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O português Leandro Carreira tem 26 anos de carreira na cozinha e trabalhou em alguns dos melhores restaurantes do mundo.
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O português Leandro Carreira tem 26 anos de carreira na cozinha e trabalhou em alguns dos melhores restaurantes do mundo.

Diogo Lopes/Observador

O português Leandro Carreira tem 26 anos de carreira na cozinha e trabalhou em alguns dos melhores restaurantes do mundo.

Diogo Lopes/Observador

O que leva um restaurante promissor a fechar portas? Leandro Carreira e o fim do Londrino

Londrino, o primeiro restaurante deste chef português que fez nome em Inglaterra, fechou há semanas. O Observador foi ter com ele para perceber o que corre mal quando tudo aponta para o contrário.

A noite já começa a cair sobre Londres quando, por entre chuva miudinha, aparece o chef Leandro Carreira. De mochila às costas e gorro preto, o português sorri: “Então, tudo bem?”, pergunta ao Observador. A Bermondsey Street fervilha com movimento, várias pessoas já se espalham pelos vários bares e restaurantes de aspeto moderno que espreitam a cada esquina e é num estabelecimento desse género, um pub de ar saudável e clientela jovem, que Leandro fala sobre o Londrino, o restaurante que encerrou há pouco menos de uma semana.

Nesta área é pratica comum noticiar aberturas, renovações ou expansões. Explicam-se novos conceitos, dissecam-se tendências e inspirações, e isso tudo é interessante, não haja dúvida. Num mundo que cada vez mais se desmultiplica em novidades e inovações, é entusiasmante estar a par do que vem a seguir mas, muitas vezes, ignora-se todo um outro lado. O do insucesso.

O “altamente antecipado” — como dizia a prestigiada revista Wallpaper — restaurante de estreia deste leiriense foi o culminar de quatro anos de preparação, estudo, investigação e desenvolvimento da comida “demasiado agressiva por ser tão simples”, como o próprio cozinheiro a descreve, que passou pelas mesas deste Londrino durante menos de um ano. Com mais de 25 anos de carreira (16 deles passados em casas prestigiadas como o célebre Mugaritz de Andoni Aduriz ou o Viajante de Nuno Mendes), Leandro é um dos cozinheiros mais prestigiados do panorama foodie inglês e tinha tudo para fazer o seu Londrino brilhar: a visão, a técnica, o planeamento, o impacto mediático e até a experiência. Contudo, nada disso foi capaz de impedir o final menos feliz desta sua aventura. “Mas porquê?”, tornou-se a grande questão.

Leandro Carreira no seu antigo restaurante, o Londrino.

Foi durante duas horas e duas cervejas que o português tentou dissecar e explicar aquilo que aos seus olhos  justifica o desfecho triste de um projeto que extremou posições: uns odiavam-no e outros apontavam-no às estrelas Michelin. Porque falham os restaurantes, até mesmo os que parecem sucessos garantidos mesmo antes de saírem do papel? Como se equilibra cabeça e  coração quando o futuro já aponta para o fracasso? Como estará o mundo da restauração a mudar e como é que isso pode matar um projeto que tinha tudo para vingar? O que podem os restaurantes portugueses aprender com os londrinos (ou melhor, Londrinos)? É a perguntas deste género que Leandro tentou responder e cujas respostas pode encontrar já a seguir.

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Já fez uma semana que o Londrino fechou?
Faz amanhã, quinta-feira [7 de março], uma semana, sim.

E como é que tudo aconteceu?
Aconteceu porque a cidade está a comportar-se de uma maneira um bocado estranha… Nós estávamos a sofrer financeiramente com muitas coisas. O espaço talvez também fosse grande demais, a localização , se calhar, tão pouco era a ideal…

Deu para perceber ao certo o que fez tudo ruir?
Sinto que a pouco e pouco estou a entrar na realidade, com um olhar diferente, e a tentar ver o que se passou com as emoções à parte. Perceber o que levou a isto sem contar apenas com os problemas que afetam a indústria. O tamanho talvez tivesse sido demasiado ambicioso… Não é que um sítio com 70 lugares fosse muito grande, mas talvez tivesse sido demasiado para o tipo de oferta que estávamos a fazer.

