Tiago Mayan Gonçalves diz que é “um pragmático”. É por isso que mesmo vendo “uma carga ideológica” e “muitas possibilidades de melhoria” na Constituição — que iria jurar cumprir se fosse eleito Presidente da República —, não dedica muito tempo ao assunto ou a pensar no que proporia numa revisão constitucional: “Só muda com dois terços na Assembleia da República, isso não vai acontecer num futuro previsível. Mas esta Constituição não impede muito do que defendo. Impedem os bloqueios e o facto de estarmos presos às mesmas propostas há décadas”.

Tiago Mayan Gonçalves diz que é “um pragmático” — mas os sonhos que tem não são nem simples nem pouco ambiciosos. O que o candidato apoiado pela Iniciativa Liberal quer é, como cantava Pedro Abrunhosa, fazer o que ainda não foi feito. O que não foi feito no Portugal de Ramalho Eanes (1976-1986), Mário Soares (1986-1996), Jorge Sampaio (1996-2006), Cavaco Silva (2006-2016) e de Marcelo (2016-?), para citar apenas cinco antecessores no cargo a que agora se candidata.

O advogado do Porto que fundou a IL sonha com um Portugal novo, diferente daquilo que foi até hoje — e foi isso que vincou esta sexta-feira, em mais um dia com poucas ações de campanha, que se dividiu entre uma entrevista na TVI (a Manuel Luís Goucha) e uma conversa-entrevista online com universitários da Católica de Lisboa, moderada por representantes de duas associações de estudantes da faculdade: a Associação Académica de Direito e a Associação Académica do Instituto de Estudos Políticos.

O novo Portugal que Mayan Gonçalves quer é um Portugal mais liberal — coisa que, diz, o país nunca foi nos termos que preconiza. Mais liberal em tudo: no peso do Estado na economia, na intervenção pública no sistema financeiro, na forma como o Estado regula e decide sobre as opções pessoais de vida dos portugueses. Notem-se algumas áreas onde que o candidato presidencial é liberal, a partir do que disse esta sexta-feira na conversa por Zoom.

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  • É liberal na liberalização da canábis — mas bloquista nisso não é, acrescentava ele: “Em termos de liberdades sociais, temos abordagens do BE muito antagónicas com as da IL. Na canábis, por exemplo, [o BE defende] políticas de controlo do Estado em vez de ser mercado livre”;
  • É liberal em relação à despenalização da morte medicamente assistida, vulgo eutanásia: diz que “promulgaria a despenalização”, que não é favorável a um referendo e que não quer “o Estado, a força máxima do Estado, a perseguir um médico que ajude alguém a morrer dignamente estando naquelas circunstâncias”;
  • É liberal no que defende sobre a TAP: defende “desligar a torneira”, pede “nem mais um euro de dinheiro público para a TAP”;
  • É liberal no que defende que se deve fazer quando um banco entra em falência: “Temos o Novo Banco, o Montepio… Desde o início que quer eu quer o meu partido defendemos que este salvamento de bancos não fez sentido e continua a não fazer”. Solução? “Empresas privadas, lucros privados, prejuízos privados”. Ou seja, deixar cair o banco;
  • É liberal quanto à defesa da não imposição de quotas “de género e étnicas”: “Estamos aqui a determinar por categorias se alguém é competente e capaz de chegar a um cargo ou uma função. O indivíduos, sem qualificação de género ou etnia, pode ser homem, mulher, negro, branco — deve por si e pelo seu mérito e capacidades chegar onde quer. Isso não se faz com quotas”;

Tiago Mayan Gonçalves sabe que não é fácil reivindicar um espaço político novo — que não é nem o da direita democrática clássica (é-o mais na economia), nem o da esquerda (é-o mais nos costumes). E diz que estas “são ideias que não são novas no contexto mundial, mas são muito novas no contexto político português”. A ambição, enorme, é de recuperar um espírito de tradição liberal que o candidato diz não se ver há dois séculos no país: “Tivemos liberais há 200 anos. Trouxeram uma Constituição para o país, formaram uma carta de direitos e garantias, definiram princípios democráticos e de separação de poderes. Desde aí não temos liberalismo em Portugal”.

Ainda não é fácil explicar à maioria dos eleitores o que é isto do liberalismo da IL, mas Mayan Gonçalves vai tentando: diz que é ter “uma visão totalmente distinta das últimas décadas, em que o Estado tem sido continuamente mais interventivo na economia, na vida das pessoas”. Ora, “ser liberal é preconizar um caminho contrário — menos intervenção do Estado na vida das pessoas. Isto traz mais liberdade económica, mais liberdade política e mais liberdade social”. Complexo, assume: “Porque somos tudo isso, isto às vezes é confuso para quem usa o espectro da esquerda e direita”.

Mayan Gonçalves sabe que a base do eleitorado da IL está à direita, porque o eleitorado mais arraigado à esquerda foge do liberalismo na economia como o diabo na cruz — dá-se melhor com o “socialismo”, o grande inimigo desta candidatura presidencial que vê em Marcelo um quase-socialista. Mas o candidato quer desmistificar a ideia que esquerda e direita são coisas estanques, que ser liberal seja necessariamente ser de direita. Até porque, nota ele, também há outros eixos como “progressistas vs conservadores” que não dividem esquerda e direita como seria suposto: “O PCP e o Chega são dois partidos muito conservadores” e são de dois polos ideológicos supostamente distintos.

