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Os livros, as paixões e o chá: Wenceslau de Moraes, o nosso homem no Japão

É pela pena deslumbrada deste antigo oficial da Marinha que temos os melhores retratos em português do Japão oitocentista. Foi ele o grande relator do Oriente, depois de uma transformação inesperada.

Podemos discutir se a chegada Portuguesa ao Oriente se deveu mais a ambições materiais ou espirituais: o que não podemos negar é a direcção de cada uma delas; o espírito era para ser levado e o material para ser trazido. A confirmá-lo, resmas de bibliografia, de fontes etnográficas, memórias de viagem ou obra epistolar. Basta lembrar as primeiras incursões, tímidas, ainda anárquicas, pela Costa Ocidental Africana para mostrar o interesse dos portugueses pelas riquezas de longe; basta lembrar que o primeiro porto indiano em que a expedição de Vasco da Gama atracou foi no de Calecut, principal centro de exportação da tão ambicionada terra; basta lembrar a ganância que suscitou a primeira visita de embarcações portuguesas ao Japão, logo seguida por tantas outras, de tal forma que a coroa se viu obrigada a restringir o número de visitas anuais.

Se não for suficiente, também os empenhos jesuíticos na conversão dos Orientais, as célebres conversões de S. Francisco Xavier ou as viagens de Frei Gaspar da Cruz, descritas no Tratado das Cousas da China, ao encontro das populações que melhor recebessem a Boa Nova, tudo isto, dizíamos, o pode também atestar. Pode atestar que, aos viajantes, tanto interessavam questões espirituais como materiais, mas que a ordem estava bem estabelecida: os que se preocupavam com o espiritual, queriam levá-lo da Europa ao Oriente, os que se preocupavam com o material, queriam trazê-lo do Oriente para a Europa.

Não deixa, por isso, de ser curioso verificar que, nos fins do século XIX e princípios do século XX, se dê, sobretudo na literatura, uma certa inversão. Os homens cansados do frémito materialista, intoxicados pelo vapor das locomotivas, com o espírito enegrecido pelo carvão das caldeiras, foram encontrar no Oriente o mesmo bálsamo espiritual que os seus avoengos procuraram levar aos gentios.

É certo que nem toda a literatura Ocidental sobre as terras do Índico hagiografa o Nascente; há, durante o século XIX, incessantes avisos sobre o perigo amarelo – sobretudo depois da vitória nipónica sobre a Rússia, já no século XX –  descrições fantasiosas sobre os monstros sinos e lendas absurdas que o aumento da distância tende também a aumentar. Porém, a melhor literatura da época sobre o Oriente – pelo menos a portuguesa, para não entrarmos em casos como o de Pierre Loti – é completamente aculturada, e forjada em reacção profunda aos fascínios positivistas do Ocidente, ao modus vivendi americano, e ao materialismo céptico Europeu que atravessou, não só as Ciências Humanas – da História de Herculano ao Romance Naturalista de Zola –, mas também as Divinas (de que Renan nos dá o maior exemplo).

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“Relance da Alma Japonesa”, na edição da Imprensa Nacional – Casa da Moeda

Camilo Pessanha, professor em Macau, de quem Joaquim Paço d’Arcos, nas suas Memórias, nos dá um vivo retrato, é um exemplo óbvio deste tipo de reacção. Desde o imaginário ao tão celebrado gosto pelo simbólico, vários são os aspectos que lembram o Oriente;  mas mais flagrante ainda, até pelo teor da sua obra, é o caso de Wenceslau de Moraes. É pela pena deslumbrada deste antigo oficial da Marinha que temos os melhores retratos em português do Japão oitocentista.

A transformação de Wenceslau no nosso grande relator do Japão é, de todo em todo, imprevisível. Afinal, Wenceslau de Moraes só começa a carreira de escritor numa idade em que os outros já costumam ir bem adiantados. Além disso, nada o fazia prever. Podíamos dizer que o encontro com o exotismo nipónico remoçou no militar os ímpetos criativos; no entanto, Wenceslau passou os vinte anos anteriores ao Japão em Moçambique e Macau, terras tão férteis para a imaginação como o país do Sol Nascente. É difícil explicar o que é que levou Wenceslau da marcial carreira ao quase eremitério em que transformou os seus últimos anos; no entanto, há dois ou três acontecimentos que nos dão algumas pistas.

Em Macau, Wenceslau de Moraes travou conhecimento e uma sólida amizade com Camilo Pessanha. Ao mesmo tempo, conhece Atchan, uma rapariga que, à maneira oriental, lhe é vendida e de quem Wenceslau tem dois filhos. Tudo se encaminha para que a vida de Moraes se estabeleça definitivamente em Macau. Daí que os biógrafos se esforcem por encontrar razões para a precipitada saída para o Japão. Aqueles, como Oldemiro César e Ângelo Pereira, que estudam os amores de Wenceslau, atribuem a saída a razões do coração. De facto, aproveitando-se de uma visita de Wenceslau de Moraes a Lisboa, a proxeneta de Atchan vende-a outra vez, para desgosto do amante, que decide ir esquecê-la para longe. Outros, mais materialistas, põem a tónica na acção económica de Wenceslau. Este, excitado pelo êxito de Hong Kong, quereria diversificar a economia macaense, o que lhe teria criado conflitos com os traficantes de ópio. Seja por que razão for, a verdade é que Moraes sai de Macau com o seu espírito poético reavivado pelos encontros com Pessanha e encontra no Japão a melhor musa para o seu estro.

