Ao início da tarde deste sábado, eram só 100 centímetros. Só isso separava Rayan dos socorristas que tentavam há quatro dias e quatro noites libertá-lo do poço em que caiu na vila marroquina de Ighrane, na cidade de Tamorot, província de Chefchaouen. A curta distância até à criança de cinco anos, um metro apenas, suscitava ilusões sobre a simplicidade das operações a partir dali. Mas eram os 100 centímetros mais cruciais de toda a operação e foram escavados com a maior delicadeza, muitas vezes à mão, por estarem repletos de obstáculos — e um deles era a rocha encrustada no caminho entre o túnel aberto pela equipa de resgate e o poço em que Rayan se encontrava e de onde acabou por ser retirado só ao início da noite. Mas com ferimentos tão graves, que acabou por não resistir.
Marrocos. Criança que esteve presa no poço cinco dias não sobreviveu
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Tudo o que se passou nos últimos quatro dias foi um “trabalho de ourives”, classificou em entrevista ao Observador o comandante adjunto nacional de operações da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil, Mário Silvestre. As equipas marroquinas escavaram um talude, em tudo semelhante a uma trincheira, com recurso a retroescavadoras, mas dispensaram a maquinaria pesada a uma distância de três metros do poço em que Rayan caiu, de apenas 45cm de diâmetro. E o motivo é porque, a partir daquele momento, a aproximação à criança teve de ser feita “quase grão a grão” para evitar deslizamentos de terra que condenassem desde logo não só a vida da criança, mas também a dos socorristas que a procuravam salvar desde terça-feira.
Rayan, o rapaz de cinco anos que luta pela vida a 32 metros de profundidade
Foi exatamente o que aconteceu em Marrocos, onde os socorristas avançaram 180 centímetros entre as nove da manhã e as 16h00 da tarde deste sábado. E também o que aconteceria se um caso destes acontecesse em Portugal. As autoridades estão preparadas para situações como estas e exercitam-nas na prática: em 2019, a Proteção Civil portuguesa conduziu o maior exercício desta natureza em contexto de sismos, em que se treinaram cenários semelhantes, com pessoas encurraladas, fechadas e presas em espaços confinados. Chamaram à operação “Cascade 2019”.
Maior exercício de proteção civil em Portugal começa com mais de 3.600 operacionais
Em situações deste género em Portugal, o primeiro passo é ativar uma linha de comunicação desde o agente que recebeu o primeiro alerta (normalmente, as equipas do Número Europeu de Emergência) até ao comando nacional da Proteção Civil, passando antes pelo comando distrital da área em que o acidente aconteceu. É ao comando distrital que cabe a responsabilidade de fazer um primeiro reconhecimento no momento em que é recebido o contacto e despachar para o local os meios necessários num primeiro momento. Entre o material que é imediatamente preparado, estão as cordas e os arnês, para o caso de ser possível descer pelo poço em que a vítima se encontra.
A lista de meios a utilizar e de infraestruturas a montar — incluindo um posto de comando, como aconteceu com a queda da estrada em Borba — são atualizadas sempre que necessário. E também são convocados os parceiros que podem complementar a atuação da Proteção Civil, incluindo equipas de espeleosocorro e mergulho (como aconteceu no caso das crianças na gruta da Tailândia), engenheiros civis, geólogos e topógrafos, organizações voluntários de apoio, empresas com material de construção e as próprias autarquias. Sim, é uma rede de atuação complexa. Mas tudo isto acontece em poucos minutos, num plano certificado pela União Europeia.
O que foi feito em Marrocos por Rayan?
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Em Marrocos, de facto, o tempo também urgia. Só o bloqueio da rocha encontrada esta madrugada atrasou o avanço das operações, coordenadas pela Proteção Civil de Marrocos, em três horas. Cento e oitenta minutos que se somaram às pausas de meia em meia hora (às vezes mais) para recalcular a estabilidade dos terrenos após os esforços de escavação — que começaram por ser efetuados com recurso a retroescavadoras e que depois avançaram com pás e picaretas, para evitar o perigo de derrocadas — e ajustar os planos de atuação em resposta às adversidades encontradas. É que o solo é extremamente arenoso e sedimentar, sensível a quaisquer vibrações decorrentes das perfurações. Por isso, explica Mário Silvestre, usam-se marcadores no terreno que, caso se tenham movimentado, assinalam a existência de alguma agitação do solo que tenha passado despercebida aos socorristas no local.
Marrocos. Tudo o que se sabe sobre Rayan e as operações para o tentar salvar
Quando se abrem taludes como o que foi escavado nas proximidades do poço em que Rayan caiu, é preciso estudar a inclinação dos flancos. Quando estas estruturas são efetuadas em maciços rochosos, altamente estáveis e mais previsíveis, o ângulo pode ser de 90 graus — é o que acontece quando se abre caminho nas montanhas rochosas para se construir uma autoestrada, exemplifica Mário Silvestre. Quando os terrenos são mais instáveis e sedimentados, como os que existem nesta zona de Marrocos mas também em regiões portuguesas como o Algarve ou a Andaluzia, onde há dois anos se deu a tragédia com Julen, a criança de três anos que também caiu num destes tipos de poços, as inclinações rondam os 45 graus. Os flancos ficam como que deitados para impedir o avanço dos solos.
