Sai fogo de artifício do palco principal, no sábado à noite, depois do anúncio dos vencedores dos Prémios Bike Show, um dos pontos altos do programa, no penúltimo dia da concentração. O ambiente começa a ser de despedidas e o apresentador aproveita para deixar a mensagem: “aqui não se passa nada, a não ser ‘peace and love’”. Logo de seguida, o presidente do Moto Clube de Faro, José Amaro, acrescenta: “Obrigado por terem confiado”. Se não era um recado, soou a tanto.
Não vale a pena fazer de conta que a Concentração Internacional de Motos de Faro deste ano não decorreu em circunstâncias especiais, depois da detenção, em vários pontos do país, de 58 elementos daquele que é considerado o maior e mais perigoso grupo motard do mundo. Sobretudo tendo em conta que a Polícia Judiciária foi para o terreno, a 11 de julho, precisamente por achar que estava a ser preparado um ataque: os dados reunidos pela investigação — que tinha ganho novo fôlego depois das agressões num restaurante do Prior Velho, em março — faziam acreditar que a concentração de Faro seria o palco de uma vingança cuidadosamente preparada e violenta, entre os Hells Angels e elementos ligados ao grupo rival, Bandidos, liderados por Mário Machado.
Nas últimas duas semanas, a organização do encontro tradicional no Algarve esforçou-se por garantir que não havia qualquer perigo. E mesmo as polícias foram dando indicações de que, com as detenções, o plano tinha caído por terra, mas o alerta não desapareceu. Talvez isso explique que, ao longo de 4 dias de concentração, tantos tenham repetido tantas vezes aos jornalistas: “não se passa nada, está tudo bem”.
Hells Angels. PJ sabia do ataque ao grupo de Mário Machado, mas montou operação no sítio errado
Se lá estiveram, ninguém os viu
Cabelo comprido, tatuagens, veterano das motas — é a descrição mais superficial do homem que conhece todos os cantos da Concentração de Faro. Chama-se Arnaldo Tavares, tem 61 anos e carrega às costas a organização do evento. “Sinceramente, não tenho medo nenhum”, atira-nos no sábado, à hora de almoço, o homem que todos conhecem como “Brasa”. “Este tema dos grupos rivais e dos Hells Angels é-me desconfortável”, confessa. “Parece que houve detenções, mas estamos a falar de acusações, nada está provado. Enquanto não forem julgados, só temos suposições. E também lhe digo: a mentira, quando se repete muitas vezes, passa a ser verdade”, acrescenta.
Os membros dos Hells Angels participam na concentração de Faro há vários anos, costumam até explorar um bar. Quando se pergunta a Brasa onde fica o bar deles este ano, responde “em lado nenhum”. “Não vale a pena quererem falar com eles, porque não estão cá. Não fomos nós que não lhes demos bar, eles é que não apareceram. Se calhar foram presos, não faço ideia, é uma justificação possível”, acrescenta, com ar de quem sabe mais, mas não diz. O homem de quem dizem que conhece todos, não esquece uma cara e sabe de tudo o que acontece na concentração, remata: “Não sei de onde são todos os motociclistas. Eles chegam e preenchem a inscrição, mas eu não fiscalizo tudo o que escrevem no papel. Podem chegar aqui 20 ou 30 e escrever que são dos Hells Angels e nem serem, mas também pode acontecer o contrário, não sei. Não sei se aqui em Faro pode acontecer algum atropelamento [como estaria nos planos da tal vingança], não sei prever o futuro, mas minimamente estou bem informado, eu e o Moto Clube. Não vejo nenhuma movimentação. Cumpro o que as autoridades dizem, mas não sinto medo, não vejo sentido nas notícias que têm saído.” Afinal, nada aconteceu de preocupante. Mas o tão falado grupo esteve mesmo ausente?
As polícias também não sabem dizer. A zona do Vale das Almas está a cargo da GNR. A fiscalização do trânsito e da cidade é tarefa da PSP. Perto das 19h00 de sábado, circulam junto ao recinto carrinhas da polícia de intervenção e vários jipes e carros da GNR que abrem alas com sirenes no meio do trânsito. Mais tarde, aparecem carrinhas da Unidade de Intervenção do GNR. Que as autoridades estavam em força, estavam, mas não precisaram de intervir. Dentro do recinto trabalham também duas empresas privadas de segurança, Shield e Safe Segur. No programa em papel, distribuído aos participantes, lê-se que o Moto Clube de Faro “não se responsabiliza por quaisquer danos materiais ou humanos que possam ocorrer durante a concentração”.
