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João de Almeida Dias / Observador

João de Almeida Dias / Observador

O Robin dos Bosques que desconfia de Pablo Iglesias

Marinaleda é a "utopia comunista" de Espanha e Sánchez Gordillo é o seu autarca desde 1979. Ocupou terras, roubou supermercados para dar aos pobres. Um Governo do Podemos com o PSOE? Tem dúvidas.

Reportagem em Marinaleda, Espanha

Hoje, mais do que nunca, largas dezenas de Dom Quixotes de La Mancha passeiam-se por Marinaleda. Cada um leva consigo o seu cavalo Rocinante para o Parque Natural, avançando na maior parte dos casos num galope desenfreado, deixando um rasto de pó pelas costas. O destino é o anfiteatro, onde já centenas de pessoas aguardam sentadas, a comer montaditos ou a beber o que lhes apetece, para verem estes Quixotes — e também um bom número de Sanchos Pança, Dulcineias e outras personagem saídas da pena de Cervantes — de palmo e meio.

Palmo e meio, sim. Têm entre três e 11 anos, e estão todos preparados para, cena após cena, recriarem nesta festa de final de ano letivo o livro Dom Quixote, por ocasião dos 400 anos da morte do seu autor.

Talvez por serem muitos os Quixotes que por ali andam, ninguém faz caso deles. É só quando o verdadeiro Dom Quixote desta aldeia entra pelos portões do Parque Natural que muitos interrompem as suas conversas e desviam o olhar. Camisa aberta até ao peito, barba a descer-lhe pela cara, passo vagaroso. Chegou el Gordillo, Juan Manuel Sánchez Gordillo, o grande mentor da “aldeia comunista” de Marinaleda e seu autarca desde 1979. Desde então vence eleições, sempre com larga maioria. Nas últimas, em março de 2015, teve 79,57%.

Juan Manuel Sánchez Gordillo é autarca em Marinaleda desde 1979 (Jorge Guerrero/AFP/Getty Images)

Jorge Guerrero/AFP/Getty Images

Tínhamos combinado com ele às 18h00, mas só apareceu às 21h00. A hora marcada deixou de funcionar à medida que reuniões em Sevilha, a uma hora de caminho, se arrastavam. Por fim, conseguiu chegar a Marinaleda a tempo de ver o filho, Said, de quatro anos, fazer ele mesmo de Dom Quixote. Do lado direito do palco, as pás de um moinho de vento vão girando.

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A taxa de desemprego mais baixa da Andaluzia

A terra a quem a trabalha. Uma terra sem amos. A utopia em direção à paz. Pleno emprego. Habitação digna para todos. Estas, e tantas outras, são expressões comuns no léxico de Marinaleda, desde que Sánchez Gordillo, hoje com 64 anos, começou a liderar ocupações de terrenos, edifícios privados e sobretudo terrenos agrícolas nos anos 80, quando ainda dava os primeiros passos como autarca. Aos poucos, terrenos que pertenciam aos latifundiários de Marinaleda passavam para as mãos de uma cooperativa que, hoje, dá emprego a mais de 80% da população da aldeia. Enquanto o desemprego na Andaluzia está nos 29,7% (a mais alta do país), números de Marinaleda ficam-se pelos 8,15%, a menor taxa da região.

Ao longo dos anos, não faltou quem quisesse — e tivesse tentado — matar Sánchez Gordillo. No início dos anos 80, enquanto conduzia por Marinaleda ao volante do seu Seat 600, um “fascista” de Lo Rubio, uma aldeia ao lado, disparou sobre o carro. “O tiro entrou por uma porta e saiu por outra, tive muita sorte”, recorda, sentado num banco de jardim do Parque Natural. Outra, foi na sequência do assassinato pela ETA de Miguel Ángel Blanco, vereador pelo Partido Popular em Ermua, no País Basco. “Depois vieram aqui e tentaram matar-me. Houve quem achasse que se matassem um de esquerda o jogo ficava empatado”, graceja. Tornou a ter sorte. Isto, fora as várias vezes em que, durante ocupações e outros confrontos com a polícia, teve pistolas encostadas à cabeça.

Mais recentemente, em 2012, Marinaleda e Sánchez Gordillo ficaram mundialmente conhecidos depois de terem assaltado de forma pacífica dois supermercados andaluzes — em Cádiz e Ecija —, enchendo carrinhos de comida que mais tarde entregaram a uma ONG de apoio aos mais carenciados. A ação, do Sindicato Andaluz de Trabajadores e liderada por Sánchez Gordillo, acabou por ir à justiça. O alcalde de Marinaleda foi condenado a 5 anos de prisão — mas, depois de dois recursos, foi condenado a pagar uma multa de 3 mil euros, que não tenciona pagar. Sabe que roubou comida, mas pouco lhe importa. “Eles [os supermercados] já a tinham roubado antes às toneladas”, justifica-se. “Nós só a expropriámos para dá-la a quem precisa.” Não demorou até Sánchez Gordillo ficar conhecido um pouco por todo o mundo como o Robin dos Bosques de Marinaleda.

