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Carsten Koall/Getty Images

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Os profissionais de saúde que o coronavírus obrigou a sair de casa (e que vivem da solidariedade dos outros)

A trabalhar ou em quarentena, médicos e enfermeiros tiveram de deixar as suas casas por precaução. Longe da família, vivem da solidariedade dos outros e falam da tensão nos hospitais onde trabalham.

Michel deixou de ver notícias e as saudades das filhas deitam-no abaixo. Marina quer proteger os pais e não vê a hora de regressar ao trabalho. Rui não gosta de estar sozinho, mas já se habituou. Joana tinha férias marcadas e estava a ponderar ser mãe, mas teve de adiar todos os planos.

São muitos os médicos e enfermeiros que, por estarem a trabalhar ou em quarentena, optam por viver em casas ou quartos disponibilizados por hotéis e pelo alojamento local. Não querem correr o risco de contagiar os que lhes são mais próximos, por isso, deixam a família, os amigos, a rotina e o conforto. Acreditam que a opção vale a pena e a situação é temporária, mas ainda não conseguem saber quando voltam a casa. Vivem graças à solidariedade dos outros, amigos ou perfeitos desconhecidos. Fintam as saudades com as novas tecnologias, habituam-se ao silêncio e nem as folgas são suficientes para colmatar o cansaço. Uns estudam o vírus nos tempos livres, outros preferem não ver números nem notícias, mas todos parecem saber que o pior ainda para vir.

“Isto é horrível, nunca estive longe delas mais do que dois dias”, é assim que Michel Alves, enfermeiro de traumatologia no Hospital de São João, define a situação que está a viver. Morava com a mulher, também ela enfermeira, e com as duas filhas menores em Fafe, mas, na passada segunda-feira, mudou-se sozinho para um T0 no Porto.

A decisão foi difícil, mas tomada em poucas horas. “Quanto mais a doença avançava, maior era o receio de contaminar a família, não fazia sentido sujeitá-las a isto”, diz o enfermeiro de 38 anos em entrevista ao Observador. Deixar as crianças, uma com quatro e outra com nove anos, com os avós nunca foi uma opção. “São um público de risco e por muitos terem deixado os filhos com eles é que Itália chegou a este ponto”, explica.

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Quando o novo coronavírus se começou a manifestar no Norte do país, o enfermeiro passou a usar máscara cirúrgica diariamente e a ver o receio no rosto de doentes e colegas. “Atendemos sobretudo idosos e qualquer um deles pode ser suspeito. Não estamos verdadeiramente preparados para isto, é uma lotaria, uma questão de sorte.”

Michel Alves admite que “a única alternativa” era mesmo um dos elementos do casal ficar em casa com as filhas e, pelo menos até dia 29 de março, é isso que vai acontecer. “A minha mulher é enfermeira de ginecologia também no S. João e tem as faltas justificadas até dia 29, depois dessa data terá que regressar ao trabalho. Ainda não sei como vamos fazer, não faz sentido trocarmos, porque posso levar o vírus para casa.” De máscara e luvas, arrumou uma mala de roupa e saiu sem previsão de voltar. Estar longe das filhas é o que mais lhe custa. “É duro não conseguir explicar-lhes o que está a acontecer. A mais nova não tem noção das coisas e a mais velha diz que não gosta dos chineses e pergunta-me muitas vezes quando é que volto para casa.”

Fala-lhes duas vezes por dia para enganar as saudades e “ganhar forças para levar isto até ao fim”. Para o enfermeiro, o cenário só mudará quando o vírus desaparecer ou quando for obrigado a ficar de quarentena. “Se isso acontecer, vou tentar continuar aqui, longe delas. Sinceramente, não me imagino em casa fechado num quarto com as crianças a baterem à porta.

A comunicação com a família e os amigos faz-se agora por telefone ou através das redes sociais

Octavio Passos/Observador

“Não posso estar com a minha família e não posso ir à rua.  As saudades deitam-me abaixo”

O enfermeiro de Fafe juntou-se a dois colegas, que se encontravam na mesma situação, para procurar uma casa e encontrá-la foi talvez a tarefa mais fácil de todo o processo. “Tivemos sorte com o primeiro anúncio que vimos na internet. Inicialmente, arranjamos um quarto com três camas, mas alertámos o senhorio de que era arriscado ficarmos tão juntos. Ele providenciou rapidamente outra solução.”

A viver na zona da Batalha, no Porto, Michel não tem, para já, qualquer despesa. “A única coisa que o senhorio me pediu foi que mantivesse isto limpo. Preferi vir para uma casa do que para um hotel, onde não posso cozinhar”, conta, acrescentando que o único problema é mesmo não ter garagem. “Hoje partiram-me o vidro do carro, vou tentar falar com a Câmara do Porto e pedir para alugar um espaço num parque de estacionamento municipal que esteja encerrado, pode ser que consiga.”

