Carlos Moedas está a caminho de Lisboa. Para trás tinha ficado o 39.º Congresso do PSD, em Santa Maria da Feira, o primeiro desde que é presidente da Câmara Municipal de Lisboa, o primeiro em que foi verdadeiramente um dos cabeças de cartaz, o primeiro em que foi ovacionado. No carro, ao lado do chefe de gabinete, António Valle, o telemóvel não pára de tocar. As mensagens são às “centenas”.
“Estou sensibilizado com as centenas de mensagens que muitos companheiros me enviaram”, diz ao Observador, ainda na A2 a caminho da sessão de encerramento da Capital Europeia do Desporto. “Que o impacto da minha intervenção no congresso possa ouvir-se fora do congresso. Os portugueses precisam de ver e ouvir como o PSD está pronto para governar o País unido, inconformado e com medidas concretas”, repete.
De Lisboa a Santa Maria da Feira são duas horas e 40 minutos de distância. Mais de cinco horas de viagem entre a ida e a volta. Carlos Moedas percorreu 572 quilómetros para ir até ao 39.º Congresso do PSD, discursar durante dez minutos, começar e acabar ovacionado, e regressar à base menos de uma hora depois de chegar. O objetivo foi claro: fazer valer o capital político conquistado nas últimas autárquicas e marcar o seu espaço para o futuro pós-Rio – seja ele quando for. A avaliar pela reação dos congressistas o objetivo foi cumprido.
No dia em que discursaram Paulo Rangel, Luís Montenegro e Miguel Pinto Luz, a intervenção de Moedas foi, de longe, a mais aplaudida. A conversão de Moedas de quadro do passismo, respeitado internamente, mas com pouca ou nenhuma projeção nacional, numa figura em verdadeira ascensão no PSD segue a todo vapor.
Na última semana, muito se especulou sobre o tom que ia imprimir ao discurso. Na retina tinha ficado aquele almoço com Paulo Rangel na reta final da campanha interna, um implícito apoio ao eurodeputado que acabou por sair pela culatra e por merecer a censura de Rui Rio. Daí a grande dúvida: Moedas ia aproveitar este congresso para marcar desde já terreno para o futuro pós-Rio; ou ia regressar à base e ensaiar um discurso conciliador?
Moedas não rompeu, mas também não desarmou. Desdobrou-se em agradecimentos à confiança nele depositada por Rui Rio e em apelos ao agregar de esforços em torno do líder social-democrata, ao mesmo tempo que deixava avisos muito claros à navegação: é preciso unir, é preciso rejeitar claramente os extremos e é preciso apresentar propostas concretas, ultrapassando o debate estéril em torno do posicionamento ideológico do partido.
Depois de ter desbaratado o fator neutralidade de que vinha gozando desde que foi escolhido como candidato a Lisboa, Moedas tentou recuperar o estatuto de quase unanimidade sem deixar de marcar as diferenças para Rui Rio. A intenção ficou evidente: Moedas está em jogo e quer ser uma figura incontornável do futuro do PSD.
Rangel, o ministro dos novos tempos
A influência do factor-Moedas estendeu-se até ao discurso de Paulo Rangel, que foi buscar inspiração no amigo. O eurodeputado — que dedicou a maior parte do seu discurso a atacar António Costa — readaptou o slogan do presidente da câmara de Lisboa para puxar por Rio: “Tal como em Lisboa em setembro, em fevereiro vão chegar a Portugal tempos novos, novos tempos: tempos de esperança e de ambição.”
O facto de ter perdido as eleições internas há pouquíssimo tempo retira margem a Paulo Rangel para discordar da estratégia do líder, e define-se como um “militante de base” num processo que classifica como de “humildade democrática”. O eurodeputado ainda lembrou que “os resultados foram renhidos“, mas também “claros”. Ou seja: a luta interna ficou para trás das costas.
Apenas um pequeno aparte para um ponto em que Rio já reconheceu a razão de Rangel: “Ao contrário do que muitos diziam [um deles era Rui Rio], as internas não enfraqueceram o PSD”. Feito esse ajuste, era tempo de atacar o PS. No discurso, Rangel não perdeu um segundo a falar em purgas das listas ou em má estratégia relativamente ao PS. Não tendo vencido, juntou-se ao vencedor.
A outra grande condicionante é o facto de faltar um mês e meio para as legislativas. Consciente disso, Rangel disponibilizou-se para ajudar o líder na “campanha e pré-campanha” das legislativas, embora tenha tido a sua versão do “vou andar por aí” de Santana Lopes (que ainda não apareceu em Santa Maria da Feira, apesar de ter sido noticiada essa possibilidade). Em entrevista ao Observador, Rangel explicou que não terá o recato que Luís Montenegro teve nos últimos dois anos: “Não tenho hábitos de hibernação política“.
