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O regresso ao "Campo de Sangue" de Dulce Maria Cardoso

A propósito da reedição do primeiro romance da escritora portuguesa, o Observador publica um excerto escolhido pela própria. O livro será adaptado ao cinema e até ao fim do ano chega ao novo "Eliane".

Foi agora reeditado o primeiro romance de Dulce Maria Cardoso, Campo de Sangue, que chegou originalmente às livrarias em 2002. Esta nova edição, pela Tinta da China, recupera a história de quatro mulheres que têm em comum um homem acusado de ter matado alguém. Um julgamento, a sala do tribunal, os depoimentos, os acontecimentos que se sobrepõem e um livro que se desenrola como uma espiral.

Com adaptação ao cinema já confirmada, Campo de Sangue regressa pouco antes de Dulce Maria Cardoso publicar um novo livro. Eliete chegará até ao final do ano e é o primeiro romance escrito pela autora portuguesa depois de O Retorno, de 2011. A propósito da reedição de Campo de Sangue, o Observador publica um excerto escolhida pela escritora, apresentado por uma introdução assinada pela própria:

Comecei a ser perseguida por um homem no final do milénio. Era um exímio sedutor, conseguia seduzir quem quisesse e eu também não lhe escapei. Aparentemente, seduzir era a sua única ocupação, já que nada mais fazia. Com o tempo, vim a saber que ele tinha cometido um crime, o crime da pensão da Avenida. Tudo isto se passou na minha cabeça. Sabia, há muito, que queria ser escritora, mas mantinha-me presa a uma vida segura e confortável. Não era fácil entregar-me a um romance. Só que vinha lá o novo milénio, os tempos prometiam abundância, o futuro parecia intacto e eu recebi uma bolsa de criação literária. Foi assim que arrisquei começar a escrever sobre o homem. 

“Campo de Sangue”, de Dulce Maria Cardoso (Tinta da China)

“Estão quatro mulheres na sala. Destas mulheres é preciso saber antes de tudo que aqui vieram por causa de um homem que cometeu um crime e que se por acaso se encontrassem na rua não se cumprimentariam.

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Esperam. Em silêncio, sem saber o que fazer com as mãos e com os olhos. Ainda que prendam as mãos como às vezes fazem, entrelaçando‑as sobre o regaço, ou as libertem abandonando‑as sobre o banco de madeira, ainda que encontrem um sítio certo para as mãos, sobram os olhos que se desviam uns dos outros, os olhos que, elas sabem, só repousarão se fechados.

Mas as quatro mulheres têm de se vigiar, e por isso soltam os olhos na sala, deixam‑nos percorrer as paredes, retêm pormenores das paredes, tropeçam no reboco mais rugoso, uma pincelada de tinta mais carregada, uma dedada imperceptível, um insecto esmagado, os olhos ávidos esmiúçam tudo, fios de estuque estalado, uma saliência naquele canto, uma depressão mais ao fundo, os olhos cansam‑se, fecham‑se, abrem‑se ainda cegos, recomeçam, a mancha amarelada junto do rodapé…

Na verdade nenhuma das quatro mulheres quer ou sabe estar nesta sala tão acanhada. Sentem que qualquer voz será despropositada nesta sala desconfortável de luz turva, as quatro mulheres mantêm‑se caladas apesar da angústia de ali estarem, decifram barulhos que vêm de fora, o silêncio na sala permite‑lhes ouvir um carro que trava, um pássaro a piar, vozes, o som seco de uma porta que bate, as quatro mulheres inquietam‑se com o que não são capazes de identificar, será uma criança a chorar, gatas com cio, mexem‑se desconfortáveis nos bancos corridos de madeira, continuam atentas, inclinam mais a cabeça na direcção dos ruídos, fogem da sala entretidas neste jogo, gastam tempo, há um homem que tosse, sim, é claramente um homem que tosse, retornam aliviadas às mãos, as mãos têm tantas linhas onde se podem perder, a linha da vida, do coração e da saúde, uma cicatriz, linhas paralelas, perpendiculares, uma encruzilhada, a queimadura no forno, as unhas esgarçadas, as quatro mulheres, que se por acaso se encontrassem na rua nem sequer se cumprimentariam, esperam presas na luz turva da sala.

