776kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

i

Getty Images

Getty Images

Há literatura no Orçamento. "Maldito Tahsdisfhrwou"

Observador desafiou três escritores portugueses a lerem o Orçamento do Estado do ponto de vista literário. Na narrativa financeira, há uma batalha de 15 segundos, em que todos os gatos são comidos.

“João: Olha lá, queres ir àquele novo restaurante que abriu na bica? Dizem que é ‘muita’ bom.

Hugo: Estás louco, meu? Não viste as notícias? Não sabes o que é que se está a passar na Ucrânia?

João: Tens razão. Não sei em que é que estava a pensar. É melhor não gastar dinheiro.”

O dialogo é fictício. Saiu da imaginação do escritor Tiago R. Santos, autor de A Velocidade dos Objectos Metálicos, enquanto lia a proposta de Orçamento do Estado (OE) para 2015, entregue no Parlamento a 15 de outubro. Nesse dia, o Observador enviou-lhe o documento original e pediu-lhe que fizesse uma análise literária às 278 páginas – ou parte delas -, que podem ditar as decisões dos portugueses no próximo ano. E não foi o único. Ao desafio, responderam mais dois escritores contemporâneos: Pedro Vieira e Bruno Vieira Amaral. Com direito a ilustração e alusão a filmes. Afinal, se o Orçamento do Estado fosse um livro, qual seria? E se fosse uma personagem, quem escolheriam? Neste artigo, a imaginação falou mais alto do que os factos. Porque no que toca a gerir contas, a criatividade também ajuda.

O diálogo entre as personagens fictícias João e Hugo surgiu a propósito dos “riscos geopolíticos” e de como “parecem ter contribuído para a deterioração da confiança das empresas e dos consumidores na área do Euro”, seguido de uma breve confissão: “Eu, como consumidor, confesso que nunca deixei de frequentar serviços ou contribuir para a economia por causa de riscos geopolíticos. É mais porque não tenho mesmo dinheiro e porque, do pouco que vou recebendo, o IRS e a Segurança Social ficam com a sua parte porque, caso contrário, ‘vais ter sérios problemas’, uma afirmação apenas adequada a mafiosos e aparelhos de Estado. Mas, se calhar, estão a referir-se só às empresas”, escreveu Tiago R. Santos, que, revela, não leu o documento todo. Só conseguiu ir até à página 13.

IMG_6476

Além de escritor. Tiago R. Santos é argumentista e crítico de cinema

Depois, deu um salto à “curtíssima” parte sobre a cultura, “só para ter a certeza que continua a haver zero investimento na área do Cinema”, revelando que “isto é das coisas mais aborrecidas e deprimentes que já alguma vez li”. Pela cabeça, passaram-lhe várias imagens. Lembrou-se daquela vez em que esteve duas horas à espera, no consultório do dentista, com o canal de televisão VH1 e umas quantas revistas cor de rosa como companhia. O momento, recorda-o como aquele “período em que a vida se suspende em completo tédio como se te procurasse anestesiar para o que se segue: o terror do carniceiro que te escava os dentes com uma broca metálica”. E acrescenta que, para as políticas financeiras do Governo, o cenário ainda é pior, porque nem sequer há anestesia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Sobre a qualidade do texto, diz que nem sequer é escrito para ser compreendido pelo cidadão comum, mas supõe – como quem sabe – que é algo intencional. “Assim, evitam que a população saia para as ruas com tochas e forquilhas à procura dos monstros que mantêm todos acordados à noite”, escreve. Mas deixa a nota: na sua ‘não licenciatura’ em Comunicação Social, a única cadeira que não completou foi precisamente Economia. Numa escala de zero a 20 valores, Tiago R. Santos teve cinco. E irrita-se. Afinal, além de aborrecido, o OE mexe com os nervos dos leitores. “A irritação foi outro dos efeitos que o Orçamento do Estado para 2015 teve em mim nesta manhã de quinta-feira.”