Como era essa oferta?
O Londrino não era um restaurante convencional para nada. Sinto que estávamos a fazer coisas muito fora do seu tempo, se calhar…

A sala de refeições do Londrino. O candelabro ao centro é o motor de um avião De Havilland antigo.

Mas Londres já não corresponde à ideia de cidade aberta e virada para o futuro que sempre teve?
Deveria ter pensado nisso [risos]. Estive no Viajante com o Nuno [Mendes, outro chef português em Londres que tem somado uma série de sucessos] aqueles três anos e realmente também nos custou muito ter aquele mecanismo sempre a engrenar — e na altura só servíamos 30 pessoas. Devia ter aprendido. Ao longo dos anos a cidade também vai mudando.

Como sente que ela mudou, então, desde a abertura do Londrino até ao dia em que fechou?
Há realmente muitas oportunidades cá e as coisas mudaram bastante mas, isto na minha ótica e com base no que falei com outros colegas, não existem muitos espaços a fazer o que nós fazíamos, o tipo de comida que servíamos. Isso cria uma distância entre ti e o público porque há muitos restaurantes mas é tudo no mesmo tom — seja o preço, a oferta… Isso criou uma grande disparidade.

A comida que servia era diferente de que forma, então?
É sempre um dilema porque nunca fomos um restaurante português — e eu nem queria que fôssemos. Agora, nunca escondi de onde vinha, as minhas raízes. Nós inspirávamo-nos em coisas muito antigas, receitas portuguesas clássicas.

Serviam pregos no pão, por exemplo…
Sim, claro! No bar. A nossa comida portuguesa tem um cariz muito especial: ela é demasiado agressiva por ser tão simples, é a força do produto que nos guia, não tanto as técnicas. Eu entendo que seja difícil para as pessoas perceberem, tinhas de ser um comensal minimamente culto. Isto era, no fundo, um restaurante que funcionava para um nicho. Foi o tal erro que cometemos: achávamos sempre que íamos conseguir trazer mais pessoas para o restaurante para além dessas. Mas na verdade não…

Sente que foi prejudicado por ter sido um dos primeiros a lançar-se neste tipo de comida?
Talvez. Como te disse: Há muito poucos sítios a trabalhar como nós trabalhávamos, a forma como estávamos a cozinhar. Nós nunca comprometíamos, nunca baixávamos a guarda.

"Os senhorios estão a matar a nossa indústria... As grandes cadeias contribuem imenso para isso porque são as únicas entidades que conseguem pagar as autênticas fortunas que cobram todos os meses."
Leandro Carreira

O Mugaritz, por exemplo, também é descrito como tendo muitos pratos demasiado “cerebrais” ou “conceptuais”, que não sabem necessariamente bem…
Sim, sem, dúvida! Posso dizer que tive essa liberdade, de pensar assim, que é um luxo. Pode-me ter custado caro… Enfim, custou mesmo [risos] porque levei muito tempo a planear tudo isto. De certa forma levo isso como uma grande satisfação que tive.

Quanto tempo esteve a preparar este projeto?
Quatro anos…

Ia tendo noção de que as coisas não estavam a correr bem ou houve um momento específico em que caiu em si e percebeu que já não havia volta a dar?
Tive um momento desses há uns meses, sim, depois do verão. A época foi mesmo horrível, essa altura do ano, em geral, para esta cidade, não é muito boa para a indústria (a menos que estejas em Central London). Depois as rendas aqui… Os senhorios estão a matar a nossa indústria… As grandes cadeias contribuem imenso para isso porque são as únicas entidades que conseguem pagar as autênticas fortunas que cobram todos os meses.

