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O teatro que se ouve é um ensaio geral sobre a cegueira

Sessão especial de "Encontrar o Sol" no São Luiz. Na plateia, os espectadores são cegos e contam com uma ajuda preciosa e amplamente desconhecida: a audiodescrição. Fomos ver o que é e como funciona.

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Tarde de matiné no Teatro São Luiz em Lisboa. Em cartaz está “Encontrar o Sol” de Edward Albee. Na plateia estão Ricardo, Isabel, Manuel, Inês, Clayton, Maria Isabel. Todos eles cegos. Vieram ao teatro para assistir à peça encenada por Ricardo Neves-Neves, contando com uma ajuda preciosa e amplamente desconhecida: a audiodescrição. Um recurso desenhado para ajudar à inclusão das pessoas com deficiência visual, permitindo-lhes o desfrute de várias manifestações culturais que nos habituámos a ter ao nosso dispor.

“Traduzimos imagens por palavras”, diz Anaísa Raquel, uma das pioneiras da audiodescrição em Portugal e principal responsável pela equipa de sete elementos que tem desenvolvido este trabalho em parceria com vários teatros e museus em diferentes pontos do país. “Cada vez mais há a consciência de que todas as artes culturais e do entretenimento também têm de estar acessíveis a todo o tipo de público”, acredita Anaísa. O que é facto é que este recurso não está disponível por defeito na maior parte das instituições culturais e o termo “audiodescrição” será tão ininteligível para a população em geral como as soluções para a dívida pública ou as razões para o triunfo de Donald Trump. E mesmo para os cegos, digamos que há correntes.

Ricardo Trindade é um habitué dos eventos com audiodescrição. Cego desde os 18 anos, Ricardo é um consumidor de cultura e já pôde usufruir deste recurso em espectáculos de teatro e até de dança contemporânea. No entanto, acha que há muito trabalho de sensibilização e divulgação a fazer. “Há um desconhecimento geral e mesmo entre os cegos, numa escala de 0 a 100, o conhecimento é de 1”. Diz também que boa parte da responsabillidade passa por associações como a ACAPO ou o Centro Helen Keller, que ignoram esta questão e não divulgam estas sessões inclusivas. “Dá muito trabalho reenviar um email”, ironiza, apesar de o trabalho de Anaísa e da sua equipa já estar em campo há cerca de oito anos. “Para estas associações parece que o trabalho começou ontem”.

O acesso

O próprio Ricardo colabora com esta plataforma de audiodescrição, assumindo o papel de consultor. O que significa que os audiodescritores preparam os guiões para os espectáculos e Ricardo recebe-os previamente, de forma a poder fazer uma triagem, dizer o que será mais ou menos relevante em termos de ambientes, entradas e saídas de cena, acções que não são ditas.

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HENDEN – O Benjamin e o Daniel tinham estado… envolvidos.
FERGUS – Peço desculpa?
HENDEN – O Benjamin e o Daniel tinham estado “envolvidos”.
FERGUS – Um com o outro?
HENDEN – Sim.
FERGUS – Profissionalmente?
HENDEN – Que idade tens tu?

Enquanto Fergus e Henden conversam, Daniel e Benjamin movimentam-se e agem em palco, à semelhança do que acontece com Cordelia, Gertrude e Abigail. Aquilo que é óbvio para quem vê é relatado por Joana Saraiva a partir da sua cabine de audiodescrição, instalada no segundo balcão do teatro. Trata-se de uma espécie de caixote-marquise exíguo, capaz de fazer inveja às caixilharias que fizeram miséria nas fachadas portuguesas durante os anos 80. Lá dentro, tem-se uma vista privilegiada sobre o palco e sobre a sala, o que faz com que a informação fornecida aos espectadores cegos, munidos de auriculares próprios, vá para lá do guião. Descreve-se o ambiente da plateia antes do arranque do espectáculo, a descida das luzes, a subida do pano.

Minutos antes, Joana dava a sua visão sobre este trabalho, que implicou a frequência de um curso de formação ministrado pela Acesso Cultura, uma associação que trabalha as questões da acessibilidade. “Há aqui uma missão, no sentido em que eu acredito que um recurso como este tem de estar presente, ponto”. Independentemente de haver cegos entre o público naquele dia. “Ninguém tira uma rampa de acesso a um edifício público se nas últimas três semanas não tiver lá passado nenhuma cadeira de rodas. Tem de lá estar, para quando aparecer alguém, poder entrar”. Diga-se que o papel de Joana nesta peça não está limitado à cabine. Será ela a conduzir os cegos ao palco, uma experiência que faz parte das peças de teatro com audiodescrição.