"Queremos ter refugiados em Marinaleda. Dentro das nossas limitações, sim, mas queremos. Quantos? Pelo menos tantos quanto o Papa levou consigo para o Vaticano."
Juan Manuel Sánchez Gordillo, autarca de Marinaleda

Assim, “gota a gota e numa constância revolucionária”, se fez a “utopia” de Marinaleda — essa palavra tão rabiscada pelas paredes da aldeia. Mas o que é? “São os direitos fundamentais que o ser humano sempre teve, que mediante a luta coletiva e a organização se podem e devem converter em realidade”, responde. “Este tem sido sempre o sonho de todos os povos, de todas as tradições culturais, todas as etnias e de todos os seres humanos em toda a parte do planeta.”

Sánchez Gordillo é assim — quando o assunto é Marinaleda, ele troca as voltas a quem o ouve e aumenta a escala, começando antes a falar do mundo.

Quando fala do “direito à terra”, alarga o espectro “às multinacionais, que estão a comprar tudo o que resta no mundo”, acrescentando que “até a China está a fazê-lo”; depois, quando versa sobre os seus quase 40 anos de liderança na autarquia e em torno das vantagens e desvantagens de haver uma limitação de mandatos, responde que “nos EUA os presidentes só podem ir até aos oito anos de poder e não é por isso que acaba a corrupção e o imperialismo armamentista”; mais tarde diz que quer ter refugiados em Marinaleda, “pelo menos tantos quanto o Papa levou consigo para o Vaticano”.

Em Marinaleda, a maior parte dos cartazes políticos que se veem são do Unidos Podemos. Restam alguns (poucos) dos PSOE (João de Almeida Dias / Observador)

Paradoxalmente, quando o assunto é Espanha, Sánchez Gordillo reduz a escala e começa a falar da Andaluzia. É para a sua região, onde nasceu e tem feito toda a sua vida, que olha quando pensa no dia 27 de junho — isto é, o dia seguinte às eleições deste domingo. O que sugerem as sondagens é que quem quiser governar terá de entrar em negociações com os restantes partidos. E, aqui, há uma combinação que pode fazer história na política à esquerda: uma aliança pós-eleitoral do PSOE com o Unidos Podemos (coligação do Podemos com os ecologistas e comunistas da Izquierda Unida).

Iglesias, o “troca-tintas”

Sánchez Gordillo já viu (mais ou menos) este filme na sua região — e, no final, deu-lhe bola preta. Zero. Em 2012, depois das eleições na Andaluzia, a Izquierda Unida e o PSOE chegaram a um acordo para liderar o governo regional, depois de a maioria absoluta ter escapado aos socialistas. Na altura, Sánchez Gordillo foi o único dos 12 deputados regionais da Izquierda Unida a opor-se à aliança. Hoje, recorda-o com orgulho. “Tive razão. Porque esse acordo foi a razão para a Izquierda Unida desaparecer por completo da Andaluzia”, queixa-se. O partido Candidatura Unitaria de Trabajadores, liderado pelo autarca de Marinaleda, acabou por sair da Izquierda Unida já em 2015 em desacordo. “Neste momento a Andaluzia é a região com mais desemprego em toda a Espanha. Do que é que valeu à Izquierda Unida juntar-se ao PSOE?”, pergunta.

Ainda assim, o alcalde de Marinaleda nunca diz nunca. “Se der para fazer esse Governo, então que se faça”, diz, de uma “geringonça” à espanhola. “Agora, o que se teria de dizer com clareza é o que estamos a pactar. Unidade para quê, mesmo? E dizia-se isso diretamente à população”, sugere. “Eu acho que não devemos ter medo da verdade revolucionária. Dizer de verdade o que se quer fazer. Não é dizer-se que se é comunista, depois no dia seguinte ser social-democrata, depois liberal e às tantas já é do PP. Isso é o mais reacionário que há.”

Pablo Iglesias deve estar com as orelhas a arder, pois é mesmo dele que Sánchez Gordillo fala. “Ele tem sido muito troca-tintas para o meu gosto”, atira o mentor da “utopia”. “E isso para mim dá-me um certo desgosto. Porque para mim, à medida que vais ficando mais velho, deves ficar mais radical, porque conheces a raiz dos problemas. A experiência dá-te uma maneira de ver como o mundo era há cinco, dez, 15, 20 anos”, explica. “E isso só te dá razões para ser mais radical.”