Dado esses problemas todos, sente que Londres ainda é uma grande capital gastronómica?
Sim, ainda é. Londres tem grandes restaurantes e bares. Para a nossa indústria é fantástico, agora sempre pensei é que fosse uma cidade mais aberta do que era. Às vezes penso se este projeto, noutra cidade da Europa, teria tido mais sucesso…

Era o que lhe ia perguntar…
Sim. Talvez na Dinamarca ou algo do género. Até mesmo em Paris…

Porque poderia funcionar nesses sítios e aqui não?
As pessoas de cá não são sofisticadas o suficiente. E não digo isto só porque fechámos o restaurante, já falo disto há algum tempo e alguns colegas partilham da mesma opinião. No geral, isto é tudo a combinação de uma série de fatores, uma espécie de algoritmo. Como sabes, nos últimos anos, os restaurantes viraram uma coisa de nicho, o que é uma estupidez. É uma receita para a destruição. Isso, o “social media”, esse exército de críticos que chovem de todos os lados…

Um dos pratos mais famosos do Londrino era este polvo com miso.

“Influenciadores”, também…
Wow, disseste a palavra chave [risos]! Acho que eles foram outro problema que tivemos — nunca papámos grupos, como se costuma dizer. Nós éramos um restaurante que estava sempre em movimento, não fazíamos seis pratos de inverno, que mudávamos para outros seis na primavera e por aí adiante. Não. Acontece que isto para esses influencers, estes “novos críticos”, é uma dor de cabeça. As pessoas vinham, tiravam uma foto, punham nas suas redes sociais e toda a gente dizia: “Uau! That looks amazing!” [“Uau! Isso tem um aspeto incrível!”]. Uns dias depois aparecia alguém no restaurante que nos chamava e perguntava — segurando no telefone — se tínhamos aquele prato que tinham visto no Instagram. Isto acontecia assim. Pessoas chegavam lá com os seus telemóveis e pediam a comida apontando para fotos que viam nas redes… Obviamente que muitas vezes já não tínhamos esses pratos e dizíamos isso às pessoas. Elas simplesmente iam embora. Isto aconteceu… Mesmo. Isto cá é muito agressivo. Digo-te estas coisas mas este não é o principal motivo para o restaurante ter fechado… Faz parte do tal algoritmo que te falei, uma conjuntura.

É engraçada essa relação dos restaurantes com as redes sociais. Enquanto por um lado é ótimo dar a conhecer e mostrar este mundo, fazê-lo chegar a mais pessoas, ao mesmo tempo elas também podem ter um efeito adverso…
Esse efeito adverso é o facto das pessoas se limitarem a consumir apenas uma imagem. Olhas para uma fotografia e quase automaticamente formas uma ideia (errada) daquilo que achas que vais provar. Aquilo tem de saber assim, ter o aspeto assado… Acontece que nem todos os polvos são do mesmo tamanho, as cebolas não são todas iguais. Qualquer disparidade que houvesse as pessoas começavam logo a refilar. Eu tinha muita dificuldade em lidar com isso, mesmo muita.

Saiu das redes sociais, portanto?
Totalmente. Fartei-me disso tudo, acho que é muito, muito tóxico. Passou a ser uma praça pública, um sítio de lavar roupa suja que é mesmo nojento.

"Estes gajos só gostam de comer o que gostam de comer, esse é o grande problema. Há uma diferença entre seres assim ou ires a um sítio e dizeres: "Realmente, estes gajos aqui fazem coisas fixes." Podes não gostar mas percebes que há ali alguma coisa diferente."
Leandro Carreira