"Tanta conversa sobre austeridade e depois a pessoa que escreve isto usa palavras tão caras sem necessidade nenhuma. Até parece que não sabe como é que estão as coisas na Ucrânia."
Tiago R. Santos

Quanto a gralhas, detetou uma, na página quatro: um ‘n a’, em vez de ‘na’. “Acho que isso se pode perdoar. É, talvez, a única coisa perdoável”, diz o escritor. A utilização da palavra ‘concomitantemente’, no lugar de ‘simultaneamente’ é que já não tem perdão possível. Pelo contrário, “é lamentável”. “Tanta conversa sobre austeridade e depois a pessoa que escreve isto usa palavras tão caras sem necessidade nenhuma. Até parece que não sabe como é que estão as coisas na Ucrânia”, remata.

E se o Orçamento do Estado fosse uma obra literária, seria o quê? Uma comédia, responde Tiago R. Santos, que também escreveu o argumento de Call Girl, vencedor de um Globo de Ouro, ou do recente Os Gatos Não Têm Vertigens, realizado por António Pedro Vasconcelos. Ou então não. Também podia tornar-se “num daqueles livros malditos, um mito urbano, e quem o encontrasse numa cave escura e o lesse seria possuído por um demónio ou libertaria as forças das trevas”, explica.

Melhor ainda, se o Orçamento do Estado para 2015 fosse uma obra literária, seria um romance de Kurt Vonnegut, norte-americano que escreveu romances como Um Homem sem Pátria, Galápagos ou A Cruzada das Crianças. “Aí, dá para transformar todo este espetáculo burocrático e impenetrável e deprimente numa espécie de experiência sociológica conduzida por extraterrestres que nos observam de outra galáxia”, escreveu.

As referências a Vonnegut não se ficam por aqui. No Orçamento do Estado, a personagem principal é Tahsdisfhrwou, “o imperador intergaláctico que, para distrair a sua própria população do facto de que há escassez do seu alimento preferido – gatos, numa pequena homenagem a Alf, porque não? -, colocou uma série de robots/marionetes em posições de poder no planeta Terra, testando assim os limites e a capacidade de sofrimento dos terráqueos”.

“Avisem as pessoas, Observador. Alertem-nas. Também não consigo encontrar as chaves do carro e alguma comida desapareceu do frigorífico. Malditos conflitos na Ucrânia. Maldito Orçamento de Estado. Maldito Tahsdisfhrwou”
Tiago R. Santos

E a divagação continua: é que os súbditos de Tahsdisfhrwou gostaram tanto do programa, que dizem: pode até nem haver gatos para comer, mas pelo menos ninguém os obriga a fazer pagamentos por conta ao IRS, quando toda a sua vida profissional será passada a recibos verdes. E, na imaginação de Tiago R. Santos, os súbditos prosseguem: “Que disparate, até nós, que temos a capacidade de omnipresença (que eles têm, o que é ótimo, porque nunca chegam atrasados a lado nenhum), não conseguiríamos dar aulas em 74 escolas ao mesmo tempo”. Quem é que ainda está a pensar nos gatos?

O título já foi escolhido por Vonnegut e seria Welcome to the Monkey HouseBem-vindos à Casa dos Macacos, em tradução livre -, mas Tiago R. Santos sugere outro, As Marionetes, no qual Pedro Passos Coelho, “um dessas robots/marionetas”, avaria em plena Assembleia da República, repetindo a palavra “impostos”, vezes sem conta. Nesta fase, os terráqueos descobrem o que se está a passar, juntam-se e derrubam as marionetas.

Andreia Reisinho Costa

Curioso? É que a ação não fica por aqui. Os terráqueos também querem ajustar contas com Tahsdisfhrwou e declaram aquela que vai ser conhecida como a I Guerra Intergaláctica. “Perdemos, naturalmente, naquela que ficará nos livros de História como a ‘Batalha dos 15 Segundos’: Os súbditos de Tahsdisfhrwou invadem o país e todos os gatos são comidos em menos de uma semana. “Isto não acaba bem, infelizmente”, escreve.