O tenente Carvalho Afonso, porta-voz da GNR, disse ao Observador que “este ano houve mais alguma atenção” ao evento e um “reforço do número de militares, em comparação com o ano passado”. Não adiantou números. Ao dispositivo territorial do Comando de Faro da GNR, que todos os anos está na concentração, juntaram-se, desta vez, o Grupo de Intervenção da Ordem Pública e o Grupo de Intervenção Cinotécnica. Outra fonte da GNR, que não quis ser identificada por não estar autorizada a falar, disse que na quinta e sexta-feira não tinham sido avistados quaisquer elementos dos Hells Angels ou dos rivais Bandidos, mas, provavelmente, estariam em Faro. “Eles sempre vieram e nunca causaram problemas. Estes elementos são presença habitual em Faro, é um fenómeno que existe há vários anos, por isso, duvido que este ano haja motivos acrescidos para preocupação.” Fonte da PSP de Faro confirmou também o reforço de meios: cinco equipas do Corpo de Intervenção da PSP, num total de cerca de seis dezenas de elementos. Sobre o assunto quente, comentou que os Hells Angels são compostos por centenas de elementos, não são apenas os 58 detidos. “Mas eles não viriam pôr-se a jeito. Se arranjassem problemas em Faro, arriscavam mais detenções e isso poderia representar um rombo grande no grupo. Eles querem ser notícia, mas não querem ser presos.”
O alentejano António Nilha, de 58 anos, que vive em Loulé há quase duas décadas, chegou à concentração com a mulher na sexta-feira e garante que os conhece. “Há uma década que venho, com uma ou outra falha pelo meio, e desta vez até estou com um pé atrás, por causa das notícias, mas há um ano fui ao bar dos Angels, eu e muita gente, eles até nos pagaram uns copos, convivemos, pareceu-me gente impecável.” São muitos os que repetem que a concentração de Faro não tem nada que não se veja noutros lugares, Hells Angels incluídos. Sentado à secretária do escritório que tem montado no Vale das Almas, “walkie talkie” ali à mão, Brasa repete essa mensagem e desfia uma tese: “A grande diferença está entre um ‘motorcycle club’ e um clube de motos normal. Os Hells Angels são um ‘motorcycle club’, têm um espírito de irmandade, uma cadeia de comando, uma hierarquia. Agora, se há bons ou maus, não comento. Um clube de motos é outra coisa, funciona como uma sociedade recreativa do bairro. A preocupação é ter uma sede, um bar, que a filha, a mulher e a avó lá entrem. Não há castigos, ninguém tem mão em ninguém. Agora, acho que a hierarquia é boa? Em alguns casos, é. Na tropa é assim e funciona bem.”
Liberdade e rebeldia em 4 dias
A concentração teve início na quinta-feira, 19, mas sexta e sábado foram os dias importantes, como sempre. A temperatura andou acima dos 35 graus. O pinhal de Vale das Almas, mítico cenário de 20 hectares junto ao aeroporto de Faro, encheu-se com 18 mil pessoas, segundo a organização. É provável que os convites distribuídos aos farenses, para lá irem passear e ver espetáculos à noite, tenha esticado o número. Houve muitos momentos de filas e congestionamentos.
O recinto é como o de um festival de música: terra batida, pó, zona de campismo, um palco principal e várias tendas em redor onde há comes e bebes, mesas e bancos corridos, animação a qualquer hora. Espaços para estacionar motos são vários e o passatempo preferido de quem circula é o de parar para comentar máquinas, o grande motivo. Por volta das oito e meia da noite de sexta-fera, decorre um “show” com uma mulher vestida com peças de couro reduzidas que, ao som de Metallica, interage com um homem de calções, envergonhado por ter de passar as mãos pelo corpo dela, em gestos sensuais. É o palco “Trash Circus”, que, daí a nada, apresenta um domador de fogo. O serão vai ter ainda um “nome incontornável da música portuguesa”, diz o apresentador, referindo-se a Jorge Palma, que traz um concerto sóbrio ao palco principal. A reação do público é, talvez, como a noite: nem quente nem fria. Com tantos espanhóis na concentração (uns 70% de inscritos são portugueses, os restantes vêm quase todos do país vizinho), e tanta gente à espera de sons mais carregados, o ânimo solta-se com a atuação seguinte: Obus, banda de “hard rock” da velha guarda que costuma atuar em encontros destes. Se olharmos de repente e a seguir fecharmos os olhos, a imagem que fica é de homens de meia-idade com barba e coletes em pele. Se quisermos tentar resumir o que se ouve, termos uma mistura de guitarras elétricas a sair de colunas e o rugir constante de motores. Se formos descrever apenas o cheiro, é a polvo assado, a cerveja, a pinheiros e a combustível.
O entra e sai no recinto, desfile permanente de motos que passeiam por Faro, Olhão ou Portimão e depois regressam à concentração, entope a diversas horas a rotunda do aeroporto, acesso principal ao Vale das Almas. Sexta foi a sério, sábado foi o auge. À escala e à medida, Faro, neste fim de semana, foi a cidade que nunca dorme. As motos soam até às três da manhã. Às primeiras horas do dia, estão novamente nas ruas e nas estradas.