Se por um lado existem estes “influenciadores” que nem sempre têm conhecimento de fundo para fazer crítica gastronómica, por outro há os críticos profissionais, que trabalham em muitos dos grandes jornais britânicos. Duas das críticas feitas ao Londrino, por exemplo, não podiam ter sido mais contraditórias: O Tim Hayward [crítico do The Financial Times], por exemplo, perguntou-vos “onde estava a ‘deliciosidade'”. Já a Grace Dent, do Evening Standard, disse que vocês estavam na vanguarda da cozinha moderna e que seguramente iam ter uma estrela Michelin. Como se lida com este tipo de opiniões?
Obviamente levas mais a sério opiniões de pessoas como estas, mais cultas na área. Ao mesmo tempo também é um bocado “whatever“… Estes gajos só gostam de comer o que gostam de comer, esse é o grande problema. Há uma diferença entre seres assim ou ires a um sítio e dizeres: “Realmente, estes gajos aqui fazem coisas fixes.” Podes não gostar mas percebes que há ali alguma coisa diferente. Já comi umas 15 ou 16 vezes no Mugaritz e metade das refeições que tive não foram saborosas. Preenchiam outros requisitos, para mim. Eu não tinha um restaurante como o Londrino para isso, mas que todos os pratos que servíamos não eram deliciosos, isso não eram.

A esmagadora maioria dos clientes espera comer coisas deliciosas vindas de um cozinheiro… Como é que não o fazer consegue fazer sentido?
Tu gostas de batatas fritas moles?

Não…
Nem tu nem 99.99% das pessoas. E porque gostas delas firmes? O que as faz ficar duras? É a textura, não é? Ninguém pensa nisso quando está a comer! O Tim Hayward quando está a comer batatas fritas não pensa que ela é ‘crispy’ por alguma razão, se ela fosse mole ele ia odiar. Esse fator, esse extra, nunca entra na cabeça desta gente. Nunca! É mais fácil dizer logo que é horrível.

É tentar ir para lá do óbvio que falta a muita gente?
Sim, exato. Há outras coisas!

Mas não fazia pratos pouco saborosos de propósito…
Não, nunca fizemos coisas que fosse horríveis, atenção [risos]. Nunca foi do género: ‘Senta-te aí que agora vou levar-te numa viagem ao inferno’ [risos]. Nada disso. Agora, se me perguntares se fazíamos pratos muito gulosos, isso não. Fazíamos coisas muito delicadas, sensíveis, difíceis… Eu entendo perfeitamente que existissem coisas mais difíceis de absorver, mas só o eram por serem tão diferentes. Era tão simples que era agressivo, lá está…

Quando a crítica desse Tim Hayward saiu não houve algum momento em que tenha questionado o que estava a fazer?
Não. Não.

Como se percebe, então, quando é que faz sentido ou não ouvir o que os críticos dizem? Não deve ser uma fronteira fácil.
Nós nunca ignorámos o que as pessoas escreviam, agora não estávamos era ali a analisar à letra o que tinham dito. No dia a seguir estávamos a fazer o mesmo, não retocámos nenhum prato que o Tim Hayward não tivesse gostado.

"O Ferran Adrià sempre dizia que não se conseguia fazer vanguarda se não se tivesse um lado tradicional. Como podes ser um crítico se nem entendes as bases de onde essa comida vem?"
Leandro Carreira

Na prática, que resultado sentiram dessas críticas?
Houve um reflexo quase imediato. No caso do Tim, passado uns dias, houve logo pessoas a não aparecer no restaurante. Também tivemos o contrário, pessoas que nos queriam conhecer precisamente por ele nos ter criticado. Do género: “Deixa lá ver o que este gajo está a fazer”. Muito sinceramente, só respeito uma mão cheia de críticos na Europa, nenhum em Inglaterra.

Por achar que não têm uma mente aberta ou por não terem conhecimento suficiente?
Como em tudo, acho que tens de ter sempre uma base. Já tenho 26 anos de carreira, já fiz tanta coisa na vida e faço este tipo de comida porque tenho os alicerces para a fazer. O Ferran Adrià sempre dizia que não se conseguia fazer vanguarda se não se tivesse um lado tradicional. Como podes ser um crítico se nem entendes as bases de onde essa comida vem?