Quando não está a trabalhar, o enfermeiro tenta “ao máximo” desligar-se da realidade. “Deixei de ver notícias, há muita desinformação, só sei os números através das redes sociais. Além de entrevistas e debates, tento ver algumas séries. Vou às compras e cozinho, mas fazer o jantar para uma pessoa não é a mesma coisa.” O tempo livre não é muito e a vontade de sorrir também não. “Não posso estar com a minha família e não posso ir à rua. As saudades deitam-me abaixo.”

Umas portas ao lado de sua casa vive Rui Silva, enfermeiro no serviço de ortopedia no Hospital de Santo António. Tal como o amigo, despediu-se esta semana da mulher, também ela enfermeira, e dos dois filhos menores que vivem em Matosinhos. “Os avós têm mais de 70 anos e não podem ficar com eles, levá-los para uma escola com os restantes filhos dos profissionais de saúde e de segurança estava fora de questão. Era metê-los na boca do lobo”, diz em entrevista ao Observador. Na opinião de Rui, a solução para as famílias em que pai e mãe são profissionais de saúde passa por “analisar caso a caso” e escolher para ir trabalhar “o mais experiente ou o que atue numa área mais abrangente”.

Foi no Hospital de Santo António que o primeiro caso da Covid-19 foi confirmado em Portugal e, a partir daí, tudo mudou. “Passei a desinfetar muito mais vezes as mãos e a usar máscara. Surgiu muita desconfiança no olhar das pessoas e uma necessidade de manter a distância”, conta o enfermeiro, que viu recentemente parte do seu serviço adaptado para doenças infeciosas. “Tive uma formação muito rápida, de uma hora, para também conseguir ajudar esses casos.”

O ambiente do hospital varia entre os dias mais calmos e outros mais agitados, mas a dúvida e a ansiedade persistem e permanecem. “No geral sinto que as pessoas estão a cumprir as normas, mas ainda têm muito receio. Nós, os profissionais de saúde, não temos medo por nós, mas por quem podemos infetar. Não podemos esquecer que o que fazemos hoje só reage daqui a 15 dias”, alerta o enfermeiro de 40 anos.

“Atendemos sobretudo idosos e qualquer um deles pode ser suspeito. Não estamos verdadeiramente preparados para isto, é uma lotaria, uma questão de sorte.”
Michel Alves, enfermeiro no Hospital de S. João

Além de trabalhar no Porto, Rui Silva integra também a equipa do Hospital da Trofa em Alfena, uma função que pode ter os dias contados. “Lá trabalho em consulta externa e a maioria das consultas já foram canceladas. Provavelmente no próximo mês já não contam comigo, até porque no Santo António terei um horário alargado para substituir alguns colegas que foram para isolamento social.”

A viver mais perto do local de trabalho, “pelo menos até ao fim de abril”, é a primeira vez que Rui sai de casa e por tempo indeterminado. “Sinto-me mal com tudo isto, equilibrar a família e o trabalho nunca foi tão difícil de gerir. Não gosto de estar sozinho, mas já me habituei.” As videochamadas com a família fazem-se pelo menos uma vez por dia e a tarefa de ir às compras para a casa mantém-se, mas agora os sacos ficam à porta. Os livros e os jogos no telemóvel aliviam o stress, mas não chegam para o ganhar algum otimismo. “Acredito que o caos ainda está para vir.”

“Não é fácil um médico ficar de quarentena. Sinto-me muito inútil”

Marina Costa tem 25 anos e é médica de medicina interna no Hospital de Braga. “Vivia com os meus pais, mas, quando uma colega foi diagnosticada com a Covid-19, toda a equipa foi para casa de quarentena. Para os proteger, decidi vir embora”, começa por explicar ao Observador. Dividida entre o internamento e a urgência, Marina sentia que trabalhar nos últimos dias “era mesmo um risco”. “Na urgência, estamos na linha da frente e no fim do turno, quando entrava no carro para ir para casa, só pensava em tomar um banho de desinfetante. Era uma sensação horrível.”

O novo coronavírus mudou a sua rotina laboral. “Reestruturamos as urgências, fizemos percursos diferentes, as pessoas com sintomas respiratórios são agora tratadas numa zona diferente, muita coisa mudou.” Tratar de doentes em época de uma pandemia parece ser ainda mais cansativo do que o habitual. “É esgotante estar o dia todo com o material de proteção, mas é um cansaço que só se sente quando chegamos a casa.”

Durante um fim de semana, ainda tentou o isolamento em casa com os pais. “Tentava isolar-me no quarto e na casa de banho. Os meus pais faziam questão de fazermos as refeições juntos, então comíamos na mesa da sala, um em cada ponta, para mantermos os dois metros de distância.” Encontrar outro teto era urgente e foi numa rede social que respondeu a um anúncio de um T2 disponível no centro de Braga. “Era uma casa que estava no Airbnb para alojamento local, mas os turistas cancelaram as estadias e os donos optaram por ceder a profissionais de saúde. Vivo aqui sozinha, para já não pago nada, mas quero contribuir.

