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O segredo de "A Casa de Papel" está na escrita. Explicamos como e porquê

Uma história com diferentes histórias lá dentro; a narração, a estrutura e as regras do jogo; as personagens e os diálogos. O argumentista Henrique Mota Lourenço desmonta a série do momento.

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Considerada pela imprensa nacional e pela plataforma IMDB como “a melhor série espanhola da história”, “La Casa de Papel” conquistou ao início o público em Espanha, ganhando lentamente o estatuto de programa de culto, mesmo tendo em conta as tímidas audiências no final de temporada — a série da Atresmedia estreou com um público inicial de 4 milhões de espectadores, o melhor registo de sempre num programa de ficção espanhol, mas acabou por ficar abaixo da marca dos 2 milhões de seguidores ao 15.º episódio, um valor baixo, tendo em conta a realidade do mercado espanhol. Com a aquisição dos direitos de emissão por parte da plataforma Netflix, “A Casa de Papel” extravasou fronteiras, surpreendendo tanto os criadores como a própria produtora (Vancouver Media) ao replicar o culto já existente em países tão distintos quanto França, Brasil, Itália, Estados Unidos, Turquia, e, claro, Portugal.

Ao longo dos últimos meses, têm-se reunido centenas de artigos sobre o sucesso que “La Casa de Papel” alcançou, auscultando estes sobretudo os ingredientes-chave que a tornam num sucesso de massas. A maior parte dos críticos e jornalistas gaba em primeiro lugar o elenco, reunido pelas experientes directoras de casting Eva Leira e Yolanda Serrano, mencionando sempre de seguida a música, que vai desde o “Fado Boémio e Vadio” de Piedade Fernandes a “Por Una Cabeça”, de Carlos Gardel; em seguida, a iconografia e as homenagens, sendo as mais óbvias relativas aos universos da pintura e cinema, com referências a Andy Warhol, Salvador Dali, mas também a Quentin Tarantino e Luc Besson.

Por fim, a generalidade dos críticos acaba por referir, e bem, até porque é esse o tema deste mesmo artigo, o guião e as personagens como elementos primordiais do sucesso que a série alcançou. Não podia estar mais de acordo: sem o trabalho aguçado de pesquisa e de escrita do autor Álex Pina, de Esther Martínez Lobato, coordenadora de guião, e dos guionistas Javier Gómez Santander, Pablo Roa, Fernando Sancristóval, David Barrocal e Esther Morales, profissionais na arte de fazer muito com pouco dinheiro (ao contrário do que se possa pensar, “A Casa de Papel” é uma série relativamente barata, uma vez que tem apenas 30% de exteriores), a história por detrás do maior assalto de sempre seria bem menos interessante.

Comecemos pelo óbvio: o essencial de um bom guião será sempre “uma boa história, bem contada”, mas não poderá deixar de passar também, como sugere Syd Field, um dos principais académicos na área do argumento e storytelling, pela junção de bons plots (relações causa-efeito entre eventos que, como porcas e parafusos, sustentam uma narrativa) com boas personagens e uma boa estrutura. Mesmo com a falta de harmonia e concordância entre estes três elementos, podemos ter um filme ou uma série, mas nunca teremos um grande filme ou uma grande série, dizem os mestres. Em “A Casa de Papel”, felizmente, testemunhamos um feliz encontro entre estes três factores. A ver:

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Plots

Trabalhando em vários níveis de acção, “A Casa de Papel” presta particular atenção à construção de plots, sempre sem desfocar o plot-mãe — na gíria conhecido como o plot A —, neste caso o do assalto delineado pelo Professor. Aqui, a experiência de Álex Pina e Esther Martínez Lobato na escrita de novelas é crucial: rompendo propositadamente com a regra “não há relações pessoais”, que o Professor (protagonista da trama) dita ao início, nascem entre os vários núcleos de personagens relações importantes que tornam esta história em algo mais do que uma simples crónica do assalto à Fábrica da Moeda.