E acha que o papel do crítico pode vir a desaparecer em detrimento dos “influencers”, por exemplo?
Hum… Não me parece. Eu acho que este exército de humanos que andam por aí com as suas canetas eletrónicas, certamente não durarão para sempre. Para te dar um exemplo: nós trabalhámos sempre com uma amiga que fazia relações públicas, que já conheço há muitos anos. Abrimos o restaurante: Eu já estava com muito pouca paciência para esta cena das redes sociais e não queria estar encarregado de gerir as do restaurante. Insistiram comigo para criar uma conta do restaurante, que era algo muito importante. Eu acedi e contratámos uma pessoa para tratar disso. Fizemos uns jantares de influencers porque me diziam que este, este e aquele tinham, no total, um milhão de seguidores. Nunca soube o que isso significava, terem esses seguidores todos, mas acedi também. Digo-te que todas essas coisas que fizemos só foram boas para eles, para essas pessoas.

Fez um jantar de despedida especial, com vários amigos como o Nuno Mendes, certo?
Sim, convidei todos antes de fecharmos. Uma outra coisa de que falámos, por exemplo, foi de um outro problema que continua a existir, o facto das pessoas esperarem cada vez mais de ti e do teu espaço pagando cada vez menos. Ou seja, há uma relação muito curta entre o consumidor e o produto, ela dura apenas o tempo que eles demoram a devorar um prato. A maioria das pessoas está-se a borrifar para tudo o resto que está para trás disso. Isto não sou só eu, há toda uma cadeia… Aquele prato sai delicioso não só por causa do meu trabalho, há uma data de coisas antes disso. Quem paga isso? Isto é muito complicado… Há que pensar nisto, devia debater-se mais este tema. As pessoas não sabem, vão ao espaço ali do lado comer uma dourada que vem da Grécia e que foi alimentada com cocó de gato da China, pagam muito menos e dizem que é delicioso. Depois pões-lhes uma dourada selvagem à frente, mais cara mas infinitas vezes melhor, e dizem-te que é “escandalosamente mais cara”.

A versão de leitão da Bairrada que Leandro servia no seu Londrino.

Dá a ideia de que as pessoas desaprenderam a origem das coisas e que isso aconteceu no espaço de uns 30 anos, talvez…
Achas?! Menos! Estamos a falar de muito menos, uns dez, doze anos. Outra coisa interessante: A minha mulher passou-me um artigo no outro dia que dizia que o Reino Unido, na Europa, é o país com mais cadeias de restauração. Isso, para mim, só mostra uma coisa: O que as pessoas consomem mais vem de cadeias, é repetitivo, não pode ser fresco. Os supermercados deviam ser multados por servirem produtos fora da época, não faz sentido! É prejudicial para tudo! No resto dos países europeus vê-se precisamente o contrário, há menos cadeias e cada vez mais restaurantes independentes. Esse é o caminho, na minha opinião.

No meio de tudo isto ainda tem vontade de ficar por cá?
Estou a perder um bocado o apetite por isso. Vou começar um projeto novo, uma consultoria numa peixaria, em Chelsea, que à noite se transforma num bar de marisco. Uma coisa pequena, de 18 lugares.

Assume-se então que a médio/longo prazo sairá de Inglaterra?
Talvez, não sei. Já estou cá há demasiado tempo: saí de Portugal há uns 15 ou 16 anos e estou em Londres há oito. Adorava ir viver para Tóquio, assim de imediato era o sítio para onde ia logo. Aí seria muito feliz gastronomicamente. Eu estive lá a cozinhar 12 dias e aquilo que não é aceitável para a grande maioria dos ocidentais é o que eles gostam de comer.

Voltando atrás: quando estava para abrir o Londrino sabia que as coisas podiam acabar da forma como acabaram, certo?
Claro, temos de ter essa noção. Eu andava sempre com o coração nas mãos, pensava muito nas pessoas que estavam comigo. Se “arrastas”, de certa forma, cozinheiros e outras pessoas para virem trabalhar contigo, não lhes queres dar apenas conhecimento gastronómico, queres tentar proporcionar alguma estabilidade de vida. A partir do momento em que as coisas começaram a ficar mais sensíveis…

Até o primeiro-ministro António Costa chegou a visitar o Londrino.

