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Sandra Cabrita explicou que estava com medo e temia pela sua vida e pela dos seus familiares. Apareceu na PSP pelas 16h00 do dia 8 de dezembro de 2017 — há mais de um ano — para se queixar do companheiro com quem vivia há seis anos e pai da sua filha de um ano e meio, à data. Falou das ameaças de morte que recebia, da pressão psicológica que Pedro exercia sobre ela e dos roubos de que era alvo.
O caso, avaliado como de risco elevado, foi seguido pelas autoridades. Sandra continuou a relatar, durante cerca de um mês, o comportamento do companheiro ao longo daquele período. Do rapto de 20 minutos às contínuas ameaças de morte, que levaram Sandra a mudar a fechadura de casa, tudo ficou registado num processo que o Observador agora consultou no Tribunal do Seixal. O caso acabaria por ser arquivado depois de Sandra ter desistido da queixa. O procurador considerou que havia falta de indícios e entendeu que não havia uma “possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança”.
Esta semana, Pedro Henriques consumou as ameaças que fez durante anos. Na passada segunda-feira — dia em que estava marcada uma audiência em tribunal para se decidir a guarda paternal de Lara –, dirigiu-se à casa da ex-sogra, Maria Helena Cabrita, no Seixal, onde a esfaqueou até à morte. A filha de dois anos, que tinha passado a semana com o pai, tinha ficado no carro enquanto o Pedro cometia o crime. Foi naquele carro que o corpo de Lara viria a ser encontrado, no dia seguinte, depois de ter sido asfixiada. Pedro suicidou-se horas depois, com a arma do pai, em Castanheira de Pera.
A queixa. Das fraudes às ameaças de morte
Depois de anos de ameaças, a noite de 26 de novembro de 2017 terá sido o impulso que lhe faltava para fazer a queixa, apresentada dias mais tarde. Nessa noite terá voltado a confrontar o companheiro com o facto de este lhe andar a roubar dinheiro — o que foi mesmo assumido pelo próprio Pedro, então com 38 anos, que estava economicamente dependente de Sandra. Durante os seis anos que já somavam a viver juntos, Sandra tinha vindo a aperceber-se das várias fraudes com cartões de débito e de crédito — todos em seu nome — de que tinha sido alvo por parte do companheiro. Apercebeu-se também que o pai da filha lhe teria retirado dinheiro de uma gaveta e que estaria a receber abono de família como monoparental, usando-o em seu benefício.
Nessa conversa, porém, Pedro ter-lhe-á apresentado duas opções: “Ou passamos uma borracha nisto e seguimos em frente ou, se não, é melhor a separação com guarda partilhada da menor”. Para Sandra, a proposta era “insustentável”, refere o processo consultado pelo Observador. O facto de Lara ser bebé e ter ainda de ser amamentada foram as razões apresentadas a Pedro para que este percebesse que a guarda partilhada não era opção. Ainda assim, Sandra terá garantido ao companheiro que este poderia ver a filha todos os dias.
A proposta não satisfez Pedro, que explicou que só sairia de casa se houvesse guarda partilhada da filha: dois dias em cada casa. Deixou claro que não aceitava qualquer outra proposta e terá até chegado a sugerir que poderia ficar ele com Lara, garantido à mãe que podia vê-la todos os dias. “Só saio daqui com guarda partilhada”, terá dito. Tentando dissuadi-lo — para Sandra, essa hipótese estava “fora de questão” –, explicou-lhe que nenhum juiz lhe daria guarda partilhada devido à tenra idade de Lara. “Então, tu assinas um papel a autorizar a guarda partilhada”, terá sugerido Pedro.
Foi neste momento, e perante a continua recusa da companheira, que Pedro começou a ameaçá-la: “Eu posso não ficar com a menina, mas vocês também não ficam. Eu mato-vos a todos, a ti e aos teus pais”. Assustada mas, ao mesmo tempo, tentando fazê-lo perceber que isso não lhe traria nada de bom, Sandra reagiu: “Se o fizeres, também não ficas com a menina porque vais para a cadeia”. Mas Pedro manteve a mesma postura: “Eu não me importo, mas vocês também não ficam com ela“, terá dito.