No São Luiz, estas sessões – uma por cada espectáculo – vieram para ficar, acompanhando toda a temporada. A ideia é complementar outras iniciativas que este equipamento tem abraçado, no sentido de promover a já referida acessibilidade. Nas palavras de Aida Tavares, directora artística do São Luiz, esta é uma linha de trabalho que definiu para o seu mandato. “Desenvolvemos mais três projectos para além da audiodescrição, temos um programa pensado no seu todo. Temos a língua gestual portuguesa, temos um projecto pioneiro em Portugal que se chama Bilhete Suspenso e temos o projecto ‘Vamos’ para pessoas em isolamento.” Um esforço extra que implica custos, que não preocupam a responsável por este equipamento. “Eu não me queixo em termos de orçamento, que é perfeitamente razoável para o contexto em que se vive”. Discurso raro em tempo de vacas magras.

Durante a conversa com Aida Tavares, dentro da sala de espectáculos, os actores de “Encontrar o Sol” vão saltitando entre palco e plateia, borrifando o ar com aerossóis que espalham uma espécie de odor a Verão. A praia e a bronzeador. O que significa que esta peça é para ser vista, ouvida, inalada. Também será tocada, mas já lá vamos.

Os primórdios da audiodescrição

A primeira experiência do género foi levada a cabo pela RTP. A 1 de Dezembro de 2003 foi exibido o filme “A Menina da Rádio” com transmissão de audiodescrição através da Onda Média da Antena 1. Desde então, o canal público tem feito uso regular de uma valência que permite aos cegos um melhor usufruto dos conteúdos televisivos. A companhia ACERT – Trigo Limpo foi a primeira a utilizar este recurso em teatro, quando estreou o espectáculo “Chovem amores da rua do matador”. Estava-se em Setembro de 2009. Desde então, o uso da audiodescrição em manifestações artísticas e culturais – das exposições à dança, passando pelos concertos ou pelo teatro – tem vindo a ser cada vez mais recorrente, sobretudo nos últimos três anos.

“Há aqui uma missão, no sentido em que eu acredito que um recurso como este tem de estar presente, ponto. Ninguém tira uma rampa de acesso a um edifício público se nas últimas três semanas não tiver lá passado nenhuma cadeira de rodas. Tem de lá estar, para quando aparecer alguém, poder entrar”
Joana Saraiva, responsável pela audiodescrição

“Falta ainda sensibilizar os grandes produtores e distribuidores de cinema, de ficção nacional e os canais de televisão e os produtores de ópera. Depois disso já poderíamos dizer que o recurso foi experimentado em quase todas as plataformas artísticas e de entretenimento”. Para já, Anaísa Raquel mostra-se satisfeita com o trabalho desenvolvido mas chama à responsabilidade os principais beneficiários destas novas valências, considerando que estes devem exigir aquilo que é um direito seu. “É preciso que o público-alvo do recurso também comece a exigir mais qualidade de vida”.

O público-alvo

Inês e Manuel vêm pela primeira vez ao teatro. Isabel Varela está no São Luiz pela segunda vez, tal como Clayton. Ao contrário de Ricardo, que fala de uma espécie de pescada-de-rabo-na-boca entre pares (as associações de cegos não se interessam e os próprios cegos, mesmo informados, não se mobilizam), Isabel acha que há pouca gente a usufruir da audiodescrição porque as instituições culturais ainda não a abraçaram em pleno. “Há pouca oferta. Há um grande desinteresse dos teatros, das estruturas, que não estão sensibilizadas para a acessibilidade. Começam a dar-se os primeiros passos mas há um longo caminho de sensibilização por fazer”.

Ricardo vê nesta escassez de oferta e de usufruto um traço de ADN nacional. “A cultura não é valorizada em Portugal. Se as peças fossem com gente do Big Brother, dos reality shows, as pessoas já vinham”. Maria Isabel veio com o marido. É a segunda vez que vem assistir a uma peça de teatro com audiodescrição. Gostou da primeira experiência e gostava até de contar mais vezes com este recurso em contexto televisivo . “Gosto de ver o ‘Let’s Dance’ na TVI e era bom ter mais informação sobre o que se está a passar. Também gosto de ouvir os anúncios de publicidade. Às vezes falta-me contexto e não percebo tudo. Nessas alturas pergunto ao meu marido”.