Falava que o despertar para a realidade menos positiva deu-se no fim do verão de 2018… O que fizeram nessa altura?
Decidimos avaliar a situação, ver o que podia acontecer daí para a frente e mudámos uma data de coisas. A localização também não foi muito boa… Estamos em Bermondsey Street agora, que é super conhecida e tem vários restaurantes interessantes. Nós estávamos a dois minutos daqui e já se sentia uma diferença abissal. Rua deserta durante o dia…

Vê-se a regressar a Portugal?
Agora não. Se um dia voltasse era para ir para a Costa Vincentina, Aljezur, onde cresci. Não sei se regressaria para Lisboa, talvez fosse para o Porto. Se alguma vez fosse parar de novo a Portugal gostaria de abraçar um projeto que não se limitasse apenas à componente restaurante mas sim algo mais. Também tenho família, não posso não pensar neles. A minha mulher também trabalha nesta área… Vejo coisas muito interessantes a surgirem em Portugal e não necessariamente nos grandes centros, o que é muito fixe. Está-se a abrir mais o leque, as pessoas já vão a mais sítios, já viajam a Trás-os-Montes, zonas que há uns anos seriam menos óbvias. Regressando, seria para algo desse género.

Chegou-se a falar bastante de que o Londrino estava bem encaminhado para receber uma estrela Michelin, alguns até a davam quase como certa. Como era lidar com isso?
Eu sabia que não íamos ganhar por causa da variável que falámos antes. Nós não éramos um restaurante estável. Talvez em dois anos pudéssemos conquistar uma…

O guia acaba por ser mais liberal cá do que em Portugal, por exemplo…
Achas? Há restaurantes aqui em Londres com uma estrela Michelin que noutros países nem meia teriam. Há restaurantes em Itália que têm uma estrela Michelin e não deviam ter e vice-versa, isso acontece em todo o lado…

"Os portugueses -- e podes escrever isto -- são os piores clientes do mundo. Os piores. As pessoas mais incultas gastronomicamente que eu já vi."
Leandro Carreira

Mas nos primeiros tempos do restaurante nunca houve a sensação de que estava tudo a correr muito bem?
Os primeiros quatro meses foram muito fortes, trabalhávamos imenso e a coisa estava a prosperar, mas lá está, é aquele impacto inicial, o hype. Quando ele se vai embora fica a realidade… No meio desse entusiasmo inicial tens 50% de pessoas que nem sequer têm ideia de onde vão jantar ou o tipo de restaurante aonde foram parar. Os portugueses — e podes escrever isto — são os piores clientes do mundo. Os piores. As pessoas mais incultas gastronomicamente que eu já vi.

Teve más experiências?
O cliente generalista é horrível. Houve pessoas que perguntaram ao meu staff de sala, em português (eles eram ingleses), se tínhamos menus em português. Tivemos alguns casos deste género, infelizmente. Atenção, digo isto mas também há muitos portugueses que já vivem cá há algum tempo e que são interessados, partem para experiências deste género com uma mente aberta. As pessoas não têm de decorar uma enciclopédia gastronómica antes de irem comer, longe disso, devem é desafiar-se. Ir a sítios diferentes e não estar sempre na tasca do Zé Manel a comer as mesmas coisas. Isto é tudo uma questão de educação, educar o palato, a mente. As pessoas não podem comportar-se da mesma forma quer estejam num bistro ou num três estrelas.

O que tentaram mudar quando se aperceberam que o restaurante estava a descarrilar?
Contratámos um novo gerente, por exemplo. Tentámos apostar num engajamento diferente com os clientes. Eu adoro, mas senti que fui mesmo ao fundo. Durante muito tempo tentei não comprometer tanto, ser um pouco mais acessível e estável. Mas foi irrelevante. Já tinha a imagem do tipo que só fazia comida maluca.

