Em plena crise económica e social, Governo e Bloco de Esquerda entregaram-se ao jogo do empurra: os primeiros dizem não perceber como é que os segundos estão a criar obstáculos à aprovação de um Orçamento do Estado que oferece tantas respostas no plano social; os segundos atiram-se aos primeiros por estarem a responder com uma fisga quando têm uma bazuca à disposição. Chantagem para lá, chantagem para cá, o PCP entrou definitivamente na roda. Discreto, já vai mostrando alguns triunfos e recusa entrar em ultimatos ou “birras”. Mas mantém o tom duro para socialista ouvir: “Orçamento é claramente insuficiente“, vai avisando Jerónimo de Sousa ao mesmo tempo que salvaguarda: “Mas reconheço que houve um esforço de aproximação”.

Catarina Martins é que não está para mas, nem meio mas. Ou assim parece. “Não podemos responder a um tsunami com botes de borracha”. O tsunami é a crise, e as medidas do Governo que constam do Orçamento do Estado para responder são, no entender do Bloco de Esquerda, apenas barcos de borracha. O Bloco tem dito que quer mais — e sobretudo que não quer apenas medidas de “propaganda” — antes decisões que mexam de facto na vida dos portugueses.

A dramatização está nos píncaros e começou logo na manhã desta segunda-feira com Catarina Martins a admitir, em entrevista à Antena 1, que se o Orçamento ficar tal como está o Bloco não o viabiliza. A menos que o Governo se comprometa publicamente com garantias escritas de avanços nas matérias que considera matérias-chave. Sempre há um ‘mas’.

O PCP mantém-se esfíngico e a história obriga a cautelas. Aliás, parecia contada à partida e não estava. Depois do chumbo no Orçamento Suplementar, depois das teses do partido, em que a ‘geringonça’ era dada como morta e enterrada, em vésperas de autárquicas… poucos acreditavam que o PCP estivesse sequer disposto a negociar mais um Orçamento do Estado com António Costa. Mas os sinais foram chegando. Primeiro pela voz dos próprios, depois a partir do interior do próprio Governo, finalmente para a evidência de todos: o PCP tinha de ser considerado nas negociações. Os comunistas traçaram 47 prioridades, mas, ao contrário do Bloco de Esquerda, não traçaram linhas vermelhas invioláveis, nem ameçaram com chumbos. “São estilos. Cada qual é como cada um”, despachou Jerónimo de Sousa, em entrevista ao “Polígrafo / SIC”, já na noite de segunda-feira. O balão do drama parece muito longe de estar prestes a rebentar e o PCP avança para esta segunda fase de negociações sem qualquer tipo de “birra”, como prometeu o comunista. Nova bicada aos bloquistas? Jerónimo jurou que não, que respeita imenso o Bloco. Até 28 de outubro, data em que o Orçamento será votado, é vindima.

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E o Governo? Garante que está a atender às pretensões da esquerda — Bloco incluído — e acena com medidas que, à primeira vista, vão ao encontro do que os parceiros queriam. Mais do que em Orçamentos anteriores, jura-se. Duarte Cordeiro, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, veio logo dizer que o governo está com “disponibilidade total” para continuar as negociações, prevendo reuniões depois da entrega do OE e até à votação na generalidade como sempre fez.

Afinal, em que ficamos? Que medidas inscreveu o Governo no Orçamento para ir ao encontro à esquerda, e que medidas a esquerda diz que ainda estão por responder? Os triunfos e os dossiês em aberto, ponto por ponto.

Suspensão da caducidade dos contratos coletivos de trabalho

É talvez a maior conquista do PCP nestas negociações: as empresas passam a estar impedidas de rasgar contratos coletivos de trabalho durante dois anos. Apesar de não responder ao objetivo último do PCP — que defende há muito o fim do princípio da caducidade — o facto o Governo ter aumentado de 18 para 24 meses esta moratória, terá ajudado a desbloquear o processo

Aumento das Pensões

Tal como em anos anteriores, o PCP queria que entrasse em vigor já em janeiro do próximo ano — em ano de autárquicas, o Governo que atirar para agosto — e que se estendesse a pensões mais baixas — aquelas que foram atualizadas durante o Governo de Pedro Passos Coelho e que só terão direito a um aumento de seis euros.

Na mesma entrevista ao “Polígrafo / SIC”, esse foi, precisamente, um dos pontos assinalados como negativos pelo secretário-geral comunista. O PCP não vai deixar de tentar inverter o caminho escolhido pelo Governo e em anos anteriores este foi um osso muito duro de roer.

Gratuitidade das Creches

Era outra das pretensões antigas do PCP e apesar de poder haver negociações neste capítulo, o Governo já se comprometeu com a gratuitidade da creche às famílias do 1.º escalão de rendimentos e às famílias do 2.º escalão de rendimentos, a partir do segundo filho era outra das pretensões antigas do PCP que surge agora vertida na íntegra neste Orçamento.

