Em casa havia um “lume grande”, cá fora está frio, mas nada que demova a dona Ana Maria de, ansiosamente, esperar pelo seu “camarada”. Antes, João Ferreira esteve numa ação com algumas dezenas de pessoas, mas Ana Maria não foi, por medo. Alguém deixou escapar que o candidato presidencial estaria mais tarde numa padaria e Ana Maria contou os minutos até às 21 horas. “Já só faltavam sete minutos para as nove, pus-me ao caminho. Só não o beijo porque não posso!” Com uns minutos de atraso o candidato lá chegou. Ana Maria, emocionada, conta-lhe que foi “vítima dos tempos atrasados” e que há quem mesmo tendo passado muita fome “já se esqueceu”. João Ferreira ainda começa por dizer a Ana Maria que no domingo terá de colocar a cruz “no segundo a contar de baixo”, mas a resposta é pronta: “Então e eu lá sou mulher para me enganar? Não senhora”.

Com uma energia contagiante, Ana Maria lamenta não poder abraçar João Ferreira, que se desdobra em agradecimentos e aconselha Ana Maria a resguardar-se em casa “para que não fique doente até domingo” e rapidamente acrescenta um “nem depois de domingo”. Antes da despedida — porque o frio era realmente muito e a ordem é para estar em casa — ainda fica a promessa de “um dia” se abraçarem. “Oxalá nos possamos encontrar novamente para lhe dar um abraço”, diz João Ferreira antes de pedir à dona Ana Maria que retorne ao lume que deixou em casa.

Durante o dia João Ferreira teve por missão trazer mais um “horizontes de esperança” ao Alentejo. É esse o mote de grande parte das ações organizadas pela caravana, que vão tendo várias derivações: “Pelos direitos das mulheres”; “pelo movimento associativo popular” ou “pelos direitos da juventude”. Esta terça-feira o âmbito era mais largo. As populações do Alentejo veem decrescer ao longo dos anos a densidade populacional, os mais novos a fixarem-se noutras regiões e as dificuldades a aumentar. Consciente da realidade, até porque é um terreno muito caro aos comunistas, João Ferreira fez questão de revisitar vários pontos no Alentejo e as grandes distâncias percorridas têm o objetivo de ‘picar o ponto’ em todos os distritos que compõem a região.

Começou em Portalegre na manhã seguinte à reunião, à noite, com empresários na Nazaré frisando que entre o litoral do país e praticamente a zona de fronteira com Espanha distam pouco mais de 200 quilómetros. Queria mostrar que é perto, que não se justificam as assimetrias existentes entre as regiões do litoral e as do interior. Mais tarde, haveria de enumerar as potencialidades alentejanas que vão sendo desprezadas: há aeroporto, há um porto de águas profundas, concentra 56% da superfície útil agrícola do país. Então porque não é atrativo? João Ferreira rejeitou que o declínio de determinadas regiões do país seja culpa das próprias regiões, por dificuldades estruturais. “O problema tem sido sempre das políticas nacionais”, apontou João Ferreira em Serpa notando que “não faltam recursos e potencialidades”.

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O que tem faltado — como já referiu centenas de vezes — é cumprir a Constituição. “A incumbência que a Constituição atribui ao Estado não foi levada a sério nem pelos governos nem pelos Presidentes da República. Não contribuíram para eliminar as desigualdades, pelo contrário. Não é esta a visão que temos de ter para uma região tão importante como o Alentejo”, apontou João Ferreira deixando exemplos do que é preciso fazer daqui em diante. Há que garantir que a produção nacional “substitui importações que o país faz e não precisava”, é necessária uma “reestruturação fundiária para discriminar positivamente os pequenos e médios produtores”, por exemplo. Todas as soluções apresentadas têm cabimento, ou estão especificamente discriminadas na Constituição da República Portuguesa.

Sobre a reforma administrativa, João Ferreira lembra que, das 100 freguesias existentes antes da reorganização, ficaram 75. “Em muitos sítios deste Alentejo um elemento essencial depois de terem tirado tanta coisa, era aquilo que ainda segurava uma ligação das populações ao Estado até isso lhes foi tirado. Até as freguesias roubaram ao povo”, disse João Ferreira depois de ter escutado os lamentos daqueles que sofreram na pele o resultado da reorganização de freguesias.

João Ferreira segue a campanha com a estratégia dupla: defesa da Constituição e combate ao fascismo. Com uma plateia visivelmente mais envelhecida que jovem — reflexo da população local —Ferreira fez os mais velhos regressar a tempos onde não havia “liberdade e democracia” para evidenciar que “sabem bem” o que é não viver com estas duas condições garantidas.

Não pela voz de João Ferreira, mas pela mandatária a poesia voltou à campanha de João Ferreira. “Só nos faltava que os cães/ viessem ferrar o dente/ na carne dos capitães/ que se arriscaram na frente”, começou por dizer Maria João Brazão, mas terminando com as alterações necessárias aos tempos que se vivem: “Que o nosso braço se erga ao lado de João Ferreira/ Agora ninguém mais cerra as portas que abriu Abril”.

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O dia ficará certamente marcado na memória de João Ferreira, depois do encontro inesperado com Ana Maria Lameira, a senhora de 78 anos que fez questão de enfrentar o frio para o ver ao vivo a cores. Em casa tem, além da imagem de João Ferreira, também a de Jerónimo de Sousa. Porque “isto está cá dentro”, isto, o comunismo. Para ela partidos só os que estão do lado dos trabalhadores e esse é só um, o Partido Comunista Português. Os três filhos que teve “também são malucos”, como os descreveu, no apoio e defesa dos ideais comunistas. Confidenciou que já a tentaram “levar para outros”, mas diz que não é mulher “de ir atrás de conversas”.

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Claramente o dia mais tímido em ataques desde que a caravana foi para a estrada. Com o foco totalmente centrado nas questões das assimetrias regionais, as críticas foram todas dirigidas aos Presidentes da República que, apontou João Ferreira, nos últimos anos não tiveram qualquer intervenção para cumprir o que a Constituição determina de “eliminar progressivamente as desigualdades entre o litoral e o interior, entre o campo e a cidade”.