“Há eixos que não se coadunam com o típico esquerda e direita” e hoje em dia, o que o candidato vê é “sociedades abertas” e “sociedades fechadas”. Em Ventura e João Ferreira, vê aliás algumas semelhanças: “O João Ferreira pela ideologia que perfilha… o comunismo preconiza uma ditadura, a ditadura da classe operária. André Ventura não sabemos muito bem [a base ideológica que o sustenta], mas ouvimo-lo e o que ouvimos tem sinais muito preocupantes dessa mesma deriva autoritária.”

Tiago Mayan critica “campanha de baixo nível” de Ventura, à base de “insinuações”, “insultos” e “ataques pessoais sem conteúdo”

Na conversa por Zoom, o candidato presidencial reconheceria em dois momentos distintos que este seu posicionamento ideológico — e o do seu partido — “às vezes confunde”. Mas Mayan Gonçalves garante que está cá para combater “os papões que ainda se continuam por vezes a associar à proposta liberal”. Papões como “vamos destruir o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública”. Papões que recusa: “Nada disso é ser liberal. Mas é difícil desfazer os papões. É um trabalho que tem de ser feito e estou a tentar fazê-lo”.

Se Marcelo, Ventura, Ana Gomes, Marisa Matias e João Ferreira são faces diferentes de uma moeda que o candidato recusa — “esta é uma proposta de diferença relativamente a tudo e a todos, não só aos extremismos mas também ao situacionismo” —, o candidato da Iniciativa Liberal diz que “todos os intervenientes” (candidatos) falam “dos sintomas, dos processos, dos protagonistas, dos corruptores e dos corrompidos”. De justiça, de corrupção, de leis. “Mas não estão a falar da doença, só estão a falar dos sintomas”, vinca. Qual é, afinal, a doença? “O Estado opaco, o Estado gordo, o Estado burocratizado”. O Estado que para o candidato não é inimigo, mas não deve ser asfixiante nem deve estar tão presente como está. Nem pouco mais ou menos.

Houvesse “desburocratização”, houvesse “menos investimento nas obras públicas” — tudo “campo aberto para a corrupção” — e os problemas seriam menos, acredita o portuense. Lá fora, vinca ainda, as ideias “resultam”. Será capaz de convencer os eleitores com a tese?

“Desculpe, Tiago, não o estamos a ouvir… não… ainda não”

Antigamente os problemas técnicos em campanha eleitoral eram outros: o risco de um furo, a pouca gasolina no carro, o cansaço de palmilhar ruas e cumprimentar eleitores, as canetas que nas visitas a feiras e mercados saíam que nem paninhos quentes e obrigavam a reposição de stock. Não sabemos que campanha faria Tiago Mayan Gonçalves se não existisse pandemia, mas sabemos a que está a fazer neste contexto.

Esta sexta-feira, na entrevista com estudantes da Católica de Lisboa, já os moderadores se tinham apresentado, já o candidato presidencial tinha aderido à conversa por Zoom, já uma pergunta fora feita mas som de resposta nem ouvi-lo. Estes são os problemas técnicos de uma campanha eleitoral em 2021: “Desculpe, Tiago, não o estamos a ouvir. [Pausa] Não sei se há um problema… [Pausa] Não, ainda não”. Tudo se acabou por resolver, claro.

Ventura de orelhas a arder: “deriva autoritária”, “vazio de propostas”, “ódio”

Houve ataques para todos os gostos. O guião de perguntas da conversa online incluía questões sobre outros candidatos e Tiago Mayan não se coibiu de apontar críticas. Sobre João Ferreira, lembrou: “O comunismo preconiza uma ditadura, a ditadura da classe operária”. A Marcelo Rebelo de Sousa, apontou incongruências nas explicações para a não recondução da Procuradora-Geral da República e do presidente do Tribunal de Contas e deixou críticas à promulgação de uma série de leis que diz que teria vetado. De Ana Gomes voltou a dizer que “vê mal ao perto” por causa de José Sócrates. E à socialista e aos restantes candidatos, apontou uma mesma crítica: veem os problemas, que são os sintomas de uma doença maior, mas não sabem identificar a causa.

Ainda assim, os ataques mais marcantes do dia foram a André Ventura. Nesta conversa com estudantes, o candidato apoiado pela Iniciativa Liberal notou que não defende a ilegalização do Chega mas sim o combate ao partido de Ventura com recurso aos argumentos e à discussão de ideias. Mas notou a “deriva autoritária”, o “vazio de propostas”, as soluções que visam “a opressão do indivíduo e do Estado de direito, a opressão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”.

Umas horas antes, através das redes sociais, Mayan já fizera uma demarcação relevante face a Ventura sem o nomear diretamente. O que disse, mas não por estas palavras, foi que se todas as ideias são legítimas e podem ser debatidas democraticamente, não se debate na lama. O que  disse, por estas palavras, foi que “temos assistido” a um “tom e estilo de campanha de baixo nível” que já fora “tentado em alguns debates entre candidatos”, que os portugueses não querem uma campanha “carregada de acusações, insinuações e insultos”, que “o extremar de posições e o discurso político baseado em ataques pessoais sem conteúdo nunca traz bons resultados”. E voltou a marcar uma linha vermelha, prometendo combater — ao invés de se aliar — a forças populistas e autoritárias de direita: “Tudo farei para que o populismo e o extremismo sucumbam à moderação e à boa-educação e para que o ódio e o ressentimento sejam derrotados pela construção de soluções positivas para a vida dos portugueses”.