Apoio extraordinário ao rendimento dos trabalhadores

É a famosa prestação social para quem perdeu emprego (ou teve quebra significativa da atividade) durante a crise pandémica, que o BE estabeleceu desde logo como prioridade. Durante as negociações foram feitos avanços, até admitidos pelo próprio Bloco de Esquerda, mas a versão final da medida, que terá um impacto orçamental entre 400 e 450 milhões de euros e abrangerá mais de 170 mil trabalhadores, fica aquém. A ideia é haver um valor de referência que é o limiar da pobreza (501 euros), abaixo do qual ninguém pode ficar. Mas a forma como o cálculo do apoio é depois feito faz o BE concluir que “deixa muita gente de fora”.

O Governo abrange nesta medida não só trabalhadores por conta de outrem como trabalhadores independentes que estejam sem proteção no desemprego e trabalhadores domésticos, sendo que os que ficaram sem nada vão receber o apoio durante um ano e os que tiveram quebra de rendimento de pelo menos 40% vão ter o apoio durante seis meses. Segundo Catarina Martins, contudo, ficou-se a perceber que em alguns casos a famosa prestação social não é mais do que “um apoio extraordinário de 6 meses” que faz com que alguns trabalhadores passem a “receber menos do que estiveram a receber ao longo deste ano para fazer face à quebra de atividade”. O cálculo está sujeito a condição de recursos e depende da composição do agregado familiar.

Salário mínimo nacional

O Governo comprometeu-se com um aumento em linha com o aumento médio dos últimos anos (mantendo-se a meta de 750 euros em 2023). Isto faz com que o aumento seja de cerca de 23,75 euros, e não os 35 euros que foram aumentados no ano passado e que o BE entendia ser o mínimo aceitável para não dar sinais contraditórios sobre a necessidade de animar a economia através de aumento do rendimento disponível e do poder de compra dos portugueses.

Este é talvez o dossiê onde socialistas e comunistas estão mais distantes. O PCP defende há muito um aumento do salário mínimo para 850 euros, mas o Governo já fez saber, várias vezes, que não está disposto a ir além dos 750 euros até ao final da legislatura. Compromisso que mantém, nem mais, nem menos.

Os comunistas entendem ainda que os salários dos trabalhadores da Administração Pública deviam ser aumentados, objetivo que esbarra nas intenções do Governo, que até tinha prometido aumentos salariais de 1% em 2021. A ordem foi para travar. Mas não será por aqui que o PCP travará as negociações com o PS.

Majoração do subsídio de desemprego

O valor mínimo do subsídio de desemprego vai ser majorado para um montante acima do limiar de pobreza, a título definitivo, para os trabalhadores que recebiam pelo menos o salário mínimo. Era uma das questões que estava em cima da mesa das conversas com o BE, que entendia que a nova prestação social (não contributiva) não podia ser em alguns casos superior ao subsídio de desemprego (contributivo), daí o governo ter feito esta majoração. É uma medida que pode ser entendida como fruto das negociações com o BE.

Mesmo reconhecendo que o Governo se prepara para fixar um aumento do subsídio mínimo de desemprego para os 505 euros, acima do limiar de pobreza, o PCP entende que os critérios de atribuição desta prestação social deviam ser alargados. E promete bater-se por isso.

Grandes empresas com lucro proibidas de despedir sob pena de perderem benefícios fiscais

O máximo que o Governo chegou no sentido de dar resposta ao BE nesta matéria da proteção do emprego foi a medida que diz que “as grandes empresas que tenham lucros em 2020 deverão manter ao longo de 2021 o mesmo nível de emprego que têm atualmente, sob pena de perderem acesso a incentivos fiscais e às linhas de crédito com garantia pública”.

Uma vez, o Bloco diz que se trata apenas de um “anúncio” de medida e não de uma medida concreta que mexa de facto na vida dos portugueses, uma vez que isto atinge apenas as grandes empresas e não impede as empresas (com lucro ou com apoios do Estado à criação de emprego) de usar o velho truque de não renovar os contratos a prazo como alternativa ao despedimento (além de que o Governo também não limita os contratos a prazo).

O PCP também se bateu sempre pela proibição de despedimentos nestas circunstâncias. Mas, tal como o Bloco de Esquerda, terá de se contentar, para já, com a medida desenhada pelo Governo.

Reforço do SNS

Mais 4200 profissionais, mais 260 no INEM. O Governo acaba com a subcontratação de empresas de trabalho temporário e substitui-as pela contratação efetiva de profissionais de saúde e compromete-se a cumpriras metas de contratação fixadas no OE 2020: mais 4200 profissionais de saúde “permitindo assim cumprir o compromisso de reforçar os recursos humanos do SNS em 840 profissionais entre 2020 e 2021”.

Para o BE, contudo, é mais uma medida de apenas “propaganda” no sentido em que esse já era o compromisso firmado no ano passado durante a preparação do OE 2020 — e no meio houve uma pandemia, logo, aumentaram as necessidades do SNS. É preciso mais médicos, e melhores condições para os médicos, insiste o BE, que lembra que as necessidades que havia em 2019 para o SNS já não são as mesmas no dia de hoje. O reforço anunciado nas contratações do INEM, contudo, é saudado pelo BE, na medida em que corresponde às necessidades identificadas pelo próprio INEM: mais 260 profissionais. No campo da saúde, o Governo acaba ainda com as taxas moderadoras em exames complementares de diagnóstico e terapêutica nos cuidados de saúde primários, uma medida que também já estava estipulada no OE 2020.