Mas a abertura destas trincheiras não costuma ser a primeira abordagem das autoridades — tal como não foi em Marrocos. Em situações como a que Rayan se encontrava, o plano A costuma ser aquele foi adotado pela Proteção Civil marroquina: descer pelo mesmo poço por que entrou Rayan. Neste caso, a estratégia provou ser impraticável por vários motivos. Em primeiro lugar, pelas características do próprio furo: o buraco tem um diâmetro de 45 centímetros à superfície, o que não era suficiente para um adulto entrar (mesmo que a custo) terra dentro. A tentativa de alargar a entrada também foi rapidamente descartada porque a movimentação das terras ameaçava cair em cima de Rayan, o que poderia ser fatal desde logo.
Marrocos. As imagens da complexa operação de resgate para salvar Rayan
Além disso, mesmo que essa dificuldade fosse ultrapassada, o poço encolhe para apenas 25 centímetros a uma profundidade de 28 metros, tornando impossível a passagem de qualquer socorrista. Em segundo lugar, a própria movimentação do operacional criaria derrocadas que podiam precipitar terra ou pedras sobre Rayan, que estava entalado a 32 metros de profundidade. Como o poço prossegue até aos 60 metros, o rapaz de cinco anos poderia ser arrastado para uma localização ainda mais profunda, dificultando as operações e reduzindo a probabilidade de sobrevivência da criança naquele momento em que as esperanças de o resgatar com vida se mantinham intactas.
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Quando a criança foi localizada, a saúde física de Rayan parecia ser um dos poucos pontos que jogava a favor do sucesso deste resgate. Uma vez descoberto o seu paradeiro e estabelecido contacto com a criança, confirmou-se que estava consciente e estável, mas encontrava-se praticamente imobilizado a uma profundidade comparável à altura da Torre de Belém em Lisboa. As equipas de resgate enviaram um tubo com oxigénio, água, comida e uma câmara de videovigilância para o monitorizar e mantê-lo em ligação com a família.
O facto de ter acesso a água e a comida atenuou uma das maiores preocupações das equipas médicas em situações como estas: a desidratação por escassez de água e a hipoglicemia por falta de alimentação. Apesar de os humanos terem mais capacidade de permanecer longas horas sem comer desde que se beba água, as reservas de glicemia e a capacidade de produzir glicose de uma criança são muito inferiores às de um adulto — por isso era fundamental Rayan ter acesso a estes bens essenciais.
Mas o facto de a criança estar consciente não era, no entanto, garantia de que iria continuar fisicamente saudável por muito tempo — e, no fim, tudo se comprovou infrutífero: as partes do corpo mais sujeitos a pressão com as paredes do poço, por ação das próprias rochas, tornando-se menos irrigadas, podem desenvolver úlceras de pressão que dão origem a feridas. E com elas surge também o risco de infeções, que começam a progredir normalmente ao fim de dois dias. Tudo isto se junta a outras lesões que Rayan já poderia ter sofrido com a queda no poço e as longas horas que passou no seu interior — não só feridas, mas também fraturas, danos encefálicos, esmagamento de membros ou hemorragias internas que, com o tempo, se tornaram fatais. Ainda não se sabe o que terá acontecido ao certo com Rayan, falou-se em lesões cerebrais e várias fraturas, inclusivé na espinal medula, mas a única garantia é que elas acabaram por ser fatais, apesar de o rapaz ainda ter sido transportado para o hospital
Cientes de toda a gravidade de lesões que podem encontrar, depois de toda a minúcia das escavações até os socorristas chegarem até ele, segue-se por isso sempre outro trabalho de perícia — o dos médicos. Tal como costuma acontecer em Portugal, não bastava alcançar a localização de Rayan, pegá-lo ao colo e retirá-lo do buraco: os médicos socorristas realizam uma primeira avaliação da vítima, depois têm de imobilizá-lo e só depois tentar retirá-lo para o exterior. Só mesmo se a própria espera for mais arriscada à sobrevivência do que esta avaliação médica no local — por exemplo, por perigo de uma grande derrocada — é que se avança para uma extração mais rápida. Não se sabe também ainda o que aconteceu no interior do poço com a criança marroquina.
Sabe-se, genericamente, que a pressa, em situações como esta, “é inimiga da segurança e da preservação da vida”, sublinha o comandante adjunto nacional de operações da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil: “É sempre preciso gerir a ansiedade e as expectativas. Os operacionais estão completamente empenhados e a querer muito chegar à criança e resgatá-la o mais depressa possível”, garantiu. Mas “tem de haver alguém a resfriar este ânimos todos”.