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Quase dez anos após a abertura do inquérito e cerca de cinco anos depois da acusação do Ministério Público (MP), o processo Operação “O Negativo” vai, finalmente, seguir para julgamento. Um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, adiantado em primeira mão pelo Observador, deu razão parcial ao recurso do MP e alterou alguns pontos da decisão instrutória do juiz Ivo Rosa sobre o caso, onde está em causa o domínio de um negócio de mais de 120 milhões de euros relacionado com plasma sanguíneo.
Como consequência, o ex-presidente da Octapharma, Paulo Lalanda e Castro, vai ser julgado por um crime de falsificação de documento e quatro ilícitos de concessão/recebimento indevido de vantagem, mas sem a imputação de corrupção ativa — que o MP queria recuperar. Os desembargadores Ana Guerreiro da Silva, Mário Pedro Meireles e Ana Rita Loja entenderam que já se registou a prescrição deste crime para o antigo patrão de José Sócrates naquela empresa farmacêutica. Todavia, indicaram razões distintas daquelas que levaram o juiz Ivo Rosa a decidir igualmente nesse sentido na decisão instrutória.
Também o antigo presidente da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARSLVT), Luís Cunha Ribeiro, responderá por um crime de corrupção passiva para ato lícito, um de falsificação e dois de recebimento indevido de vantagem, enquanto a médica Maria Manuela Carvalho será julgada por um crime de recebimento indevido de vantagem.
O caso foi revelado numa investigação da TVI em junho de 2015 e levou o MP a abrir então um inquérito. A acusação foi conhecida em novembro de 2019, mas a fase de instrução apenas arrancou em maio de 2021 e foi atrasada na reta final por um pedido de suspensão provisória do processo. Lalanda e Castro chegou a propor o pagamento de 500 mil euros para suspender o processo, mas o MP acabou por se opor e recorreu da decisão de não pronúncia do juiz Ivo Rosa. A Relação veio dar-lhe parcialmente razão.
O que é o plasma sanguíneo e o que está na origem do processo?
A Operação “O Negativo” trouxe para a atualidade um tema pouco conhecido para muitos portugueses: o plasma sanguíneo. Trata-se da parte líquida do sangue, onde se encontram em suspensão os glóbulos vermelhos, os glóbulos brancos e as plaquetas. Tem uma cor amarela, é essencial para o corpo humano e não se consegue reproduzir em laboratório.
Uma vez autonomizado e tratado, pode ser vendido para utilização, por exemplo, em transfusões, enquanto plasma inativado. Paralelamente, pode também ser usado para a criação de medicamentos para o combate a doenças graves, como, por exemplo, a hemofilia, o cancro ou a sida. A farmacêutica suíça Octapharma foi, aliás, das primeiras farmacêuticas a criar medicamentos hemoderivados com Factor VIII (para combater a hemofilia A) e Factor XIX (para lutar contra a hemofilia B).
Na base das suspeitas no processo estiveram as adjudicações ao grupo Octapharma para a compra de plasma inativado e de medicamentos hemoderivados. Segundo avançou a TVI logo em 2015, a venda de bolsas de plasma sanguíneo ao Estado português terá rendido à farmacêutica cerca de 124 milhões de euros durante aproximadamente duas décadas.
A Octapharma detinha uma alegada situação de monopólio do mercado de plasma inativado e uma posição dominante no fornecimento de medicamentos hemoderivados para a grande maioria dos hospitais públicos. E foram os concursos relacionados com a prestação destes serviços que justificaram a investigação do processo “Operação O -“.
Como Lalanda e Castro terá alegadamente corrompido Cunha Ribeiro, segundo o MP
O MP acusou Lalanda e Castro em novembro de 2019 de três crimes de corrupção ativa, cinco ilícitos de concessão/recebimento indevido de vantagem, cinco de branqueamento (um na forma tentada) e oito de falsificação (dos quais dois de forma continuada e um na forma tentada).
Já Luís Cunha Ribeiro viu a investigação encontrar indícios de um crime de corrupção passiva, dois de abuso de poder, três de recebimento indevido de vantagem, três de branqueamento (um na forma tentada) e três de falsificação (um na forma tentada). Quanto à médica Maria Manuela Carvalho, o MP imputou um crime de corrupção passiva e dois de recebimento indevido de vantagem.
Como o ex-patrão de José Sócrates conseguiu dominar o negócio do sangue em Portugal
Num total de sete arguidos acusados, só estes três foram alvo de pronúncia na decisão instrutória de Ivo Rosa, sendo que a grande maioria dos crimes imputados caíram.