As outras mulheres olham‑na e nesse instante, quando os olhos lhe cercam as mãos, desiste do isqueiro, abre a cigarreira, espalha os cigarros para os ordenar de seguida, acende mais um cigarro que deixa a queimar, distraída, na mão magra de pele muito branca. Umas mãos de cera quase falsas, como ele sempre lhe dissera.

A segunda mulher, a ex‑mulher dele, olha por uma janela aberta que não dá para lado algum, ou melhor, dá para um saguão preenchido por outras janelas que também não dão para lado algum. É um paralelepípedo de ar, com faces cheias de bolor, um sítio feio para se olhar mas o único para onde os olhos fogem com segurança. É desta janela sem vista que entra o feixe de luz turva que ensombra a sala, mas a ex‑mulher sabe que lá fora está uma bonita manhã de Primavera e que no jardim a árvore‑de‑Judas está carregadinha de flores.

Com o cigarro apertado entre os dedos segue as espirais do fumo que se misturam na luz coada. Apaga o cigarro esborrachando‑o num pequeno cinzeiro portátil que guarda na carteira e recomeça a brincar com o isqueiro acendendo‑o várias vezes, provocando estalidos monótonos até que a pele do polegar da mão direita fica marcada por um vermelho‑clarinho, a roda metálica do isqueiro arranha‑lhe a pele, as outras mulheres olham‑na e nesse instante, quando os olhos lhe cercam as mãos, desiste do isqueiro, abre a cigarreira, espalha os cigarros para os ordenar de seguida, acende mais um cigarro que deixa a queimar, distraída, na mão magra de pele muito branca. Umas mãos de cera quase falsas, como ele sempre lhe dissera.

A terceira mulher, a senhoria dele, reconheceu a segunda mulher e repara que a cigarreira e o isqueiro parecem de ouro, podia jurar que eram de ouro, os dois objectos têm letras gravadas, entrelaçadas, decifra um esse, uma das letras é um esse, qual será a outra, a senhoria não consegue saber. Quando a ex‑mulher acende um cigarro a senhoria olha desafiadora para o aviso que está pendurado na parede, um círculo vermelho com um cigarro aceso cortado com um traço, sinal de leitura fácil que proíbe o fumo. A ex‑mulher segue‑lhe o olhar e puxa o fumo com indiferença. De manhã, o tabaco enjoa‑a, mas não sabe o que fazer na sala, está cansada de gestos, de fugir com os olhos, queima a espera nas pontas dos cigarros, o tempo incendiado paira sobre ela, suspenso. Acaba de fumar, deixa cair os braços, as inúmeras pulseiras douradas e finas tocam umas nas outras, por instantes um som de festa na sala. Levanta o braço direito, as pulseiras tornam a tilintar, limpa com cuidado as gotas de suor da cara, não quer estragar a maquilhagem, cruza as pernas com irritação, tira um livro do saco que tem pendurado no ombro, abre‑o com vagar na página dobrada no canto superior direito, deixa os olhos pousados nas letras, as palavras não a levam para fora da sala, ali fica, está cada vez mais enjoada, dobra a pequena marca no canto superior direito da página e guarda novamente o livro.

A ex‑mulher olha para as mãos da mãe. Os dedos deformados avançam mecânicos pelas contas do rosário, dedos encurvados, garras, um animal a sibilar rezas, fecha os olhos, com força, mais força, com os olhos bem fechados rebentam‑lhe nas pálpebras pequeninas luzes, a ex‑mulher conclui que nunca gostou da sogra e espanta‑se de como, presa no escuro guiada por pequeninas luzes que lhe rebentam nas pálpebras, percebe de forma tão irreversível esse não gosto.

A quarta mulher, a mais jovem, está grávida dele. Foi a última a chegar e não consegue ficar muito tempo sentada, levanta‑se, senta‑se, o banco de madeira é demasiado duro, tem calor, demasiado calor. Quando se levanta apoia as mãos no banco e soergue‑se de uma só vez. Tem cabelos louros de criança que não penteou, é uma criança selvagem que morde os próprios lábios.