Sobre a hipótese de integrar um futuro Governo de Rui Rio — embora não tenha excluído essa hipótese — Rangel recusou-se a “colocar a carroça à frente dos bois”. Rui Rio acabaria por ser questionado pelo Observador sobre se admitiria ter Rangel como ministro e, não só não excluiu a hipótese, como lhe deu alguma força: “Proscrito, proscrito só os incompetentes”. Para pouco depois clarificar: “E Paulo Rangel é competente”. Rangel entrou no Congresso adversário, saiu quase ministro.
Montenegro: a conversão do nunca convertido
Uma lista ao Conselho Nacional em que até a letra era personalizada (lista M, de Montenegro), um regresso depois de dois anos de “recato” e as críticas de bastidores de montenegristas antecipavam que Luís Montengro poderia não ser propriamente simpático com Rui Rio. Mas foi. E até mais do que isso.
Luís Montenegro parecia estar alinhado com Rui Rio e pressionou António Costa com a mesma estratégia do atual líder: forçando a dizer o que fará em termos de governabilidade no day after das eleições. “Esta é a questão central: se o PSD ganhar as próximas eleições e se o PSD formar Governo sem maioria absoluta, está o PS disponível para viabilizar os dois primeiros orçamentos do Estado?” Para Montenegro a resposta a esta pergunta é o verdadeiro “teste do algodão”, que o líder do PSD tem de forçar Costa a fazer. Rio acabaria por elogiar o discurso de Montenegro e, em entrevista ao Observador, até considerou o antigo líder parlamentar “genuíno”.
O adversário de Rio nas diretas de 2020 puxou ainda por Rio, enaltecendo as suas capacidades para vencer eleições em contextos adversos. “Queria-lhe dizer dr. Rui Rio, você já demonstrou cá dentro que consegue ser eficaz e aproveitar as oportunidades para ganhar eleições diretas. E eu que o diga e que o diga também o Paulo Rangel. Queremos que faça o mesmo ao dr. António Costa e ao PS”.
A proximidade das eleições também não dava margem a Montenegro para fazer diferente, mas o antigo líder parlamentar fez questão de ir mais longe e falou como se fosse um apoiante de sempre de Rio: “Tem um partido todo consigo, vá em frente, Portugal precisa de nós, Portugal precisa de si”.
Montenegro e Rangel não foram críticos, mas antes rioistas convertidos. Mesmo que sejam rioistas de circunstância e só por um dia. Mais uma vez, a proximidade de eleições legislativas e o poder — que pode ser conquistado — ajudaram na conversão e tornaram o Congresso num passeio na Feira para Rio.
Pinto Luz rasga em definitivo
O vice-presidente da Câmara de Cascais apareceu neste Congresso disposto a travar a sua batalha muito própria. Em 2019, apresentou-se como candidato alternativo a Rui Rio e a Luís Montenegro e conseguiu cerca de 10% na primeira volta. Desta vez, abdicou de uma recandidatura em prol do eurodeputado, foi um dos grandes aliados de Rangel e, ao contrário de Luís Montenegro, teve um papel ativo na campanha interna. À boleia de Rangel, sofreu também ele uma derrota que poderia ter hipotecado as suas hipóteses de vir a disputar a liderança do PSD no futuro. Era preciso fazer uma prova de vida.
Num congresso marcado pela aclamação quase unânime de Rui Rio – até Montenegro evitou fazer críticas frontais ao líder do PSD –, Pinto Luz apostou na estratégia exatamente oposta: acentuar as críticas, demarcar-se por completo da estratégia do líder social-democrata e sobressair.
“Se continuarmos assim, deveremos ficar mais pequenos em números, em resultados e mais assustadoramente mais pequenos em mentalidade. É a escola contra. Pior, é a escola do ‘nós contra tudo e contra todos’, contra o aparelho mesmo quando ele nos dá as vitórias internas, contra a justiça mesmo quando a justiça funciona, contra as sondagens a não ser que nos deem jeito, contra os ‘soundbites’, a não ser que sejam os nossos próprios ‘tweets’, contra os desleais, porque se atrevem a questionar tudo isto”, denunciou Pinto Luz.
O número dois de Carlos Carreiras sabe que o caminho é hoje muito mais estreito: sem Rangel em jogo, Montenegro quer voltar a ser a alternativa mais evidente no pós-Rio e Carlos Moedas é inevitavelmente o maior ativo político do PSD a seguir ao líder social-democrata.
Ora, para continuar a manter a sua máquina de apoios bem oleada, era preciso sobressair já nesta reunião magna. Pinto Luz conseguiu-o: nem de propósito, Rio elogiou as intervenções de Rangel e Montenegro e destratou Pinto Luz. A missão de romper com o unanimismo foi conseguida. Se permitirá colher frutos no futuro é toda uma outra questão.