Subsídio de risco para profissionais de saúde

Era uma das prioridades do BE, mas, pela forma como está escrita no OE, o partido vê apenas como mais uma medida proclamatória e de propaganda, que adensa mais a tensão entre os profissionais de saúde do que funciona como prémio aos médicos e enfermeiros da linha da frente. Em causa está um subsídio que corresponde a 20% da remuneração base mensal do profissional de saúde (nunca superior a 219 euros), pago de dois em dois meses, mas que abrange apenas profissionais de saúde “que pratiquem atos diretamente e maioritariamente relacionados com pessoas suspeitas e doentes infetados com a doença COVID-19, de forma permanente, e em serviços ou áreas dedicadas”.

No entender do BE, a “generalidade dos profissionais das urgências, que recebem doentes Covid e não Covid, vai ficar de fora”. “Isto vai criar uma tensão entre os profissionais de saúde que é inaceitável”.

Para o PCP, a proposta também não chega.  O Governo cedeu às pretensões da esquerda, mas os comunistas não compreendem como é que este apoio não é alargado às forças de segurança.

“Há um esquecimento total”, denunciou Jerónimo de Sousa, já depois de o deputado comunista Duarte Alves ter sugerido que, tal como está desenhada, a proposta tinha um “alcance muito limitado”.

Subsídio de Insalubridade

Outra bandeira antiga do PCP a que o Governo respondeu em parte. Os socialistas comprometeram-se a concretizar a aplicação de um suplemento de insalubridade e penosidade para os trabalhadores das autarquias nos setores da higiene urbana e saneamento, mas os comunistas sempre defenderam que esse subsídio se aplicasse também aos trabalhadores da Administração Central.

Contratação de mais 60 inspetores para a ACT

O Governo vai contratar mais 60 inspetores para reforçar a capacidade de fiscalização da Autoridade para as Condições do Trabalho. É uma medida de combate à precariedade laboral mas é uma migalha no leque de reversões de medidas laborais que o Bloco de Esquerda queria implementar e que o Governo não chegou a meio caminho. No campo das leis laborais é onde o Bloco de Esquerda considera que o Governo menos se aproximou das linhas vermelhas que tinha traçado: a reposição do valor da indemnização por despedimento de 30 dias por cada mês de trabalho (em vez dos atuais 12 dias); o fim do alargamento do período experimental de trabalho, que fez com que muitas pessoas fossem para casa sem nada porque estavam no período experimental e não deviam; e a proibição dos despedimentos nas empresas com lucro. Tudo matérias onde o BE garante que o Governo não deu resposta e que “desde o primeiro dia” o BE considera fundamentais.

Novo Banco: o óbice do Orçamento

É o grande impasse na negociação do Governo com o BE. O Governo comprometeu-se a não injetar “nem mais um cêntimo do OE” no Novo Banco e, de facto, não aparece no documento nenhuma referência ao Novo Banco. Havia, sim, uma previsão de verba para o empréstimo do Estado ao Fundo de Resolução, mas tratava-se de um “lapso” que foi corrigido entretanto numa nota do Ministério das Finanças: a verba era afinal para a CP. E zero para o Novo Banco. O Governo tem dito que o empréstimo ao Fundo de Resolução será feito pela banca, e assim se deve manter. Em todo o caso, o que o BE não aceita é que o Fundo de Resolução mantenha o compromisso com a Lone Star (compradora do Novo Banco) sem que antes seja feita uma auditoria independente ao processo de venda para ver se o dinheiro que falta injetar é devido ou não. E isso pode ser visto no Orçamento do Estado se lá estiver alguma autorização de despesa do Fundo de Resolução para o Novo Banco. E é isso que o BE não aceita: se o empréstimo, mesmo que venha dos bancos privados, passar pelo Fundo de Resolução “quem paga são os contribuintes”, disse Catarina Martins.

Só atendidas estas exigências é que o BE consideraria que o país estava preparado para enfrentar o tsunami que aí vem. Na tarde desta segunda-feira, no Parlamento, Mariana Mortágua deixava claro que só atendendo a 4 destas questões é que o BE viabilizaria o documento. “É tão importante hoje como era há três meses como vai ser daqui a três meses impedir e dificultar despedimentos. É mais importante hoje e vai ser mais importante daqui a seis meses ter condições para os médicos ficarem no SNS, será certamente cada vez mais importante sermos muito exigentes com o dinheiro dos contribuintes que vai para o Novo Banco e ter uma prestação social que responda à pobreza. Repetimos as mesmas propostas que colocámos em cima da mesa ao Governo, o país conhece-as, são públicas e as mesmas desde o início”, disse. Ou seja, as linhas vermelhas são estas, como eram estas há três meses quando começaram as negociações.