Como em qualquer novela, temos um pai e um filho (Denver e Moscu), um triângulo amoroso (Denver, Arturo e Mónica) e os costumeiros amores proibidos (Tokio e Río, a Inspectora e o Professor).  Sem eles, a engrenagem da história dificilmente pareceria tão oleada quanto a vemos no ecrã, ainda que reconheça que a multiplicidade de teias amorosas pode afastar vários tipos de público,  daí que algum do tempo de antena dedicado a estes eventos paralelos ao assalto tenha sido cortado no formato Netflix, aproximando-se mais agora de um thriller do que propriamente de uma telenovela premium.

"Os anti-heróis são a grande tendência de construção de personagem desde a viragem do século. Walter White, Frank Underwood ou Don Draper tornaram-se parte das nossas vidas porque conseguem ser tão mesquinhos quanto nós, mas ao mesmo tempo tão geniais, carinhosos ou admiráveis como nos acontece ser nos nossos melhores dias."

Outro sinal do claro domínio na gestão de plots acontece com a divisão tripartida da narração, muito semelhante ao que acontecia com o saudoso “24” e o nunca esquecido Jack Bauer. Em “A Casa de Papel” podemos considerar os três plots principais (A,B e C), isto segundo um ponto de vista macro da história, embora não funcione exactamente assim em todos os episódios: a) do Professor e dos assaltantes; b) dos polícias; c) o dos reféns. Em todos eles encontramos histórias autónomas, mas nunca desconectadas do plot principal, o do assalto à Fábrica da Moeda, condição que denota evidentemente uma teia narrativa bem cosida.

Personagens

Os anti-heróis são a grande tendência de construção de personagem desde a viragem do século. Walter White, Frank Underwood ou Don Draper tornaram-se parte das nossas vidas porque conseguem ser tão mesquinhos quanto nós, mas ao mesmo tempo tão geniais, carinhosos ou admiráveis como nos acontece ser nos nossos melhores dias. Esta tendência para o uso do anti-herói é assumidamente seguida pela equipa de Álex Pina, como admite em particular o guionista Javier Gómez Santander numa entrevista à Antena 3 (Espanha).

Não há em toda a série personagens 100% “boas” porque elas também não existem no mundo real. O Professor, Tokio e Berlín — personagens preferidas do grande público — tornam-se cada vez mais próximos de nós à medida que vão falhando, porque não almejam ser super-heróis; percebemos amiúde que são tipos e tipas como nós, e por isso torcemos pelo seu sucesso, na condição de que não prejudiquem os reféns (a única regra inquebrável neste jogo, genialmente lançada pelos argumentistas através do Professor). O mesmo acontece, ainda que de forma inversa, com a inspectora Murillo e o inspector Ángel. Quanto mais estes falharem — porque em teoria são forças do bem —, mais nos afastamos deles, uma vez que não toleramos a sua inexperiência ou descuido.

Posto isto, é claro que podemos e devemos sempre questionar a densidade de personagens como Río, Moscú, Oslo e Helsinque, que em grande parte do tempo não passam de estereótipos do pai falhado, dos emigrantes de leste em esteroides ou do nerd que por acaso é hacker, respectivamente. Mas a verdade é que o corpo geral das personagens está tão bem desenhado de origem, isto é, no papel, que actores como Jaime Lorente ou Úrsula Corberó facilmente acertaram os tons de Tókio e Denver logo nas primeiras leituras (sim, até o famoso riso de Denver está guionado, mas ninguém esperava que fosse tão bom).

Personagens como o Professor — que demoramos uma série inteira a tentar conhecer, e mesmo assim falhamos redondamente — não surgem todos os dias na história da ficção. E é também por isso que “La Casa de Papel” se tornou única.

Entrevista com Berlín, de “A Casa de Papel”: “Foi em Lisboa que dei os primeiros passos como ator”

Estrutura

Neste capítulo, temos muito que agradecer sobretudo à equipa da Netflix. Pegando em episódios com 5 actos (consideramos os actos a unidade estrutural de uma história), a produtora transformou uma história de ritmo lento, com bastantes pausas e uma tensão facilmente dissipável — a razão, na verdade, pela qual a versão original perdeu uma enorme fatia de espectadores nos episódios originais — numa narrativa fluida, em que o espectador está constantemente à espera de três coisas: a) uma morte; b) da eventual descoberta do Professor; c) do momento em que os sequestradores vão conseguir sair da Fábrica da Moeda.

