repórter.
“A investigação” em curso tem a realidade como ponto de partida progredindo para a análise de uma situação particular que se assume sempre como universal. “O cinema é a ferramenta que tenho para ver o mundo e as suas temperaturas. Escolhi há muito um dos lados, este lado”, continua Costa. Essa escolha assumidamente política aponta para um caminho que põe em primeiro lugar a condição humana e a sua situação real. “O que me interessa é o declínio da civilização nestes últimos cem anos de história. Desde a I Guerra Mundial até hoje, os conflitos por que passámos evidenciam sempre essa decadência física e moral. Ela é a matéria-prima do meu trabalho”, afirma Paulo Nozolino. “É esse lado mais negro do ser humano, o lado a que ele volta sempre, como se da sua essência se tratasse”, continua.
Entre estas paredes cerradas de uma cenografia assinada por Isabelle Raymondo há a vida que se escrutina, aquela que podia ter sido qualquer coisa, mas que, afinal de contas não foi, há o eu e o seu fantasma, o alter ego e o carrasco, a violência da destruição nos subúrbios de Lisboa, como noutro qualquer ponto do globo, como espelham as sequências dos trabalhos de Pedro Costa, “Cavalo Dinheiro” (2014) e “No Quarto da Vanda” (2000). Há o sagrado, o profano, a religião, a fé, ou a descrença, o bem e o mal, cujos símbolos as fotografias de Paulo Nozolino tão bem registam. Mas há também o que acresce com as novas esculturas de Rui Chafes, realizadas especificamente para esta exposição, e que se traduz em representações mais “fantasmáticas” longe daquilo que consubstancia “a superfície do mundo”, mas que a ela dizem respeito. São densas, pesadas, desequilíbrios naturais que surgem como formas torturadas, corpos que não apontam para o céu, antes caem por terra, num volume carregado de tensão.
E se o ar se escapa enquanto os trabalhos se distribuem pelas ruelas desta metrópole coletiva e dão conta de uma sociedade partida em dois universos distintos, a nu, a preto e branco, crus, sem alternativa, é de uma atmosfera de sopros que falamos quando entramos na maior das salas da exposição. É lá que “As Filhas do Fogo”, de Pedro Costa, se juntam pela segunda vez, a primeira foi em Serralves, com “As Tuas Mãos”, de Rui Chafes. Cinco ecrãs com cinco rostos de mulheres disseminam o nosso olhar por sete esculturas que flutuam. O ar passa, entra e sai e ganha-se fôlego para voltar à concentração que todo o resto da mostra exige.
“O resto é sombra”, assim se traduz o subtítulo da exposição, e o verso de Pessoa não diz mais do que a verdade, agarrando a oportunidade do lugar para declarar ao maior número de pessoas possível que o que importa está ali, que enquanto o mundo pecar por falta de soluções, por falta de recursos e por falta de igualdades, não valerá a pena iluminar o que já tem luz. Deixe-se na sombra. Não interessa. Não passa de um resto.