Robert Clamence, de 45 anos, vindo da Irlanda do Norte, chegou na quinta e “basicamente é só diversão”. É a segunda vez em Faro, depois da estreia há cinco anos. Vamos encontrá-lo na baixa da cidade, à mesa de um café, com mais três amigos que também conhecem a concentração. É sábado de manhã e dois deles, lentos nas respostas, fazem prova de que devem muitas horas ao sono. Robert é o mais fresco. A concentração é um “acontecimento muito famoso” em toda a Europa, diz, porque o clube de Faro “é mítico” e o ambiente “é seguro, toda a gente está num registo informal”. Ele e os amigos não ouviram falar de qualquer perigo este ano. E também não estão preocupados. “Somos de Belfast, estamos habituados a situações estranhas”, dizem. “Agora a sério”, insiste Robert, “não vimos nada estranho, está tudo bem.”
Os homens, aqui, são jovens para sempre. É certo, comportam-se dessa maneira. Entre os realmente novos há um claro culto do corpo ou da imagem: músculos, roupa, acessórios. Entre os mais velhos, vê-se o cabelo comprido, grisalho ou já branco, e há “t-shirts” da digressão “Loose Your Illusion” dos Guns’n’Roses, em 1991. A caminho do Vale das Almas, num autocarro especial que liga o recinto ao centro de Faro, a cerveja torna ruidoso um grupo de espanhóis que cantam em castelhano cerrado, brincam ao toca e foge e comentam mulheres vistosas que passam na rua. Ao lado, seguem dois casais de canadianos que se riem de fotos do telemóvel, como adolescentes Instagram. No área de campismo, dentro do recinto, alguém decide que duas motos também têm direito a pernoitar protegidas: estão sob um avançado e todos as veem através de uma rede antimosquitos. Brasa, mestre de cerimónias, há-de comentar que “rebeldia e liberdade” sempre foram valores associados aos motociclistas. “Eu, por exemplo, tenho uma Indian, gosto de modificar a moto, muita gente gosta, só isso já é uma forma de mostrar que somos inconformistas”, dirá. “O motociclista pode usar tatuagens e cabelo comprido, anda livremente na estrada, está como gosta de estar, é a melhor descrição possível.” Neste encontro anual, tantos juntos celebram a atitude.
O espírito de diversão e o amor às motos
O almoço de sábado é uma sardinhada em larga escala e deixa até ao fim do dia um cheiro a peixe no sítio e nas pessoas. Nesta tarde, o que mais atenções atrai é o Bike Show, exposição de motos de participantes que se inscreveram para exibirem as máquinas a que dedicam tantas horas em modificações e decorações. Decorações inimagináveis. Góticas, grotescas, ingénuas, Las Vegas, “rétro”, animalescas, futuristas, minimalistas. Uma delas parece uma mesa. Melhor: é uma mesa. De piquenique. Com tampo de madeira, bancos, estrado. Tudo em cima da máquina. Concorre na categoria “Strange” e na placa de inscrição lê-se: “Marca: Mesa Portuguesa. Características: Bom apetite, não bebam muito.” O autor é “Zé”, um inventor da aldeia da Bordeira, a 17 quilómetros de Faro. Todos os anos, traz uma geringonça ao encontro. “No ano passado foi uma televisão, andei montado nela”, explica, com cerveja na mão e entusiasmo desmedido.
Ainda no sábado à tarde, um “speaker” apela “à coragem das senhoras” para que se inscrevam no concurso Miss Faro (a que antigamente chamavam Miss T-Shirt Molhada). Prémios de 500 euros para a primeira classificada, 300 para a segunda, 200 para a terceira. A cerveja, evidentemente, é refresco de todas as horas. Num “stand” do Moto Clube, à entrada da concentração, que é onde páram muito visitantes antes de se aventurarem pelo evento propriamente dito, tinham-se vendido à volta de sete mil litros de cerveja até sábado de manhã.
A farense Adriana Carmo, de 30 anos, que não tem moto nem conduz, mas desde pequena visita a concentração – primeiro com o pai, agora com o marido, Hugo Matos, de 31, dono de uma Honda Hornet 600 – garante que “há aqui um amor muito grande pelas motos, uma coisa inexplicável, vem gente de muitas partes do mundo, um grande espírito”. À pergunta sobre se o caso Hells Angels a fez recear vir, a resposta sai disparada: “Nada, nada, estou seguríssima.”
As histórias que fazem dos Hells Angels “o maior e mais perigoso” grupo de motards do mundo
Às 10 da manhã de domingo, pouco antes do tradicional desfile de motos pela cidade, momento que encerra oficialmente a concentração, um espanhol de meia-idade que viajou 300 quilómetros desde Trebujena, em Cádiz, prepara a mota para o regresso a casa e diz que não ouviu falar de risco algum na concentração deste ano. “Pelo contrário, quando cheguei na sexta-feira só vi uma boa organização”, esclarece o andaluz, que este ano se estreou em Faro. “No futebol é que costuma haver violência, aqui encontrei companheirismo.” E faz-se à estrada.