Raras vezes se viu uma unanimidade tão grande no Parlamento como esta quarta-feira, no debate da moção de censura do Chega ao Governo. Mas o consenso mais evidente não foi no ataque a Costa: os partidos da esquerda à direita uniram-se, mas contra o Chega, e preferiram dedicar os arranques de quase todas as intervenções a criticar a (falta de) pertinência da moção, tecendo acusações variadas ao partido (de tratar o Parlamento como “um miúdo a brincar com uma consola” a querer inaugurar a modalidade da “tourada parlamentar”).

As críticas seriam, sobretudo, expectáveis do Governo – que arrancou o debate a acusar o Chega de querer apenas ‘fazer barulho”, nas palavras de António Costa, com uma moção inconsequente, já que o chumbo estava definido ainda antes de o debate começar, ou não tivesse o PS a maioria dos deputados; e que acabou a acusar o Chega de “falar, falar, mas não apresentar uma propostazinha”. O mote estava dado: o Chega seria retratado como um partido populista, sem propostas nem soluções, e o Governo – mesmo estando debaixo de fogo pelas inúmeras polémicas em apenas três meses de mandato – reduziria os ataques a meras críticas sem consequência.

E esses reparos tiveram eco em todas as outras bancadas. Desde logo, à direita, PSD e Iniciativa Liberal não tinham margem para chumbar a iniciativa – caso contrário ficariam nesta fotografia ao lado do Governo – mas também não queriam ser arrastados pela agenda do Chega. Resultado: tanto um como o outro acabaram a desvalorizar a moção – que, segundo a IL, não é sequer uma prova de oposição, mas antes um “favor ao Governo”, por ser um “tiro de pólvora seca” que acaba por reafirmar a confiança do Parlamento no Executivo.

O PSD foi ainda mais duro: “Se o Governo merece censura, também censura nos merece o Chega”, disparou o deputado Paulo Rios de Oliveira – o mesmo que recusaria, momentos depois, que o PSD queira “assumir atitudes de forcado numa qualquer tourada parlamentar”.

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E à esquerda o cenário era muito semelhante: mesmo com muitas críticas ao Governo pelo meio, a tónica acabou por ter sempre a ver com a inutilidade da moção do Chega e com os objetivos táticos do partido. Um “joguinho” sem ‘conteúdo sério que valha a pena discutir”, atirou o Bloco de Esquerda. O PCP foi dar ao mesmo: a moção não “resolve nenhum dos problemas” do país e, por isso, não mereceu grande análise. Para Rui Tavares, do Livre, a tarde não passou de uma mostra do que é a “chaga do populismo”, que desvaloriza instrumentos parlamentares e políticos sérios, com André Ventura a brincar com a iniciativa como “um miúdo com uma consola”. E o PAN resumiu a moção a uma proposta ‘absolutamente ineficaz”.

Se todos estavam de acordo em que havia críticas a fazer ao Governo – do estado do SNS ao caso Pedro Nuno, só abordado pela direita –, ainda mais de acordo estavam em que a moção do Chega não serviria para isso. Censura sim, moção não.

Péssima oposição, muletas e o dilema dos Açores

Serviria para quê, então? A conclusão dos deputados que se foram atirando, durante a tarde, à análise política foi, também ela, unânime: começar uma competição pela disputa da liderança à direita – sobretudo numa altura em que o PSD ainda está a reorganizar-se, com Luís Montenegro na primeira semana à frente dos comandos do partido – e a mostrar-se como a oposição mais dura, para provar que mesmo com a mudança de Rui Rio para Montenegro na oposição não muda nada.

E Ventura não se incomodou com isso – terá antes festejado o seu isolamento, uma vez que assim o Chega poderá dormir sozinho, mas “descansado”, como dizia o líder parlamentar, Pedro Pinto. Isto é: o Chega quer partir sozinho e destacado na liderança da direita, e por isso não se coibiu de atacar duramente os partidos vizinhos.

Ao PSD, Ventura – que ainda na terça-feira previa que Montenegro não vá ser mais do que um Rui Rio 2.0 – dedicou vários mimos: faz fretes ao Governo há seis anos, faz péssima oposição e ajudou a construir a maioria absoluta (“Afinal eu estava enganado, não é Rui Rio versão dois, nem três, nem quatro. É mesmo o caminho da desgraça da direita aqui à nossa frente”). À IL, idem: é muleta do Executivo e só conhece o país do “Príncipe Real”, um bairro conotado com a elite de Lisboa. Tudo resumido numa frase: “Agora, quem nos está a ver sabe quem é que enfrenta o PS”.

A competição à direita – constatada por todos os partidos e resumida pelo comunista Bruno Dias, que sugeriu que a moção de censura deveria ter sido entregue não em São Bento, mas antes no Pavilhão Rosa Mota, onde aconteceu o congresso do PSD – chegou a extremos – e foi analisada ao detalhe. O PSD acusou o Chega não só de entregar a moção de propósito durante o congresso, para ofuscar o evento, como de marcar de propósito umas jornadas parlamentares relâmpago para as datas em que deveria ser eleito o novo líder parlamentar do PSD,  que será Joaquim Miranda Sarmento. Ventura riu-se e aconselhou o PSD a ter noção, mas a convicção de que o Chega faria tudo para minimizar o PSD estava instalada.