Até chegarem a estes três momentos, os espectadores, que agora têm a possibilidade de beber a série de um só trago, continuam a carregar no botão do “próximo episódio”, em grande medida porque uma parte significativa dos ganchos (surpresas/momentos em que a acção congela) de final, sobretudo no culminar da primeira temporada, só são resolvidos a meio do episódio seguinte, aumentando a sede do binge watching.

A primeira e última voz que ouvimos é quase sempre a de Tokio, personagem com quem vamos passando algum tempo, e que acaba facilmente por se tornar uma das nossas aliadas. A jovem sequestradora narra-nos todos os momentos do assalto, facilitando a compreensão ao espectador nos aspectos que são mais difíceis de seguir ou que não justificam ser exibidos.

Para Álex Pina, “é importante lançar bombas a cada capítulo, e quanto mais melhor”, o que aliás se perceberá nitidamente no último episódio da segunda temporada, em que estamos em permanente gancho, do minuto zero até ao final. Terá sido precisamente esta passagem para uma estrutura clássica, mais dinâmica e próxima da americana, que aproximou “A Casa de Papel” de outros públicos que por norma não consumiriam este tipo de produto audiovisual.

Para além destes aspectos, baseados na obra de Syd Field, há ainda outros elementos do guião que podemos considerar válidos para este interesse generalizado na série.  São eles:

O estilo de narração

A primeira e última voz que ouvimos é quase sempre a de Tokio, personagem com quem vamos passando algum tempo, e que acaba facilmente por se tornar uma das nossas aliadas. A jovem sequestradora narra-nos todos os momentos do assalto, facilitando a compreensão ao espectador nos aspectos que são mais difíceis de seguir ou que não justificam ser exibidos (ex: a contagem de dinheiro ou o que acontece aos reféns que não chegamos a conhecer); porém, esta proposta de narração tem outro efeito e intuito, bastante mais subtil: ao sabermos que Tokio está a contar a história, presumimos que provavelmente sobreviveu ao assalto, embora não saibamos se conseguiu fugir ou não. Este impasse motiva-nos a continuar a seguir o rumo da história, porque no fim seremos contemplados com o nosso brinde: saber de onde e quando Tokio nos conta esta história.

Por outro lado, temos um segundo narrador, o próprio Professor: no episódio piloto, quem nos introduz a missão, os nomes das personagens e as regras do jogo — de que falarei a seguir — é a personagem encarnada por Álvaro Morte. Ao longo da história, através de flashbacks, o Professor voltará a desempenhar este papel, dando-nos conta de eventos que estão a acontecer em simultâneo e que carecem de explicação narrativa, uma vez que a maior parte do tempo os sequestradores falam em código e evitam mencionar detalhes do plano em frente aos reféns. Quem melhor para nos explicar passo a passo o plano, como se estivéssemos numa aula contínua, do que a mente por detrás dele?

Álex Pina criou “A Casa de Papel” porque queria ver ladrões a imprimir dinheiro

Os flashbacks, contínuos e bem inseridos, facilitam o modo como a história é contada. Os argumentistas, em vez de optarem por diálogos demasiado explicativos e maçadores, decidem voltar atrás na cronologia sempre que necessário, para contar a história com maior eficácia e destreza. Como vão aparecendo desde o início, o espectador aceita estas analepses de livre vontade, sem estar particularmente atento aos motivos pelos quais se escolheu este dispositivo narrativo e não outro.