Alguns profissionais estão a fazer turnos alargados para substituir colegas infetados ou em quarentena

ZSOLT SZIGETVARY/EPA

A quarentena termina a 27 de março e a sua vontade em regressar ao trabalho é notória. “Não é fácil para um médico ficar de quarentena. Sinto-me muito inútil, quero voltar ao hospital.” Sem sintomas e a ser vigiada pela Direção Geral de Saúde, Marina pondera continuar a viver sozinha quando voltar ao trabalho, por segurança e precaução. “Sinto que é uma questão de responsabilidade estar longe dos meus”.

Durante o isolamento, a jovem médica tem aproveitado para estudar sobre o vírus, não só para regressar ao trabalho com mais conhecimento, mas também para conseguir responder a todas as perguntas que os amigos e a família lhe fazem sobre sintomas. “Tenho lido alguns artigos científicos de médicos chineses que explicam como deram a volta para melhorar os números.”

Só consegue distanciar-se do que se passa quando lê um livro, vê uma série, faz exercício físico ou cozinha, sendo que a tarefa “mais terapêutica” é mesmo lavar a loiça. Para conseguir encher a despensa conta a ajuda dos pais e do namorado que lhe deixam os sacos das compras à porta de casa e caso não apanhe as notícias à hora certa, diz ter sempre um grupo de amigos no WhatsApp que fazem questão de a atualizar “permanentemente”. “A informação está em todo o lado.”

“Estava a ponderar ter filhos. É um projeto que fica suspenso”

Especialista em cuidados intensivos, Joana Abreu trabalha há três anos no Hospital de Viana do Castelo. Este domingo, muda-se de Braga para Viana, para casa de uma amiga médica. “Não quero correr o risco de contagiar o meu marido, os meus pais e os três avós que ainda tenho vivos. É uma opção preventiva”, conta.

O hospital onde trabalha não é de referência, mas na próxima semana vai começar a receber doentes internados com a Covid-19, “numa enfermaria que está já preparada”. Antes que isso acontecesse, Joana decidiu sair de casa. “Infelizmente tenho que ficar longe deles, que são o meu alicerce. Vou deixar de ter aquele abraço no fim do dia”, lamenta.

Nas últimas semanas foram muitas as estratégias adotadas pela administração do hospital que alteraram o seu dia a dia. “Deixámos de registar a nossa pontualidade com o dedo, passámos a usar máscara cirúrgica, proibiram-nos de levar refeições de casa em recipientes não reutilizáveis, nas urgências passámos a receber as refeições diretamente do bar e a copa passou a ter um limite máximo de funcionários”, explica, acrescentando que no chão também há marcas para garantir o distanciamento.

“Na urgência estamos na linha da frente e no fim do turno, quando entrava no carro para ir para casa, só pensava em tomar um banho de desinfetante. Era uma sensação horrível.”
Marina Costa, médica no Hospital de Braga

Habituada a fazer turnos de 12 e 24 horas, Joana Abreu sabe que com o pico do surto o período de descanso pode encurtar. “Estão a contratar médicos e enfermeiros para mais quatro meses, por isso calculo que a infeção dure até lá.” Nos corredores, a médica diz sentir “um carrossel de emoções”, tanto vê pessoas serenas como rostos em pânico. “A nossa equipa era animada e fazia da brincadeira um escape, mas isso desapareceu, agora há uma tensão generalizada.”

Joana faz 34 anos em maio e é hábito marcar férias nessa altura. “Há três semanas estava a pensar ir com o meu marido para a Tanzânia”, diz, garantindo que esse não foi o único plano que fica agora por concretizar. “Estava a ponderar ter filhos. É um projeto que fica suspenso.”

Porto com mais de 300 quartos disponíveis para profissionais de saúde

Esta sexta-feira, a Câmara Municipal do Porto anunciou que os números de quartos disponíveis para pessoal médico dos hospitais da cidade já ultrapassa os 300, sendo que a autarquia está a enviar, diariamente, a lista atualizada às administrações hospitalares e à Ordem dos Médicos.

A iniciativa partiu dos estabelecimentos hoteleiros e de proprietários de alojamento local, agora cabe a cada profissional de saúde que necessite de alojamento solicitar ao seu hospital o acesso à listagem para que possa contactar os estabelecimentos hoteleiros ou AL e aferir a existência de vaga. “Em apenas quatro dias, o número de quartos disponibilizados pelos empresários do setor do turismo subiu mais de uma centena de unidades”, afirma a câmara em comunicado.

Até ao dia 9 de abril, o Hotel Moov, em Matosinhos, vai disponibilizar dois pisos do edifício para médicos e enfermeiros, num total de 30 quartos gratuitos. Também na internet são já vários os grupos nas redes sociais e as plataformas onde é possível procurar ou ceder alojamento.

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