Mais caricato foi o momento – que acabou por jogar a favor dos socialistas – em que o clima à direita aqueceu de tal forma que Bruno Nunes, do Chega, acabou a virar-se para a bancada do PSD e perguntar se queria então dizer que está, no Governo regional dos Açores, “coligado com fascistas, populistas e extremistas”. Foi o mote para  a bancada do PS desatar às gargalhadas – o argumento dos socialistas estava feito e nem tinha saído da boca de nenhum deputado do PS, enquanto o partido usava o Chega como escudo para escapar ao debate das polémicas que se têm sucedido no Governo.

Os divórcios em Portugal… e no Governo

Mais irónico foi as polémicas do Governo ficarem tão fora do radar, uma vez que os diagnósticos até eram partilhados pelos partidos, na maior parte dos casos. O “caos” no SNS , na versão da direita ou a desvalorização dos profissionais de Saúde na versão da esquerda foi mencionado por todos. Falou-se no estado do aeroporto de Lisboa, da falta de professores ou no aumento do custo de vida.

E discutiu-se, claro, o caso Pedro Nuno Santos, com toda a direita a analisar a humilhação por que o ministro passou, depois de ver revogada uma decisão sobre o novo aeroporto de Lisboa em menos de horas (ver em baixo). Paulo Rios de Oliveira, do PSD, concluiu, sobre o ministro hiperativo que justificou a confusão com um mero erro de comunicação: “Se uma traição inacreditável” passa a ser batizada como um “erro de comunicação lamentável” — “e vamos conseguir evitar inúmeros divórcios em Portugal…”.

Mesmo assim, nada feito: ainda que as críticas fossem comuns, o Chega ficaria mesmo a falar sozinho – e a votar sozinho.

PS entre os pingos da chuva

O debate permitiu o improvável: o PS sair incólume numa altura internamente tensa, depois da polémica entre António Costa e Pedro Nuno Santos. Com o PS inquieto com o que se passou há menos de uma semana, a oposição acabou por não aproveitar esse flanco e Costa conseguiu sair do debate sem falar do assunto mais do que uma vez — e de mote próprio, o que lhe permitiu controlar totalmente a forma — para reduzir o assunto a “um erro efetivamente grave, mas tão efémero, que já tinha sido resolvido na véspera da própria apresentação da moção de censura.”

Certo é que a oposição também não carregou nesta frente, ainda que o caso tivesse sido referido por algumas bancadas da oposição — a esquerda absteve-se em bandarilhar o ministro que mais próximo está do seu lado e que geriu durante os primeiros anos de Costa como primeiro-ministro a sempre periclitante “geringonça”.  Pedro Nuno Santos só esteve nas intervenções das restantes bancadas que, de facto, não o pouparam, mas sem grande efeito na bancada do Governo.

Mesmo antes do debate começar, Pedro Nuno atravessou os Passos Perdidos da Assembleia da República em direção ao plenário sempre perto do primeiro-ministro e quando aguardava que o debate começasse, Costa dirigiu-se a ele, entre risos cúmplices, para uma indicação de última hora que mais pareceu parte de uma coreografia para pôr uma pedra sobre o assunto do despacho revogado. O ministro das Infraestruturas voltou ao lugar na ponta esquerda da bancada do Governo, depois de no início desta legislatura ter sido colocado na ponta oposta, perto da bancada do Chega. Antes de começar o debate, foi-lhe dada indicação para voltar ao seu antigo lugar, mais afastado da bancada que apresentava a censura.

O próprio Governo dava sinais daquele caso ser uma preocupação para este debate, onde aguardava várias rajadas da direita em direção ao ministro das Infraestruturas. E na bancada socialista também reinava esse nervosismo. Mas, na prática, não se verificou motivo para tantas precauções, já que o assunto foi aproveitado como pouco mais do que um exemplo (entre outros) de que Costa “não tem mão no seu Governo”, como concluiu João Cotrim Figueiredo.

Não que o Chega não tivesse referido o caso e o PSD até o apontou como um momento que “mancha o prestígio e credibilidade do Governo, arrastando por junto os dois principais protagonistas do insólito”, Costa e Pedro Nuno. Sobre esta polémica, André Ventura disse que o país ficou com “um ministro que já não existe”, dizendo que Pedro Nuno é agora o “ex-futuro-sucessor” de Costa no PS.

O tiro do PS ao “PPD-PSD” que está “condicionado” pela extrema-direita

Desde o debate de política geral de há duas semanas que António Costa passou a referir-se ao PSD como o “PPD-PSD”, depois de ter explicado porque motivo, no seu entender, não se trata de um verdadeiro partido social-democrata. Eurico Brilhante Dias seguiu-lhe as pisadas e neste debate quando provocou o partido agora liderado por Luís Montenegro por  se abster “numa moção de censura que é contra o PPD-PSD”.

Foi esta a estratégia que o PS usou para virar a moção também contra os sociais-democratas já que a bancada anunciou antecipadamente que se absteria, em vez de votar contra — como o PS dizia que se impunha. O deputado Porfírio Silva havia de vir a seguir dizer que o PSD estava “condicionado pela extrema-direita” e que se o partido  “tivesse autonomia estratégica votaria contra este artifício sem hesitações”.

Para a frente, o deputado socialista ainda deixou um desafio ao partido agora liderado por Montenegro que se defina: “Seria útil saber se vai ficar dependente da direita miguelista, que desde D. Miguel é trauliteira, violenta e anti-democrática ou se vai olhar para o futuro”. É o capítulo que se segue.