"À medida que o tempo passa, o Pablo Iglesias vai-se aproximando do PSOE, mesmo sem saber no que isso pode dar. Por isso ele vai ao sabor do vento e diz uma coisa hoje, outra amanhã... E vai perder muitas coisas pelo caminho."
Juan Manuel Sánchez Gordillo, autarca de Marinaleda

Mas não é preciso ir tão longe quanto “cinco, dez, 15, 20 anos”. Basta olhar para os últimos seis meses, em que, saídos de umas eleições, os quatro partidos que agora encabeçam a política espanhola (os tradicionais PSOE e PP e os novatos Podemos e Ciudadanos) não conseguiram chegar a um consenso. Mas não foi por falta de tentativa. E, aí, Pablo Iglesias, do Podemos, tentou fazer o pino de várias formas. Sánchez Gordillo viu todas as suas manobras, atento, desde o seu posto aqui em Marinaleda. “À medida que o tempo passa, o Pablo Iglesias vai-se aproximando do PSOE, mesmo sem saber no que isso pode dar”, lamenta. “Por isso ele vai ao sabor do vento e diz uma coisa hoje, outra amanhã… E vai perder muitas coisas pelo caminho.”

Inclusive, acredita Sánchez Gordillo, a exigência (até agora intransigente) da realização de um referendo à independência da Catalunha, que foi o maior ponto de bloqueio para a realização de um acordo entre os socialistas e o Podemos após as eleições de dezembro. “Há coisas das quais ele não deve abdicar. A autodeterminação dos povos é importantíssima. Se os catalães se quiserem federar, pois que se federem”, defende. “O Sánchez não vai mudar de ideias. O Iglesias vai. E eu não gosto disso nem um pouco, porque ele já disse o contrário.”

“O PSOE é a direita, mas com máscara. É o encarregado do capital. E negociar com o capital é algo que eu não gosto de fazer. Para mim, deve ir-se ao pé do capital e exigir-lhe os direitos todos do povo.”
Juan Manuel Sánchez Gordillo, autarca de Marinaleda

Mesmo assim, sublinha que “não há nada pior do que um Governo do PP”. De Rajoy, não tem nada simpático a dizer. “É a direita pura e dura, sem limites. A direita troglodita, com restos franquistas, sem máscaras”, diz. Mas cedo torna a falar do PSOE. “Eles são a direita, mas com máscara. É o encarregado do capital. E negociar com o capital é algo que eu não gosto de fazer. Para mim, deve ir-se ao pé do capital e exigir-lhe os direitos todos do povo.”

“Há que ser Quixote”

Já passa das 22h00, o sol já está praticamente recolhido e a iluminação pública do Parque Natural já cumpre as suas funções. Sánchez Gordillo levanta-se do banco de jardim e caminha em direção ao anfiteatro, onde ainda decorre o espetáculo de fim de ano letivo. Construído “há pelo menos 12 anos”, neste palco fazem-se peças de teatro, mostras de cinema e outros espetáculos. O espaço foi construído ao longo de vários domingos — os domingos que, aqui, são os domingos rojos. Isto é, vermelhos.

Nesses dias, sem marcação prévia, Sánchez Gordillo sai de casa, mete-se no carro e, enquanto um camarada seu conduz, vai chamando a população por meio de um megafone, pedindo-lhes que saiam para trabalhar em nome do “bem coletivo”. “Não aparecem todos, mas vem muita gente”, garante. O ultimo domingo rojo foi na semana passada, em que a população foi chamada a limpar o Parque Natural, em preparação da festa.

Mural em Marinaleda: "A revolução é a levedura do pão" (João de Almeida Dias / Observador)

Vai ser também no Parque Natural que vai presidir a uma cerimónia no sábado. Um emigrante dos Camarões, que quando chegou a Marinaleda, sem documentos, viveu na casa de Sánchez Gordillo, vai casar-se com uma filha da terra. Quando o casal deu a boa nova ao autarca, pediram-lhe que fosse ele a casá-los. “Vou ser o padre!”, diz, numa gargalhada, para depois sublinhar, mais sério, que o casamento é civil.

Mas é o dia seguinte, um outro domingo, pelo qual Espanha espera. Será também ele um domingo rojo? “Eu acho que vai ganhar o PP, mas veremos”, responde cautelosamente.

“Mas mesmo que ganhe outro partido qualquer, não é o Governo que temos de derrubar. É o Governo que está acima do Governo que temos de batalhar. Esse é mais alto ainda.”

Alto, pois. Como os moinhos de vento que Quixote lutava — e, ainda há uma hora, o seu filho também. “Claro, hombre. Há que ser Quixote.”

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