Pela cabeça de Tiago R. Santos, passaram-lhe imagens das aulas de economia e do filme The Ring, sobretudo, aquele momento em que as personagens colocam a cassete no leitor de VHS. “Fiquei com medo, enquanto tentava ler o Orçamento do Estado, que uma figura saísse no ecrã do meu computador e roubasse todo o dinheiro que tenho na carteira. Espera aí, vou ver. Confirma-se. Todo o dinheiro desapareceu. Esquece o Kurt Vonnegut e as guerras intergalácticas. É a outra opção, aquela do livro maldito. Quem ler o Orçamento do Estado, evocará uma entidade que entrará nas casas dos contribuintes e pensionistas e levará todo o dinheiro que encontrar”, diz.

E, no final, um apelo: “Avisem as pessoas, Observador. Alertem-nas. Também não consigo encontrar as chaves do carro e alguma comida desapareceu do frigorífico. Malditos conflitos na Ucrânia. Maldito Orçamento do Estado. Maldito Tahsdisfhrwou.”

E para a grande tela, João César Monteiro. Se o Orçamento do Estado fosse um filme, seria o negro Branca de Neve. “Tudo a negro e aplaudido apenas por alguns iluminados que acreditam que este é o caminho”, diz Tiago R. Santos.

 

 

E se fosse uma série televisiva? “The walking dead, sem dúvida”, responde Pedro Vieira, autor de Última Paragem, Massamá, distinguido com o Prémio Revelação do PEN Clube Português, e de Éramos felizes e não sabíamos, uma obra que reúne as crónicas que escreveu no blogue irmão lúcia. Porque os promotores são “mortos-vivos politicamente”, que “insistem em morder-nos os rendimentos e em espalhar a peste da austeridade”, diz. Além de escritor, Pedro Vieira é criativo no Canal Q, das Produções Fictícias e ilustrador.

 

 

Sobre o Orçamento do Estado para 2015, diz que pode “ombrear com outras grandes obras da literatura portuguesa”, mas que tem uma grande desvantagem. É que na obra entregue por Maria Luís Albuquerque ao Parlamento não existe uma versão Europa-América, tal como acontece, por exemplo, em Os Maias. Contudo, confessa: as 278 páginas de literatura orçamental nacional têm tudo para se tornarem no próximo Crime e Castigo português. “Com a graça de permitir-se mais efabulação do que o clássico do Dostoievski”, explica ao Observador. E vai mais a fundo na imaginação: na versão portuguesa da obra, o crime do Governo tem a agravante de estar a ser cometido sucessivamente e o castigo recai sobre os portugueses, nomeadamente os da classe média.

“Passos Coelho na pele de Raskolnikov? Com certeza, sobretudo quando atentamos na secção Medidas Transversais de Racionalização e Reorganização do Setor Público, vulgo machadada”, escreve Pedro Vieira, para quem a narrativa é, sem dúvida, um drama, mas também alta literatura, que, explica, não se sente diminuída por ser um pastiche da tradição russa da austeridade existencial. E confessa: “No final esperava uma narrativa de redenção, mas senti-me enganado quando percebi que só havia anexos.”

IMG_8786

Pedro Vieira é ilustrador residente da revista LER e autor do blogue Irmão Lúcia

Pela cabeça de Pedro Vieira, várias imagens: um matadouro, um crucificado – “também podia ser um pensionista, às vezes, é difícil distingui-los”, explica. Ou uma estepe russa disfarçada de deserto de ideias. E não só: uns bolsos vazios e um boneco de madeira adotado por um homem chamado Gepetto. É aqui que surge a reviravolta. Se calhar, se fosse uma obra literária, o Orçamento seria um policial sueco. “Teria a mesma dose de sangue, mas o consolo de podermos contar com um estado social nórdico”, escreve.

E, por fim, a confissão: “a verdade é que não li de todo o documento que me enviou, exceção feita ao índice. Limitei-me a falar de cor, que é o que a coligação faz quando escreve um clássico como este Orçamento sem ler o país”. E lembra Immanuel Kant, para dizer que “também escreveu coisas muito certeiras sem nunca sair do mesmo citius”.