Os actores de “Encontrar o Sol” vão saltitando entre palco e plateia, borrifando o ar com aerossóis que espalham uma espécie de odor a Verão. A praia e a bronzeador. O que significa que esta peça é para ser vista, ouvida, inalada

Maria Isabel perdeu a visão aos 20 anos e por isso guarda na memória referências de palcos e cenários. Ou seja, para ela é natural vir ao teatro. “Como não sou cega de nascença, às vezes sonho com essas coisas. Com imagens. Tenho curiosidade em saber com o que é que sonham os cegos de nascença. Talvez com sons ou com cheiros. Eu também sonho com isso”. No final do espectáculo, e questionada sobre a experiência, Maria Isabel é peremptória. “Para mim o melhor da audiodescrição é a subida ao palco. Durante a peça prefiro estar concentrada só nos diálogos”.

O palco

Ricardo, Isabel, Manuel, Inês, Clayton e Maria Isabel chegaram mais cedo. Vieram acompanhados de amigos e familiares e uma hora antes do início do espectáculo são levados ao palco pela mão de Joana, a audiodescritora de serviço nesta tarde de matiné. Já em cena, são levados a conhecer o cenário pelo toque. Cenário que, no caso de Encontrar o Sol, é maoritariamente constituído por chaises-longues de praia, adornadas com toalhas, livros e revistas. Cheira a Verão, cortesia dos tais aerossóis.

Com Ricardo Neves-Neves a vida moderna é uma tragédia clássica

Os actores deambulam para trás e para a frente, atiram deixas uns aos outros, aquecem a voz. Aos poucos, aproximam-se do grupo dos cegos, que irá conhecer as personagens e suas características em primeira mão. Joana descreve os actores, as suas características físicas e respectivos figurinos. Eles próprios dão uma ajuda. Fala-se de cores e modelos, de texturas e fatos de banho. De padrões e de chapéus. De barbas. Isabel Varela afaga a barba de Marques d’Arede, actor que interpreta Henden. “Esta barba é falsa, não é?”. “Falsa? Não senhor, esta barba é toda minha, podes puxar à vontade”.

Todos riem. Todos hão-de tocar os rolos de cabelo de Custódia Gallego e o pareo de Cucha Carvalheiro. Todos irão familiarizar-se com as vozes dos protagonistas de uma peça cheia de equívocos. Esta subida exclusiva ao palco ajuda a destrinçá-los, sobretudo quando não se pode ver tudo o que se irá passar em cena. Os actores apresentam-se e às suas personagens. Contam de forma sumária as relações entre si, quebram a famosa quarta parede antes mesmo de esta ser erguida. Daniel e Benjamin passeiam-se em tronco nu, após o que se dirigem ao grupo. Um e outro garantem “passo a peça quase toda vestido só com uma sunga”.

“É preciso que a sociedade se coloque no lugar do outro e que se aperceba das diferenças inerentes ao ser humano. É preciso, depois dessa consciência, arregaçar as mangas e perceber o trabalho de todos os que já começaram este caminho”
Anaísa Raquel, pioneira da audiodescrição em Portugal

Gera-se um burburinho malandro, sorrisos cúmplices. Ali, momentos antes da entrada do restante público que há-de encher a plateia, toda gente faz parte da encenação. Fergus é o personagem mais novo deste espectáculo, interpretado por Tadeu Faustino. Fergus faz a descrição do seu figurino. “Tenho um boné na cabeça, uma T-shirt às riscas vermelhas e brancas, uns calções mais compridos, que depois dispo durante a peça. Fico só em fato de banho, podem tocar se quiserem”, convida Fergus. “Eu fico-me pela imaginação”, garante Maria Isabel.

Cai o pano

Joana descreve ao pormenor a coreografia de agradecimentos dos actores, enquanto o público, maioritariamente de pé, aplaude de forma entusiástica. No afã da saída, ninguém parece reparar no pequeno grupo que ocupa uma frisa do lado direito da sala e que se prepara para devolver os auriculares. Ricardo, Isabel, Inês, hão-de regressar ao São Luiz, fazendo uso de um recurso a que têm direito. Tratarão de espalhar a palavra, instrumento de que o teatro também faz uso.

Por agora, está vencida mais uma pequena batalha pela inclusão. “É preciso que a sociedade se coloque no lugar do outro e que se aperceba das diferenças inerentes ao ser humano. É preciso, depois dessa consciência, arregaçar as mangas e perceber o trabalho de todos os que já começaram este caminho”, assegura Anaísa. Sinal de que, muito provavelmente, a guerra ainda mal começou.

Pedro Vieira é consultor da Booktailors, pivô de televisão e ilustrador relutante.

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