Era assim que o viam?
Sim. Imagino-as a comentar “Vamos ali comer ao alien”.

Em concreto, afinal, que pratos seus é que podiam despertar essas sensações?
Muitos. Se um prato vendesse muito eu tirava-o da carta. Verdade. Eu quando vou a um sítio comer, inconscientemente acabo por pedir sempre a mesma coisa, há uma relação de conforto. Nós não queríamos ser assim. Um dos pratos mais famosos do Londrino era o polvo com miso — eu tirei-o porque as pessoas não queriam pagar o valor que ele tinha. Era muito bonito, os “instagrammers” adoravam-no [risos]. Até traziam estúdios portáteis para os fotografar! Esse prato podia encaixar-se nessa categoria.

Qual foi o prato mais estranho que fez?
Um dos que o Tim Hayward pediu e odiou [risos]. Uma cavala com uma coisa que se faz muito no Alentejo, um piso. Fizemo-lo de forma diferente, sem ser só com os coentros e o alho mas usando uma série de ervas silvestres que para mim fazem um ballet na tua boca. Não é guloso, lá está, é intelectual. Ele odiou aquilo e para mim era excelente.

Estava no restaurante quando ele lá foi? Reconheceu-o?
Não, não. Eu só conheço uns dois ou três e não faço questão de conhecer mais. Há uns que são anónimos, outros nem por isso. O Jay Rayner, por exemplo, entrou no Viajante um dia e ninguém deu com ele sem ser eu e o Nuno [Mendes]. Aqui há uns anos, quando estava no Mugaritz, o Alain Ducasse entrou pela porta a dentro e ninguém reconheceu o homem. O Andoni quase nos matou a todos [risos].

Independentemente das críticas boas e más, havia consenso nas vossas sobremesas, os gelados…
É verdade… Havia pessoal que ia lá de propósito só para os comer. Não eram gelados de chocolate ou de morango, eram de especiarias, coisas mais fora. Chegámos a fazer uma carta de gelados sazonal.

Pessoalmente, não tanto quanto cozinheiro ou empresário mas sim como pessoa que dedicou quatro anos da sua vida a algo que acabou por não correr bem, como foi lidar com tudo isto?
É difícil digerir. O pior é mesmo separar o lado emocional dos fatores racionais que te levaram a esse desfecho. O que se passou obviamente não tem nada a ver com as qualidades técnicas do cozinheiro ou da comida, mas isso não é uma análise fácil de fazer. O mais imediato é pensares que és um inútil, uma merda que só cozinha para um nicho que não te leva a lado nenhum. Na realidade não é isso.

A que é que um cozinheiro se agarra num momento desses?
Aos amigos, à família, à minha mulher que me apoiou desde sempre. Depois é o pessoal da indústria, muita gente que ainda me continua a enviar mensagens de força e apoio.

"Antes de abrir o Londrino o meu business plan era para abrir uma tasca. O meu financiador é que achou que eu conseguia melhor que isso. Eu queria fazer uma tasca com uma mesa. Elas não existem e são o melhor veículo para mostrar a comida tradicional."
Leandro Carreira

Há solidariedade entre vocês?
Sim. Cá também, mas ligaram-me logo do Japão, dos EUA, do Brasil… Tudo no mesmo dia, amigos que nem eram portugueses. Isto viaja muito rápido hoje em dia.

Como foi o último dia?
Foi fixe, muito atarefado. Tive a fazer de empregado de mesa, veio muita gente ver-nos.

Londres ainda é um destino recomendável para jovens cozinheiros que queiram aventurar-se?
Sim, há espaços muito bons para trabalhar. Recomendo a todos os jovens cozinheiros que estejam naquela de ir ou não ir para fora a atirem-se.