Sandra, então com 34 anos, contou ao pormenor o que se tinha passado nessa noite e explicou à PSP que Pedro não lhe lhe deixava ter contacto com amigos e familiares e só permitia que Lara estivesse com os avós com a sua permissão e por curtos períodos de tempo. Disse que esta situação lhe provocava “pressão psicológica, inquietação e medo, receando pela sua integridade física e dos seus familiares”, lê-se no auto da denúncia a que o Observador teve acesso.
As medidas da PSP — e a proteção que Sandra recusou
A PSP fez uma avaliação do caso e concluiu que era de risco elevado. Os episódios de violência eram cada vez mais frequentes e violentos, Pedro ameaçava matar Sandra e outros familiares e dizia, especificamente, que iria utilizar uma arma de fogo para concretizar as ameaças. Mas havia muitas outras razões para que a PSP tivesse considerado que havia uma necessidade de intervenção urgente neste caso. A começar pelas outras queixas-crime de que Pedro já tinha sido alvo e pelo facto de ter também fácil acesso a armas de fogo. Mais: questionada sobre se acreditava que o companheiro seria capaz de matar ou mandar matar, a resposta de Sandra foi “sim”.
Seixal. Ministério Público não autoriza cremação da avó de Lara
Perante isto, foi atribuído a Sandra o estatuto de vítima e, com ele, foi implementado um plano de segurança, “onde figuram procedimentos de segurança e contactos telefónicos”, “bem como entidades de cariz interventivo e apoio social, para futura necessidade e eventualidade”. A mãe de Lara, porém — e apesar de se ter assumido como vítima — não quis beneficiar desse estatuto nem quis acompanhamento policial ou ser colocada numa casa abrigo.
A avaliação do caso, ainda assim, levou a PSP a tomar medidas. Foi pedido ao Ministério Público (MP) que fosse aplicada a Pedro a “proibição de contacto com a vítima” e a “proibição de permanência na habitação” onde Sandra vivia. Propôs ainda que Lara fosse sinalizada à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Quanto a Sandra, foram adotadas uma série de medidas para a proteger e as autoridades da sua zona de residência foram alertadas para o caso. Além de recomendar que se afastasse de Pedro, “recorrendo por exemplo a uma casa abrigo” ou a casa de familiar ou “amigo da sua confiança” e de fornecer orientações de proteção pessoal, a PSP passou a contactar Sandra por telefone, periodicamente.
O primeiro contacto. O comportamento mais calmo e a mudança de fechadura
O primeiro desses contactos telefónicos de acompanhamento da PSP foi feito às 11h00 do dia 15 de dezembro — uma semana depois de a queixa ter sido apresentada por Sandra. A mãe de Lara contou que Pedro tinha saído de casa dois dias depois da apresentação da queixa. Até então tinha estado “calmo sem mostrar sinais de agressividade ou ciumes excessivos”.
Essa mudança de comportamento, acreditava Sandra, tinha sido motivada pelo “receio de que possa ser prejudicado aquando da regulação do poder paternal”. Ainda assim, continuou a vítima, tinha mudado de fechadura no mesmo dia em que o companheiro abandonou a casa onde viviam, por precaução. As declarações de Sandra acabariam por fazer com que a PSP retirasse a sinalização de Lara à CPCJ.
Nova ida à PSP. As ameaças de morte no Facebook
O comportamento não tardou a mudar. Três dias depois do primeiro contacto telefónico, Sandra dirigiu-se novamente à PSP. Explicou que “ao contrário do que se passara na semana anterior, que aparentemente estaria mais calmo, voltou a ameaçá-la bem como aos seus familiares”, lê-se no processo consultado pelo Observador. Pedro teria recorrido ao Facebook para ameaçar Sandra de morte, “caso esta não cedesse a guarda partilhada da criança“.
