Durante cerca de dois anos, entre 2014 e 2016, Firas Fayyad e Steen Johannessen, realizador e co-realizador de “Last Men in Aleppo” (“Os Últimos Homens em Alepo”), respetivamente, acompanharam três membros do grupo de socorristas Capacetes Brancos: Khaled, Mahmoud e Subhi. São eles que vemos dentro de carrinhas a caminho do local onde, minutos antes, caiu uma bomba. São eles que vemos de joelhos pregados no chão, curvados sobre os escombros do edifício que acabou de ruir, à procura de vítimas. A cavar com as mãos à procura de vítimas. Às vezes, também os vemos a conversar, parados à beira da estrada, de olhos pregados no céu, a tentar adivinhar as coordenadas da próxima bomba. Quando é que ela irá cair? Sabemos que vai cair – elas estão sempre a cair – mas quando? E onde? Outras vezes ainda, vemo-los a jogar futebol em campos improvisados em pátios nas traseiras de edifícios, a tentar abstrair-se “com coisas que os fazem sentir-se um pouco melhor”.

Firas Fayyad e Steen Johannesse acompanharam durante cerca de dois anos estes membros do grupo de socorristas que esteve nomeado em 2016 para o Prémio Nobel da Paz. Chegaram ao fim com mais de 300 horas de filmagens e muitas dúvidas sobre se deveriam ou não mostrar as imagens violentíssimas de crianças mortas a serem retiradas dos escombros, que haviam captado. “Será que devemos mostrar estas imagens às pessoas? Em que é que isso vai ajudar? Será que devemos, pelo contrário, evitar mostrar-lhes isso?”. Optaram por mostrar e, em entrevista ao Observador, Firas Fayyad, o realizador, explica, entre outras coisas, o porquê desta decisão.

“Last Men in Aleppo” foi distinguido pelo júri do festival de Sundance com o Grande Prémio para Melhor Documentário Internacional. A sua estreia europeia acontece esta quarta-feira, no Festival Internacional de Documentário de Copenhaga (CPH:DOX), dia em que se assinalam precisamente seis anos desde o início da guerra civil na Síria.

Firas Fayyad, realizador do documentário, foi ele próprio preso e torturado pelo regime sírio @D.R.

Alguns meios de comunicação próximos do regime sírio e do Governo russo acusam os Capacetes Brancos de ligações a grupos terroristas e de simular salvamentos. Este documentário é a prova de que essas acusações são falsas?
Os Capacetes Brancos são testemunhas dos crimes cometidos pelo regime e pelos russos, por isso é normal que sejam alvo dessas acusações e que tanto o regime sírio, como o Governo da Rússia, e até alguns jornalistas russos, tentem denegrir a sua imagem e fazer tudo para impedi-los de continuar a trabalhar. Mas qualquer pessoa saberá também qual é a diferença entre apoiar alguém que usa as suas mãos para salvar vítimas e alguém que usa armas para bombardear cidades com a justificação de que está a combater os terroristas. Muitas pessoas largaram as suas armas para se juntarem aos Capacetes Brancos. Para os jovens sírios, as oportunidades são muito limitadas. Fazer parte deste grande grupo de voluntários permite-lhes encontrar um rumo para as suas vidas e fazer alguma coisa pelo seu país. Se não fossem os Capacetes Brancos, muitos destes jovens já teriam pegado em armas e já se teriam juntado aos radicais.

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Porque é que decidiu fazer este documentário?
Estive preso duas vezes, em prisões na Síria, por causa do meu trabalho enquanto realizador. Aconteceu o mesmo a outros jornalistas, realizadores, artistas e pessoas que, sem ser através da sua profissão, se manifestaram e lutaram contra o regime. Assisti a muitas situações de tortura na prisão, incluindo de voluntários dos Capacetes Brancos, médicos que trabalhavam em hospitais e postos médicos nas zonas controladas pela oposição e pessoas que tinham decidido simplesmente manifestar-se nas ruas contra Bashar al-Assad. Eu próprio fui torturado pelo regime sírio por fazer filmes. Os guardas foram muito agressivos comigo na prisão. Não havia ali qualquer humanidade. Todos os dias via corpos de pessoas mortas nos corredores, pessoas que tinham sido espancadas ou morrido de outras formas muito violentas. Foram essas experiências na prisão que me levaram a querer fazer este documentário. Quis dar voz a todas essas pessoas que foram torturadas ou perseguidas por se oporem ao regime e por exigirem uma mudança.