As regras do jogo

Desde o início, quando o Professor nos inicia no seu plano (sim, o espectador é cúmplice desde o início; sabe de coisas que a polícia e outras personagens não sabem, e por isso sente-se empoderado), orientamo-nos por um conjunto de regras definido pela equipa de escrita, que serve pura e simplesmente para: a) introduzir ao espectador o universo que está a ser criado, tornando-o parte integrante de uma história cujas balizas são aquelas que as personagens definem, e não as que ele considera mais válidas; b) justificar acções futuras das personagens que passem por romper ou cumprir com essas regras, tornando-as mais ou menos populares; c) justificar eventuais plot holes — em português, podemos chamar-lhes logros narrativos — que possam surgir e que não tenham uma resposta lógica. Neste universo, a regra dita mais do que o senso comum.

Se está estabelecido que os sequestradores não podem matar ninguém, não é só para que o plano do Professor corra como planeado, mas também para que o espectador saiba que, mesmo tratando-se de assaltantes, as 8 personagens que entram na casa da moeda partilham com ele valores morais e sociais, como os da vida, e da justiça, que aliás extravasam a série e se conectam com o mundo real. Álex Pina, o criador, explica mesmo numa entrevista que a série é sobretudo bem recebida por países que tenham vivido crises económicas recentes: “Os tipos que assaltam a Fábrica da Moeda e Timbre têm uma componente anti-sistema que abarca um pouco da decepção com os governos, os bancos centrais. Um cansaço que tornou estes Robin Hood um padrão”.

Todas as séries de sucesso os têm -- e “A Casa de Papel” cumpre a regra. Quem vê estes 19 episódios não se esquece de frases como “Chamo-me Tokio, mas quando começou esta história, não tinha este nome” ou “Começa o Matriarcado!” que ouviremos da boca de Nairoibi, firme e de arma em punho num dos episódios mais entusiasmantes da segunda parte.

Por fim, chega a conclusão de que a cabeça do Professor é na verdade a cabeça dos próprios argumentistas, no sentido em que apenas eles conhecem os mecanismos pelos quais todos os aspectos do plano se vão processar, levando vantagem sobre o espectador, que é constantemente manipulado. Quando vemos “A Casa de Papel”, estamos reféns do que o argumentista vai decidir a seguir, mas não o inteiramos conscientemente. Este conhecimento holístico por parte de uma personagem é essencial para que o espectador não levante questões que ainda não obtiveram resposta (como, por exemplo, “de onde veio tanto dinheiro para armas?”) ou pense em pontos de vista fora do plano que os guionistas delinearam, até porque eles, como o Professor, estão sempre um passo à frente, e nunca terão dúvidas do sucesso da sua missão.

Diálogos marcantes

Todas as séries de sucesso os têm — e “A Casa de Papel” cumpre a regra. Quem vê estes 19 episódios não se esquece de frases como “Chamo-me Tokio, mas quando começou esta história, não tinha este nome” ou “Começa o Matriarcado!” que ouviremos da boca de Nairoibi, firme e de arma em punho num dos episódios mais entusiasmantes da segunda parte. Só bons argumentistas, confiantes no guião e na entrega que terão por parte dos actores, mas sobretudo com muitos anos de escrita para ecrã, atingem diálogos que evitam o óbvio e fazem um bom uso do subtexto (aquilo de que se quer falar, mas que não é dito directamente).

Um bom exemplo do uso de subtexto acontece no episódio 7 da primeira temporada, quando Tokio conta a Río uma história da sua infância que envolve uma porta imaginária (evito mais detalhes para não fazer spoilers). Neste diálogo, ao passo que Río diz que teria aberto a porta de imediato, revelando um carácter mais frágil e impulsivo, Tokio, pesarosa, revela que “nunca a abriu”, o que surpreende o espectador, uma vez que demonstra uma Tokio resiliente e mais madura do que tínhamos conhecido até àquele ponto.  A metáfora não é extraordinária, mas é eficaz, sendo sobretudo dessa eficácia que vive a escrita para televisão. Da clareza e simplicidade, associada a uma grande inteligência e domínio total da narrativa, nascem guiões de séries que merecem ser vistas. E isso, senhoras e senhores, foi sem dúvida o que aconteceu em “A Casa de Papel”.

Henrique Mota Lourenço é argumentista na SP produções

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