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Na semana em que regressa o campeonato nacional, talvez a melhor forma de nos prepararmos para a época que está aí à porta não seja através dos guias dos jornais desportivos, repletos de informações estatísticas e rescaldos do mercado de contratações. Talvez o mais sensato seja comprar o livro de crónicas de Nelson Rodrigues, Brasil em Campo, que o leitor incauto lerá apenas como um conjunto muito interessante de textos acerca do Brasil, do Fluminense e do escrete nos anos 50, 60 e 70, mas onde um olhar mais atento descortinará paralelos consideráveis com o nosso futebol. Senão vejamos:

“Brasil em Campo”, de Nelson Rodrigues (Tinta da China)

João Saldanha — Scolari — Fernando Santos

Numa das crónicas que dedica a João Saldanha, selecionador da canarinha de 1969 a 1970, Nelson Rodrigues elogia o seu amigo dizendo que ele é um homem que tem os defeitos necessários para levar o Brasil à glória no Mundial de 70.

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A ideia de escolher um treinador por este ter os defeitos necessários pode parecer absurda a muitos, mas a verdade é que não existirá possivelmente justificação mais acertada para os resultados obtidos pelos dois selecionadores mais bem-sucedidos da história do futebol português: Scolari e Fernando Santos.

Scolari era teimoso e tinha poucas ideias e foi a sua teimosia e falta de ideias que nos levou à final do Euro-2004. A sua teimosia afastou de todas as convocatórias, sem motivo aparente, Vítor Baía, o jogador mais titulado da história do futebol português e titular da equipa vencedora da Liga dos Campeões dessa época. Ricardo seria o titular e, tomado de um inusitado furor divino, desatou a defender penalties contra a Inglaterra. Após a primeira jornada do Europeu, rendido à evidência de que, não tendo qualquer ideia melhor, seria preferível optar pelo onze-base da equipa que nesse ano tinha vencido tudo em Portugal e na Europa, trocou sete jogadores e construiu um altar à Nossa Senhora de Caravaggio, velado noite e dia pelo muy nobre e sempre leal Murtosa. Resultou.

João Saldanha, Luiz Felipe Scolari e Fernando Santos

Fernando Santos é menos teimoso do que Scolari, mas tem porventura ainda menos ideias. Depois de três empates contra equipas banais na fase de grupos do Euro-2016, optou por se render incondicionalmente à sua falta de plano de jogo e entregou o meio-campo da seleção ao trio titular do Sporting, equipa que, bravamente, ombreara até à última jornada contra o indomável e majestoso campeão nacional dessa época. Enquanto os adversários estupidamente desperdiçavam horas e recursos a analisar as transições da equipa das quinas, o resiliente engenheiro gastava o tempo de que agora amplamente dispunha a construir o maior altar de fósforos a Nossa Senhora de Fátima da história do Ocidente. Resultou.

Vicente Feola — Rui Vitória

Ao escrever sobre Vicente Feola, selecionador que levaria o Brasil à vitória no Mundial de 1958, Nelson Rodrigues afirma que confia em Vicente Feola porque Feola é gordo: “Uma de suas consideráveis vantagens de homem e, atrevo-me a dizê-lo, de técnico está nesta circunstância, que ele deplora e repudia. Numa terra de neurastênicos, deprimidos e irritados, convém ter o macio, o inefável humor dos gordos. A banha lubrifica as reações, amacia os sentimentos, amortece os ódios, predispõe ao amor.”

Incompreensivelmente, nunca nenhum jornal desportivo me pediu que justificasse as épicas conquistas do Benfica em 2015/16 e 2016/17, mas se o fizessem, certamente não definiria como momento-chave a aposta em Renato Sanches, a deslocação de Pizzi para a direita, o falhanço de Bryan Ruiz ou as provocações de Jorge Jesus. O factor decisivo para este rigoroso analista que vos escreve foi um que nunca os Luíses Freitas Lobos enxergaram. O Benfica só é tetracampeão graças à anca de Rui Vitória.

Vicente Feola e Rui Vitória

Nos primeiros dois anos de Benfica, Rui Vitória coxeava. Um coxear que dava ao ribatejano uma aura de forcado melancólico. Privado de enfrentar os touros que o seu colega do outro lado da Segunda Circular rabeava semana após semana, Rui Vitória andava cabisbaixo e as vitórias não lhe davam qualquer alegria. A melancolia de Rui Vitória contagiava as suas tropas que iam somando sucesso atrás de sucesso, na certeza porém de que o seu comandante coxo os encaminhava para um desfiladeiro, o que dava ao primeiro lugar, que entretanto haviam recuperado, a exuberância de um funeral. O Benfica sagrou-se campeão convencido de que o pior ainda estava para vir. No ano seguinte, Rui Vitória repetiu a dose e o departamento médico do clube da Luz, com o seu característico sentido de oportunidade de um porco na auto-estrada, decidiu premiar o tetracampeonato de Rui Vitória com uma bem-sucedida operação à anca, numa cirurgia que corrigiu definitivamente a marcha vitoriosa do Benfica.

Rainha de Inglaterra — Eusébio

Haverá por certo mil e um motivos para que à frente de uma das entradas do Estádio da Luz se encontre desde 1992 uma estátua do Eusébio, mas para mim o mais relevante aconteceu a 23 de Maio de 1990. O Benfica preparava-se para disputar a sétima final da Liga dos Campeões da sua história com o AC Milan e Eusébio, que percebia mais de futebol do que todos os Sarris deste mundo, dirigiu-se à campa de Gutman e, de joelhos, rogou ao treinador bi-campeão europeu para que retirasse a sua maldição. Os idiotas da objectividade dirão que isto não passou de uma superstição absurda, mas os idiotas da objectividade não percebem nada de futebol.