O documentário acompanha três voluntários dos Capacetes Brancos: Khaled, Mahmoud and Subhi. Porque é que, de todos os membros do grupo, escolheu filmar estes homens?
Conheci Saleh [Raed al-Saleh, líder dos Capacetes Brancos] numa altura em que ele começara, juntamente com alguns colegas, a reunir um grupo de voluntários para resgatar pessoas devido aos bombardeamentos do regime e seus aliados. Este grupo autodenominava-se então Defesa Civil da Síria. Comecei a acompanhá-los para tentar perceber qual o seu trabalho e de modo é que o faziam. No meio disto tudo, conheci Khaled, Subhi e Mahmoud. Foi através deles que descobri que, dentro dos Capacetes Brancos, havia pais e filhos a trabalhar lado a lado, irmãos, famílias inteiras. Isso fez-me questionar algumas coisas. Dos três, fiquei sobretudo impressionado com Khaled, uma pessoa com um grande carisma. Ele tinha esta capacidade incrível de se abstrair por completo da realidade e agarra-se a coisas que o faziam sentir-se um pouco melhor, coisas simples como jogar futebol ou comprar peixe. Foi isso que me fez querer filmá-lo, acompanhá-lo, não só a ele, mas também a Subhi e Mahmoud. Quis perceber como é que estes homens vivem e o que é que os faz continuar a acreditar na vida. No início não foi fácil. Eles não queriam ser filmados, não percebiam qual a importância disso. Queriam simplesmente continuar a fazer o seu trabalho de forma discreta e evitar qualquer show-off. Foi preciso algum tempo até eu os convencer a participar no documentário.

Khaled Omar Harrah no terreno a socorrer as vítimas dos bombardeamentos @D.R.

E o que é que lhes disse então? Como é que os convenceu?
Eu próprio estive envolvido nesta situação da Síria. Sou sírio, estive preso, fui torturado, como já contei. Fui obrigado a abandonar o país depois de ter recebido várias ameaças. Além disso, eu e estes homens falamos a mesma língua. Eu conheço-os e sei como é que eles se sentem. Usei isso a meu favor para tentar que percebessem o quão importante era partilharem as suas histórias com a comunidade internacional. O quão importante era que as pessoas soubessem o que estava a acontecer na Síria e qual o trabalho que eles estavam a fazer, pois só assim eles poderiam ser ajudados, apoiados. Eles confiaram em mim e acabaram por me deixar filmar, mas confiaram sobretudo nas pessoas. Confiaram que as pessoas, ao ver depois o documentário, iriam fazer alguma coisa para acabar com a guerra.

Quando é que começaram a filmar?
Pensámos no assunto pela primeira vez em 2013, mas só começámos a filmar em 2014. Nessa altura, não tínhamos ainda uma história, por assim dizer. Foi só em 2015, quando os russos começaram a bombardear Alepo [finais de setembro], que eu e o diretor de fotografia decidimos focar-nos nos bombardeamentos e nos resgates, e na história e missão destes voluntários dos Capacetes Brancos. No total, foram mais de três anos a trabalhar neste documentário.

E filmavam com que frequência?
Praticamente todos os dias. Chegámos ao fim com cerca de 300 horas de filmagens. Depois foi preciso montar aquilo tudo e a nossa ideia foi sempre, desde o início, acompanhar e mostrar o trabalho destes voluntários, os resgates, mas também mostrar o grande conflito interior por que eles passam, as muitas dúvidas que têm sobre se devem permanecer ali, no meio da guerra e da morte, ou simplesmente abandonar o país. Há uma pressão enorme para deixarem o país – as suas famílias correm perigo, eles próprios também – mas ao longo do documentário percebemos que o desejo deles é ficar, apesar de tudo, e construir ali uma vida. Mesmo aqueles que decidem abandonar o país não o fazem por sua vontade. Não é uma escolha que eles façam. Mas quando as suas casas ficam totalmente destruídas não lhe resta outra hipótese senão procurar refúgio noutro lugar. Tentámos passar esta ideia, do mesmo modo que tentámos mostrar que, embora eles sejam vistos como heróis, não é assim que eles se sentem. Muito pelo contrário. Sentem-se tristes por terem de lidar com isto, lidar com a morte de uma, duas ou dez pessoas todos os dias (nunca se sabe quantas vão ser). Em Alepo, é assim há quase quatro anos.

Há alguns diálogos no documentário que parecem menos espontâneos. Houve alguma preparação, alguma conversa prévia com os socorristas, um guião…?
Eu limitei-me a acompanhá-los no seu dia-a-dia. Todas estas conversas que eu registei são conversas que eles têm diariamente uns com os outros. Se te sentares à mesa com um sírio, seja na Turquia, seja na Síria ou noutro país, é isto que tu vais ouvir. São estas dúvidas entre ficar e partir que te vão ser transmitidas. Porque é este o conflito interior de qualquer sírio em qualquer parte do mundo. E a questão mais importante de toda a crise humanitária na Síria é precisamente esta. Se falares com um sírio na Alemanha, é isto que vais ouvi-lo dizer: “Será que devo continuar aqui ou voltar para a Síria?”. Na Síria, a mesma coisa: “Será que devemos ficar aqui e arriscarmo-nos a perder a nossa família ou será que devemos mandar os nossos filhos para outro lugar que, por pior que seja, pelo menos não tem bombas a cair a todos os dias? Ou será ainda que devemos todos nós ir embora?”. É isto que vais ouvir. Foi isto que nós ouvimos e limitámo-nos a filmar.