Por exemplo, o antigo juiz de instrução criminal, hoje desembargador na 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, decidiu decretar a prescrição de todos os crimes de corrupção. Porquê? Porque o crime consuma-se com o acordo — o que, no caso de Lalanda e Castro e Cunha Ribeiro, terá ocorrido a 2 de março de 1998, sendo que na situação da médica Maria Manuela Carvalho tal acordo terá acontecido em junho de 2002.
Isto é, o juiz Ivo Rosa ignorou que as últimas entregas de vantagens ao ex-presidente da ARSLVT e à médica Manuela Carvalho ocorreram, respetivamente, em janeiro de 2015 e em março de 2016 e decidiu que a prescrição há muito que tinha ocorrido. Decisão idêntica foi tomada por Ivo Rosa na Operação Marquês, invocando um polémico acórdão do conselheiro Cláudio Monteiro de 2019.
Que vantagens eram essas? A aquisição de um apartamento na zona das Antas, no Porto, no valor de 175 mil euros no início da década de 2000, ao mesmo tempo que Cunha Ribeiro era júri num dos concursos para a aquisição de plasma sanguíneo que valeram adjudicações de cerca de 23,4 milhões de euros à Octapharma. Mais tarde, Cunha Ribeiro beneficiou ainda de viagens de luxo a destinos paradisíacos pagos pelas empresas de Lalanda e Castro e ainda de uma outra casa no condomínio de luxo do Heron Castilho, onde foi vizinho de José Sócrates, que foi posta à sua disposição sem qualquer pagamento de renda.
O MP acredita que Cunha Ribeiro terá recebido quase um milhão de euros de Lalanda e Castro para alegadamente beneficiar a Octapharma num negócio que valia cerca de 120 milhões de euros.
O “impacto social e moral” da visão de Ivo Rosa tem “repercussão incalculável”
No recurso apresentado em junho de 2023 e só agora alvo de decisão, o MP atacou este entendimento do magistrado judicial. “Se aplicarmos o entendimento” do juíz Ivo Rosa “tropeçaremos no ridículo de considerar que o ilícito de corrupção ativa imputado ao arguido Paulo Castro, na parte correspondente ao arguido Luís Cunha Ribeiro, prescreveu em 2 de março de 2001″, lê-se no recurso do MP, citado no acórdão da Relação de Lisboa a que o Observador teve acesso.
Isto é, “cerca de oito meses depois de Paulo Castro ter manifestado a primeira entrega/recebimento de vantagem patrimonial ao arguido Luís Cunha Ribeiro e cerca de 14 anos antes de se completar a última entrega/ recebimento da vantagem patrimonial cedida a este arguido”, referiu o MP no seu recurso.
Tal possibilidade leva a uma “sucessiva desresponsabilização criminal associada ao decurso da passagem do tempo convoca injustiça social, maior apetência para criação de esquemas corruptivos que contornem a lei e, sobretudo, uma imagem de inoperância do circuito judiciário que fica entranhada na justiça portuguesa“, lê-se no recurso.
E deixou um aviso relativamente à visão de Ivo Rosa sobre a prescrição da corrupção: “O seu impacto social e moral será, por isso, de repercussão incalculável”.
Ora, este mesmo entendimento — sustentado no acórdão n.º 90/2019 do Tribunal Constitucional assinado pelo conselheiro Cláudio Monteiro, que veio contrariar a jurisprudência existente até então — já tinha estado debaixo de fogo noutro processo cuja decisão instrutória passou pelas mãos de Ivo Rosa: a Operação Marquês. Foi com base nesse acórdão que o magistrado declarou prescritos os crimes de corrupção imputados ao ex-primeiro-ministro José Sócrates.
Contudo, o TC uniformizou em fevereiro de 2024 a jurisprudência, ao declarar não ser inconstitucional uma visão separada da promessa inicial de vantagem e da última oferta no prazo de prescrição. Por outras palavras: a data da última oferta marca o início da contagem do prazo de prescrição de corrupção, sem estar fixado na promessa inicial.
Os desembargadores elogiaram essa correção do TC. “Esta perspetiva de compatibilidade constitucional da contagem do prazo prescricional a partir do momento da entrega da última vantagem é a única, a nosso ver que satisfaz as exigências de lógica interna do sistema penal”, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa.
A justificação para a prescrição do crime de corrupção ativa
Se é certo que a Relação de Lisboa subscreveu a visão do MP e deu razão à tese de que o tempo de contagem deve partir da data da última entrega, também é verdade afirmar que o coletivo de desembargadores da 3.ª Secção Criminal divergiu sobre a legislação que se devia aplicar.