A senhoria tira da carteira de verniz branco um espelhinho de mão, dourado, com dálias amarelas pintadas nas costas de porcelana, e limpa cuidadosamente os restos de encarnado que se acumulam nas gretas dos lábios descaídos que lhe dão um ar muito triste. Os dedos gordos pegam no batom, retiram‑lhe a tampa que faz um barulho de ventosa e rodam ligeiramente a base até aparecer um cilindro cremoso da cor de sangue desmaiado. A senhoria, que se esforça por não tremer, segura o batom com o polegar e o indicador da mão direita, desenha os novos lábios em frente ao espelhinho, amassa‑os um contra o outro, testa o sorriso pintado de fresco, o creme untuoso ultrapassou os lábios, a senhoria retira pacientemente o excesso com o indicador, o creme untuoso também lhe sujou os dentes, limpa‑os com o mesmo indicador, os dentes chiam ao serem ligeiramente friccionados, guarda o batom e o espelhinho na carteira de verniz branco. Sente‑se melhor e sorri. Está satisfeita com os lábios novos, mas as outras mulheres não correspondem ao sorriso, a senhoria torce o pescoço em direcção à janela, uma planta à procura de luz, de ar, mas no saguão o ar está parado e a luz turva, a senhoria endireita o pescoço, uma planta murcha, abre novamente a carteira de verniz branco, os dedos gordos vasculham‑na até que encontram um toalhete de uma companhia aérea. Enquanto abre o pacote a senhoria assume um ar extraordinariamente sério e rasga o invólucro plastificado no sítio indicado pelo tracejado. Retira o toalhete e estende‑o na mão, é um quadrado de papel branco encharcado num cheiro de rosas, a senhoria descontrai‑se, passa lentamente o papel na papada que quase lhe esconde o queixo, atrás do pescoço, nos pulsos, nas mãos, besunta‑se com o cheiro das rosas, mais confortada amachuca o quadrado de papel tornando‑o uma pequena bola, levanta o corpo gordo do banco de madeira, caminha sobre os sapatos de verniz branco, uns sapatos muito apertados que lhe incham os pés, passos dolorosos, aproxima‑se da janela do saguão para deitar fora a bola de papel. Espreita para baixo, há mais cinco janelas iguais até ao chão, muitas caixas de ar condicionado, distrai‑se com o emaranhado de fios eléctricos, segue‑os até ao fim, no rés‑do‑chão estão os exaustores, franze o nariz, reconhece carne e couves cozinhadas, regressa ao seu lugar com a mesma dificuldade nos passos, os pés arroxeados pelos tornos de verniz branco, mas quando se senta não sabe o que fazer na sala, onde prender as mãos, onde pousar os olhos, compraz‑se com o cheiro a rosas.

A quarta mulher, a mais jovem, está grávida dele. Foi a última a chegar e não consegue ficar muito tempo sentada, levanta‑se, senta‑se, o banco de madeira é demasiado duro, tem calor, demasiado calor. Quando se levanta apoia as mãos no banco e soergue‑se de uma só vez. Tem cabelos louros de criança que não penteou, é uma criança selvagem que morde os próprios lábios. Está vestida com uma blusa às florinhas e umas calças largas, nos pés tem umas sandálias gastas de tiras de cabedal. As outras mulheres vêem a dificuldade com que ela se move mas não sentem pena ou qualquer outra coisa, limitam‑se a ver a dificuldade com que se move. A rapariga eleva a cabeça, sai altiva da sala, procura o corredor onde poderá andar de um lado para o outro. Na sua ausência as três mulheres não cedem à tentação de se falarem, olham para o saco plástico que ela deixou pousado no banco, um sítio seguro onde podem descansar os olhos, a única garantia de que ela voltará, todas gostariam de saber o que o saco guarda. A rapariga regressa, desta vez demorou‑se um pouco mais, as outras olham‑na, a rapariga caminha empinando a barriga volumosa que parece exagerada num corpo tão miúdo. Há um estado de graça na maternidade que nela não se cumpre. Talvez seja a altivez com que se move, a irritante blusa às florinhas, o cabelo louro de criança por pentear.

Continuam à espera. Em silêncio, sentadas nos bancos corridos de madeira. Daqui a pouco, a mãe recomeçará outro mistério, a ex‑mulher acenderá outro cigarro, a senhoria pegará novamente no batom e no espelhinho com dálias amarelas nas costas de porcelana e a rapariga tornará a sair da sala para andar no corredor. Até lá esperam e cada uma só conhece realmente das outras este acto de esperar.”

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