Isabel II e Eusébio

Aqueles que menosprezam a sorte no futebol nunca perceberão que o sucesso do Benfica naquela final dependia mais do Eusébio, ajoelhado no cemitério de Viena, do que do Magnusson, plantado na grande área milanista. Tal como nunca perceberão que a substituição do Gaitán pelo Roderick Miranda não contribuiu tanto para o repugnante golo do Kelvin como a irreflectida escolha de roupa interior do senhor que se senta duas filas à minha frente no Estádio da Luz. Tal como nunca perceberão que se o Brasil perdeu por 4-2 com a Inglaterra em Wembley foi porque, como explica Nelson Rodrigues, os ingleses tinham uma rainha e os brasileiros nem uma marquesa de Santos.

Os imparciais e os outros

Nelson Rodrigues previu também os comentadores e analistas futebolísticos portugueses, que se podem dividir em duas grandes categorias: os imparciais, que juram a pés juntos não ter clube e que se garantem capazes de ver as coisas como elas são, mas em quem o mestre carioca não confiaria porque “sem um mínimo de paixão não se consegue chupar nem um Chicabon”, e os outros. O meu coração sempre pertenceu aos outros. Há alguns anos, os outros percebiam confusamente uma verdade cara a Nelson Rodrigues: para falar de futebol podemos não dizer nem uma palavra sobre bola. Essa percepção confusa levava-os a, sem qualquer vergonha na cara, ocupar uma hora e meia de prime-time em todos os canais de notícias a discutir, em programas supostamente dedicados ao desporto-rei, enormes comezainas que tinham tido em Miranda do Douro, prazenteiros jantares-convívio no núcleo sportinguista de Aljustrel e encontros fortuitos em restaurantes de Gaia. Os cretinos fundamentais rasgavam as vestes, mas o meu coração balançava.

Até que certo dia, quando já me preparava para os ver chegar de babete, leitão e espumante ao estúdio, deixaram de falar de restaurantes para falarem de cheques-refeições em restaurantes na zona do Alto dos Moinhos. A princípio não estranhei mas, subitamente, as conversas abandonavam o cenário de um restaurante perdido em Moreira de Cónegos para se mudarem para Silicon Valley. Os simpáticos e gordos bonacheirões transformavam-se agora em magros raivosos, que nem por um segundo se deixariam seduzir por um valente arroz de lampreia. Ainda que a saudade os levasse a, uma vez por outra, evocar polvos, cada vez mais preferiam falar de contas de e-mail. Cabisbaixo, vi-me forçado a dedicar-lhes tanto interesse como aos imparciais.

Os cretinos fundamentais e os idiotas da objectividade

Sempre que dois ou três se reunirem para discutir futebol, no meio deles estará um idiota da objectividade. Há sempre aquele amigo que responde ao nosso entusiasmo com estatísticas aborrecidas, que responde a pontapés de bicicleta com um desesperado apelo à eficácia, que responde a hat-tricks com a imperiosa necessidade de redução de passivo, que se ri de nós quando lhes garantimos que um miúdo de dezoito anos nos vai levar pela primeira vez nas nossas vidas à tão sonhada vitória na Liga dos Campeões.

Os idiotas da objectividade deveriam, por lei, ser forçados a andar cobertos com um manto e de sineta na mão a anunciar a sua enfermidade. No entanto, ainda assim, talvez sejam preferíveis aos cretinos fundamentais. Os cretinos fundamentais são, nas palavras de Nelson Rodrigues, narcisos do avesso, que só sentem prazer em anunciar a desgraça iminente, como se pessimismo fosse sinal de inteligência. São uns “impotentes da admiração”, que só ficam satisfeitos quando têm a oportunidade de denunciar a falta de consistência táctica do nosso futebol português. Felizmente, para curar um cretino fundamental temos um remédio eficaz à mão: basta comparar o campeonato que começa sexta-feira com o campeonato português nos anos 90 para que o seu rosto irradie felicidade e esperança. Para onde foram os Chippos, os Emílio Peixes, os Sabers, os Quim Bertos, os Dudics, os Michael Thomas?

Michael Thomas, aqui como jogador do Liverpool

É verdade que os valores que se praticam hoje em dia não têm comparação possível com os valores de há vinte anos, mas basta chamar à parte um qualquer cretino fundamental e sussurrar-lhe que o avançado do Benfica em 1998 era o Brian Deane para que o cretino cubra a cara de vergonha. Em 1998, a super-estrela de um Benfica moribundo era um avançado que saiu pelo irrisório valor de quatro milhões e duzentos mil euros para uma equipa menor do futebol europeu. Hoje em dia, o Benfica respira saúde financeira e tem no seu plantel talvez o melhor avançado dos últimos trinta anos. Um avançado que no ano passado marcou mais golos do que qualquer outro jogador na Europa. Um avançado que, por certo, acabará a carreira no Benfica, mas que, se um dia saísse, jamais iria para um qualquer Middlesbrough e, ainda que por absurdo o fizesse, nunca mas nunca pelo preço a que o falido Benfica vendeu um qualquer Brian Deane.

Um cenário desses não caberia na cabeça nem do cretino fundamental mais resiliente e não caberia porque qualquer cretino sabe que hoje em dia o nosso futebol rivaliza com o futebol de qualquer outra liga europeia, porque sabe que um grande português é hoje capaz de bater o pé a qualquer Real Madrid que nos apareça pela frente, porque sabe que o nosso futebol está finalmente em boas mãos. Por isso, meus caros, façam como Nelson Rodrigues: para o elogio berrem e para a crítica sussurrem. Vai começar o campeonato português e temos todos razões para festejar.