“Quem dera que me tivesse mandado a famosa pen em vez do pdf. Sempre tinha mais utilidade e, assim como assim, já ninguém acredita no Dâmaso dos submarinos”, escreve.

observador orcamento

Ilustração de Pedro Vieira para o Observador que reflete o Orçamento do Estado para 2015

Com lampejos de erotismo e astrologia

Inclassificável. Daqueles livros que desafiam géneros, que resistem a qualquer tentativa de definição e a quase todas as tentativas de leitura. Se o Orçamento do Estado para 2015 fosse uma obra literária, seria assim, diz Bruno Vieira Amaral, autor de As primeiras coisas, considerado o livro do ano 2013 pela Time Out, e do Guia para 50 personagens de ficção portuguesa. E os comentários não se ficam por aqui. É que as 278 páginas do Orçamento do Estado não são inofensivas. Provocam cefaleias.

Quanto aos géneros, seria uma mistura entre o thriller e o romance feminino, passando pelo terror e pela literatura económica, “em mais do que um sentido”, que é “praticada por autores do século XIX como José Gomes Pherreira ou Camylo Lourenço”. E porque não uma obra de arte, em que cada uma das páginas é uma “homenagem sentida e comovente ao conceito de ‘consolidação’”?

A história já é conhecida, explica Bruno Vieira Amaral. “Após perder tudo o que tinha e empenhar o que não tinha, uma pequena nação do Sul da Europa procura recuperar a credibilidade junto do ramo nórdico da família. Para o conseguir, faz promessas eternas de austeridade aos mercados, um amante que exige muito e pouco lhe dá em troca. Obviamente, os mercados não confiam nas palavras desta mulher que esbanja todo o dinheiro em leite escolar e telhados de amianto. Já foram enganados muitas vezes. As declarações intempestivas de amor são logo atiradas para o lixo.”

BVA (2)

Bruno Vieira Amaral também é crítico literário e colabora com a revista Ler

E evoca a história de coragem, determinação e perseverança que vive no Orçamento. À qual não faltam “lampejos de erotismo e astrologia”. “Nenhuma leitora ficará indiferente à passagem em que se fala de ‘uma redução gradual dos estímulos monetários’ ou ao saber que ‘ainda não está totalmente definida a orientação da política monetária’”, escreve Bruno Vieira Amaral. Para as fãs de astrologia, um brinde. “As previsões sucedem-se a um ritmo alucinante pois não só se ‘prevê um fortalecimento’ como também se ‘prevê uma melhoria’”, explica. Pena que não diga se “o ano é bom para lançar as sementes de um novo projeto ou se devemos ter cuidado com as constipações”.

E porque não uma obra moral? “O aumento dos impostos sobre o álcool, o tabaco e o jogo online (mas poupando sintomaticamente a pornografia) mostra-nos uma mente moral em ação que não hesitará em aplicar a Sharia em 2016, se isso reforçar a consolidação orçamental”, diz Bruno Vieira Amaral, para quem o autor do relatório “é dono de uma cabeça sádica”. “Para quê matar logo o desgraçado se o pode torturar lenta e cruelmente com dolorosas perfurações fiscais?”, questiona.

Mas a responsabilidade sobre o final, essa, é do leitor e, em última análise, o Orçamento do Estado ainda pode ser um livro de autoajuda. Mas se fosse uma personagem da ficção, Bruno Vieira Amaral não tem dúvidas, seria Javert, de Os Miseráveis, o guarda que dedica a vida a combater o crime e aqueles que são considerados “criminosos”, ainda que não o sejam. Há miseráveis no Orçamento?

Assine a partir de 0,10€/ dia

Nesta Páscoa, torne-se assinante e poupe 42€.

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver oferta

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine a partir
de 0,10€ /dia

Nesta Páscoa, torne-se
assinante e poupe 42€.

Assinar agora