Como é que estas pessoas lidaram com o facto de estarem a ser filmadas todos os dias?
Nós tínhamos três câmaras, câmaras pequenas. Passámos muito, muito tempo com eles, por isso as câmaras como que se tornaram parte das suas vidas. Serem filmados tornou-se uma rotina.

Há imagens muito gráficas no documentário, como aquelas que mostram bebés mortos a ser resgatados dos escombros, mas há outras em que se nota que houve um esforço para não mostrar tudo. Qual foi o critério aqui?
Esse foi um assunto que gerou alguma discussão na montagem do documentário. Será que devemos mostrar às pessoas imagens de bebés mortos? E em que é que isso vai ajudar? Será que devemos, pelo contrário, evitar mostrar-lhes essas imagens? Mas depois eu decidi que era importante fazê-lo, que era importante mostrar quem são as vítimas desta guerra. De outra forma, as pessoas poderiam até eventualmente achar que, apesar de haver bombardeamentos, ninguém morre por causa deles. Por outro lado, o documentário ficaria sempre incompleto se optássemos por cortar estas cenas mais violentas. No festival de Sundance, na Alemanha, as pessoas fizeram a mesma pergunta: porquê mostrar estas imagens? E a minha resposta, tanto na altura como agora, é esta: porque quisemos mostrar quem são as vítimas. E agora que sabemos quem elas são, temos de agir rápido. Se não o fizermos, mais crianças vão morrer e a responsabilidade será nossa.

E, de acordo com as reações que as pessoas tiveram depois de ver o documentário, parece-lhe que concordaram essa decisão?
Tenho de reconhecer que, no festival de Sundance, eu estava um pouco assustado com a reação que as pessoas iriam ter ao ver aquelas imagens de bebés mortos, a serem retirados dos escombros perante a aflição dos pais. Depois percebi que não fazia sentido estar assustado. Eu sabia que era importante mostrar e tinha decidido que ia mostrar. No final, muitas pessoas disseram-me ter ficado emocionadas e concordaram que é importante que toda a gente veja isto.

Essas imagens passaram-lhe pelas mãos inúmeras vezes, durante a montagem do documentário e não só. Como é que lidou com isso?
Foi uma fase complicada, de alguma depressão e tristeza. Ainda hoje tenho pesadelos em que vejo bebés e crianças a morrerem. É difícil encontrar alguma paz interior no meio disto tudo. Por outro lado, eu sabia que tinha de fazer isto. Eu sabia que tinha de fazer este documentário para despertar alguma reação nas pessoas, levá-las a agir. Khaled pensava da mesma forma que eu. Ambos acreditámos que as pessoas, todas as pessoas, não só artistas ou críticos de cinema, ao ver este documentário, iriam fazer alguma coisa, por pequena que fosse: ou partilhar um tweet ou escrever um artigo ou até, simplesmente, falar aos amigos e conhecidos sobre este documentário e sobre formas de ajudar esta gente. O objetivo deste documentário é também esse: mostrar às pessoas porque é que os sírios abandonaram o seu país e partiram para a Europa. E apelar a que, antes de serem tomadas quaisquer decisões contra os refugiados, se pense na guerra na Síria e em formas de acabar com o conflito no país, fazendo pressão sobre Bashar al-Assad e sobre a Rússia para pôr fim aos bombardeamentos. Porque se os bombardeamentos terminarem, os sírios vão deixar de querer ir para a Europa. A Síria é um grande país. O problema dos sírios não é económico. O problema deles é o regime ditatorial de Assad que, em vez de tornar as suas vidas melhores, impede-os de se expressarem e viverem livremente, além de ter um grave problema de corrupção e também ao nível do ensino.

Ao fim de seis anos, a guerra na Síria continua sem fim à vista. Que solução para o país defendem os sírios com que conversou?
Essa é uma questão difícil para qualquer sírio. Vou falar por mim. Aquilo em que eu acredito e defendo é que devemos apoiar a sociedade civil no país, incluindo os trabalhadores humanitários e incluindo sobretudo os Capacetes Brancos. Este é o primeiro passo. Só isto fará com que as pessoas acreditem que pode haver paz. Os criminosos que bombardearam a Síria, matando os sírios e obrigando-os a fugir do país, e que são os responsáveis pela atual crise humanitária, devem também ser julgados. Este filme deveria, aliás, servir como prova em tribunal contra esses criminosos. Sem justiça, não haverá paz. Será muito difícil para as pessoas aceitaram que um homem que manteve o país em guerra durante seis anos não seja julgado. Eu tinha 29 anos quando comecei a fazer este documentário. Agora tenho 32 e não sei que idade terei quando esta crise terminar. Por isso, a única coisa que peço às pessoas que lerem esta entrevista é que vejam o filme e pensem em formas de pressionar os vossos próprios governos para acabar com a guerra na Síria. Isso e acreditarem que os sírios, como toda a gente, só querem o melhor para o seu país.