Chegou a ter muitos portugueses a trabalhar consigo?
Sim. Algum pessoal que já conhecia, pessoal que já viajou muito… Esses fazem muito a diferença. Os “tugas” que trabalharam aqui comigo e não tinham essa liberdade de pensamento não se aguentam.

E os não portugueses que trabalharam consigo como lidavam com o contacto com a comida típica portuguesa?Para eles isto era excelente, estavam a aprender coisas que desconheciam completamente. ‘Ah o que é um piso?’ — fazias-lhes um original e depois a tua versão e eles adoravam. Davas-lhes leitão com molho e eles ficavam ‘Eish!! O que é isto?!?’ [risos]. Antes de abrir o Londrino o meu business plan era para abrir uma tasca. O meu financiador é que achou que eu conseguia melhor que isso. Eu queria fazer uma tasca com uma mesa. Elas não existem e são o melhor veículo para mostrar a comida tradicional. Claro que ia ter de aprender a fazer comida típica no osso, mas pronto.

É intimidante, não?
Então não é? É uma responsabilidade enorme…

Abrir um restaurante em Portugal já tem custos elevados, em Londres deve ser bastante mais. Como foi a sua relação com o investidor do Londrino?
O papel dele é preponderante, claro. No final, eu sou apenas um cozinheiro, não sou um restaurateur. Sempre fui um cozinheiro, estudei cozinha, hotelaria, não social media ou gestão. Para esse lado mais importante, o económico, é importante ter alguém que perceba da coisa. Entre mim e o financiador havia o dinheiro e o know how de cozinha.

Estiveram sempre na mesma página?
Sempre. Em nenhum momento me disseram que a partir de determinada altura tinha de fazer isto ou aquilo.

Imagino que seja raro alcançar essa relação…
Bastante. Até ao final sempre nos disseram que a culpa não era da técnica mas sim de toda uma conjuntura de fatores que ditaram o insucesso. Não parecendo, isso é um aconchego no meio de toda esta porcaria emocional e financeira. Eu sou consciente de todo o investimento que houve. Se calhar dava para comprar três quintas em Portugal, mas pronto, é como eles dizem: Faz parte do jogo, do risco.

O momento em que decidiram que não dava mais foi há quanto tempo?
Uns dois meses, no início de janeiro.

Foi uma grande chapada de realidade?
Não, eu já estava mentalizado. Ninguém abre um restaurante para fechá-lo um ano depois, especialmente eu. Uma pessoa tem de ter um lado analítico cruel, mais duro, para perceber quando as coisas já se tornam mais insustentáveis.

Dizia que não é normal alguém abrir um restaurante para fechá-lo um ano depois. Num ponto de vista comparativo, este cenário é comum ou nem por isso?
Em Londres é comum, muito duro. Um amigo que abriu o seu projeto no mesmo dia do Londrino fechou em Novembro. Aqui abrem muitos restaurantes, mas também fecham imensos. No mês de setembro de 2018 abriram 52 restaurantes em Londres, num trimestre era um total absurdo de 250, ou algo parecido. Não é muito, estamos aqui a falar mas se pensarmos que na cidade há 16 mil restaurantes para nove milhões de habitantes… Tóquio tem 30 milhões e 125 mil restaurantes. Na volta Lisboa até já tem mais restaurantes per capita que Londres…

Olhando para trás, teria feito alguma coisa diferente?
Sim. Um restaurante para 15 pessoas [risos]. O Londrino tinha um bar — com carta de snacks, vinho a copo e cocktails muito interessante e acessível — que nunca funcionou. Eu nunca quis criar uma barreira física entre os dois sítios, o restaurante e o bar. Não queria que um canibalizasse o outro: um erro. Se aquilo tivesse uma parede seria diferente…

Quantas pessoas trabalhavam consigo?
No início éramos 34, no total. Mais para o fim já só tínhamos nove. Eu senti uma responsabilidade enorme em tentar ajudar todos os que conseguisse, encaminhar as pessoas para outros projetos. Felizmente consegui colocar todos. Ao menos isso.

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