Pedro continuava a ver a filha, mas sempre em locais públicos. Sandra, como explicou, tinha medo que ele levasse Lara, “tal como já ameaçou fazê-lo”. O caso podia, no entanto, estar prestes a ser resolvido: dali a cerca de um mês, no dia 15 de janeiro de 2018, decorreria uma audiência para regulação do poder paternal, como informou Sandra à PSP.
20 minutos sem saber da filha. “Então, pensavas que eu a tivesse raptado?”
No dia 24 de dezembro, Sandra encontrou-se com Pedro num centro comercial no Seixal, para que pudesse ver Lara antes do Natal. O casal tinha acordado verbalmente que, enquanto aguardavam pela decisão do tribunal quanto à guarda da menor, Pedro podia ver e estar com a filha, dia sim, dia não, num local público, uma vez que Sandra “temia pela sua integridade física” e receava que Pedro raptasse Lara, “devido às ameaças feitas anteriormente”.
Durante o encontro, enquanto Sandra fazia um pagamento numa caixa de multibanco, Pedro desapareceu com Lara. A mãe ficou em pânico — recordaria mais tarde, a 9 de janeiro, quando se dirigiu novamente à PSP para relatar o que tinha acontecido. Vinte minutos depois, Pedro reaparece com a criança. “Então pensavas que eu a tivesse raptado? Não te preocupes que eu não o vou fazer pois quero a guarda partilhada”, terá dito.
Além deste episódio, Sandra explicou aos agentes da PSP que tinha voltado a receber mensagens de Pedro, “constantemente”, onde era “coagida psicologicamente” e nas quais o ex-companheiro utilizava Lara “para a fragilizar”. Pediu, por isso, à PSP que também isso fosse considerado na investigação.
A desistência da queixa. Sandra diz que acredita que Pedro venha a ter “um comportamento mais correto”
Vinte dias depois, porém, Sandra viria a retirar tudo o que tinha dito. Convencida, como explicou na altura, que Pedro viesse a “ter um comportamento mais correto para consigo”, dirigiu-se à PSP no dia 29 de janeiro do ano passado para explicar que não pretendia “dar seguimento ao presente processo-crime” e solicitou o arquivamento do caso. “A ora depoente não pretende dar seguimento ao presente processo-crime, solicitando o arquivamento dos Autos sem mais diligências e procedimentos”, lê-se no processo a que o Observador teve acesso.
A mãe de Lara, que não se fez acompanhar por nenhum advogado, esclareceu que o casal já tinha regulado “as responsabilidades parentais sobre a filha”. Ambos teriam acordado, quatro dias antes, que Sandra ficaria com a guarda da menor.
Procurador arquiva o caso por considerar que há falta de indícios
Perante a decisão de Sandra, o procurador adjunto responsável pelo caso, Joaquim Pedro Lopes Pereira, optou por assinar o despacho de arquivamento do caso. Explicando que os dois crimes não dependiam de queixa e que a desistência, por si só não implicava o fim do processo, o magistrado entendeu, ainda assim, que não havia “outras diligências que se justifique prosseguir”.
Joaquim Pereira considerou também que não existiam indícios suficientes. “Face aos elementos de prova recolhidos, que se limitam ao referido pela denunciante, que não chegou, inclusive, a confirmar a factualidade denunciada, entendo que não foram recolhidos indícios suficientes da prática dos factos denunciados“, diz o despacho a que o Observador teve acesso, onde se lê ainda: “Na verdade, atenta a prova carreada para os autos, entendo que não foram recolhidos indícios que permitam, sequer, considerar como fundada uma suspeita de que o denunciado Pedro Henriques praticou tais factos, como atualmente é exigido por lei”.
Assim, não foi deduzida qualquer acusação e Sandra deixou de ter o estatuto de vítima. “Uma vez que foi proferido despacho de arquivamento, declaro cessado o estatuto de vítima atribuído“, determina o procurador.
[Artigo corrigido às 17h28, retirando a informação, errada, de que os crimes de coação e ameaça dependem de queixa para avançarem e que o arquivamento do processo acontece por causa da desistência da vítima. Por esse erro, as nossas desculpas.]