Lalanda e Castro. Quem é o homem por detrás do negócio do plasma?
As leis penais sobre a corrupção sofreram várias alterações significativas nas molduras penais e prazos de prescrição desde março de 1998 — altura em que se deu, por exemplo, a promessa original de vantagem de Lalanda e Castro a Luís Cunha Ribeiro. A lei em vigor nesta data ditava que a corrupção ativa para prática de ato lícito tinha uma pena de prisão até seis meses ou multa até 60 dias, enquanto que a corrupção passiva apresentava uma moldura penal até dois anos ou multa até 240 dias.
A legislação sofreu alterações em janeiro de 2002 e março de 2011, sendo que esta última alteração passou a fazer com que o prazo de prescrição dos crimes de corrupção passasse para os 15 anos. Era esta a tese preconizada pelo MP para validar que as práticas corruptivas neste processo não tinham prescrito relativamente a estes arguidos. Porém, os desembargadores não aderiram totalmente ao pensamento do MP.
“Não cremos que estando a alegada resolução criminosa dos arguidos Joaquim Castro e Luís Ribeiro situada em 1998 e 2002 e a de Manuela Carvalho de junho de 2002, sejam jurídico-penalmente irrelevantes as alterações legislativas que ocorreram ao longo de quase duas décadas nos tipos legais de corrupção ativa e passiva, que lhe são imputados pelo Ministério Público”, lê-se no acórdão a que o Observador teve acesso.
Os desembargadores foram consequentes e definiram o que prazo de prescrição do crime de corrupção ativa imputado a Lalanda e Castro era de dois anos, enquanto para Luís Cunha Ribeiro e para a médica Manuela Carvalho o prazo considerado foi de cinco anos.
Face a esta leitura, e apesar da interrupção da contagem do prazo por constituição de arguido, o ex-presidente da Octapharma já tinha o crime prescrito antes da acusação do MP. Ou seja, ainda que por razões diferentes daquelas invocadas por Ivo Rosa, os desembargadores confirmaram a prescrição da corrupção ativa imputada a Lalanda e Castro.
Já em relação à médica Maria Manuela Carvalho, a Relação entendeu que não se justificava pronunciar a arguida pelo crime de corrupção passiva devido a “insuficiência de impugnação da matéria de facto”. Quer isto dizer que o MP não fez o seu trabalho de casa no que diz respeito à indicação da prova indiciária contra aquela profissional de saúde.
Lalanda visado por outro processo por alegada fraude e as ligações à Operação Marquês
Lalanda e Castro, amigo de Luís Cunha Ribeiro desde os bancos da Faculdade de Medicina do Porto, foi também acusado noutro processo por alegada fraude fiscal qualificada, em que o Estado terá sido lesado em 7,65 milhões de euros — um caso que resultou de uma certidão extraída da operação “O-Negativo”. Nesse processo foi também acusada a empresa Convida, controlada por Lalanda.
“Os factos descritos na acusação ocorreram até 2017 e reconduzem-se à não declaração de rendimentos em sede de IRS e de IRC relativos a atividade de construção civil, empreitadas e afins. A acusação atribui à atuação dos arguidos um prejuízo nos cofres do Estado português de, aproximadamente, 7.650.000,00 euros”, divulgou em julho o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), numa nota publicada no site da Procuradoria-Geral da República.
Ministério Público acusa ex-presidente da Octapharma e empresa Convida de fraude fiscal qualificada
O antigo presidente da Octapharma chegou também a ser arguido no processo Operação Marquês por alegados crimes de fraude fiscal e branqueamento de capitais, por supostamente ter contribuído para José Sócrates receber mensalmente fundos que teriam origem no Grupo Lena. Mas as suspeitas foram arquivadas.
Foi precisamente Lalanda e Castro quem contratou José Sócrates como consultor da farmacêutica, numa ligação que durou desde janeiro de 2013 a novembro de 2014, quando o ex-primeiro-ministro viria a ser detido e colocado em prisão preventiva. E era ele o único interlocutor de Sócrates na Octapharma, como as escutas telefónicas da Operação Marquês demonstraram.
A principal razão para contratar José Sócrates relacionou-se essencialmente com o Brasil. Lalanda de Castro queria aproveitar a relação especial que José Sócrates tinha desenvolvido com o ex-Presidente Lula da Silva para aumentar o negócio da Octapharma com os mesmos produtos que estão em causa na “Operação O-Negativo”: o plasma sanguíneo e a produção de hemoderivados.