O escritor, que depois de se reformar da Marinha, obteve o consulado de Kobe, não voltou a sair do Japão. E foi entre Kobe e a mais pequena Tokushima que se constitui o grosso da sua obra, ao mesmo tempo etnográfica e poética, sem deixar de ser nenhuma delas. 

É curioso que Moraes tenha escolhido o Japão, porque a sua estreia no Oriente, por estranho que pareça, não foi auspiciosa. Visitou primeiro a China, que acho suja e conturbada, por contraposição ao país do Sol Nascente, brando e gentil, que encontrou depois. Podemos adivinhar as suas próprias sensações ao encontrar o país a partir daquilo que ele próprio atribui aos primeiros Japoneses, vindos da China, no seu livro Relance da Alma Japonesa: um meio “hospitaleiro, sorridente, carinhoso”, um “éden de delícias”, perturbado de quando em quando, na sua paz, por “calamidades naturais”.

Ora, este tom apaixonado é um dos aspectos que torna mais interessante a obra de Wenceslau de Moraes. O escritor, que depois de se reformar da Marinha, obteve o consulado de Kobe, não voltou a sair do Japão. E foi entre Kobe e a mais pequena Tokushima que se constitui o grosso da sua obra, ao mesmo tempo etnográfica e poética, sem deixar de ser nenhuma delas. Os títulos falam por si, de Dai-Nippon ao Relance da Alma Japonesa, das Cartas do Japão ao Culto do Chá, todos os livros dão a conhecer aspectos da cultura Japonesa, da sua paisagem ou das suas gentes. Wenceslau, não só apaixonado pelo Japão mas também por uma Japonesa, dá conta de um povo que, acima de tudo, mantém a sua estrutura espiritual.

O Culto do Chá, uma das suas obras mais interessantes, dá-nos conta disto mesmo: Wenceslau não conta apenas o ritual quase sagrado do chá, a sua apanha pelas trabalhadoras sorridentes que namoriscam na lavoura, o sabor delicado que é fortalecido nas fábricas de exportação para os sedados paladares americanos, ou a própria forma de beber chá; Wenceslau conta-nos tudo isto, mas não o faz com a superioridade céptica do antropólogo que observa o comportamento animal; não depura a História das suas lendas, confiante no poder evocativo destas; não descura as experiências pessoais, sem dar ao tom quase confessional das suas obras aquela esterilidade narcisista que tantas vezes contamina o estilo de um viajante.

“O Culto do Chá”, de Wenceslau de Moraes

Wenceslau de Moraes conta a lenda do sábio que, por ter adormecido quando pretendia ter uma noite de vigília em meditação, cortou as pálpebras traidoras e lançou-as ao chão, e destas inauditas sementes saiu a planta do chá, capaz de espertar mesmo os mais sonolentos; conta a tragédia de amor entre dois seus conhecidos, mestres da arte do chá, que se matam por não poderem perpetuar o nome das duas famílias ao mesmo tempo, tragédia essa que nos dá ao mesmo tempo o ambiente misterioso do Oriente e o conhecimento sóbrio da sua cultura familiar.

A obra de Wenceslau de Moraes cativa sobretudo por causa do seu poder evocativo; quem o lê sente nas páginas o roçagar dos bambus e nas palavras o exotismo dos Kimonos e das bonecas de loiça. E é interessante porque, apesar da pouca pretensão, dá um ensinamento valioso à ciência Ocidental: Wenceslau de Moraes mostra que não é preciso ser um espectador desinteressado para ver com clareza aquilo que se observa. Que há tons que só se conhecem com um amor profundo e uma imersão completa naquilo de que nos ocupamos.

Se Wenceslau, como diz Helmut Feldmann, tem uma fase de anedotário e outra de arauto de uma nova Ordem baseada no Sol Nascente, acaba a vida como um verdadeiro apaixonado pelo Japão e por todos aqueles pormenores que só se conhecem a partir de dentro.

Os últimos anos da vida de Wenceslau foram estranhos: era o único Ocidental na pequena terra em que vivia, cada vez mais solitário. A lenda romântica diz que nunca quis abandonar o túmulo do seu último amor, mas a verdade é que já muito antes se tinha desobrigado dos afazeres consulares e ocupava-se apenas da auscultação solitária da alma japonesa. Nenhum escritor Ocidental foi tão lido no próprio Japão quanto Wenceslau; Loti torna-se famoso, cria a moda do Orientalismo que passou a Europa inteira e chegou até ao Mandarim de Eça de Queirós, mas nunca perde o sentimento Ocidental. Com Wenceslau de Moraes o caso é diferente.

Se Wenceslau, como diz Helmut Feldmann, tem uma fase de anedotário e outra de arauto de uma nova Ordem baseada no Sol Nascente, acaba a vida como um verdadeiro apaixonado pelo Japão e por todos aqueles pormenores que só se conhecem a partir de dentro. E é isso que torna a obra de Wenceslau de Moraes tão viva, e que lhe permite sair do mero anedotário de viajante.

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