Em resposta direta à pergunta que vai em título: sabe-se já que não servirá para derrubar o Governo. Para isso, era preciso que a maioria dos deputados estivesse de acordo em votar a favor da censura e essa maioria contra o Governo não existe hoje na Assembleia da República. A maioria de esquerda que, desde dezembro de 2015, tem permitido a António Costa governar, assenta em quatro bancadas parlamentares que, juntas, têm 122 deputados (PS, PCP, BE e Verdes). À direita sentam-se 107, o que faz com que seja curto o desvio necessário para fazer cair este Governo: nove deputados (para 0s 116 da maioria absoluta). Mesmo sendo curto, parece ser facilmente alcançável. Sobretudo quando o primeiro teste à “geringonça” vem (na perspetiva de BE e PCP) da ponta de lá da direita.

O CDS sabia que dificilmente desencaminharia a esquerda que apoia o Governo socialista quando avançou com a moção de censura, mesmo que o seu conteúdo fosse relativo aos trágicos incêndios do último verão e do início do outono e às 109 mortes na sequência desses fogos — e acabou por confirmá-lo dias depois, com BE e PCP a fazerem declarações no sentido do chumbo da iniciativa democrata-cristã. Ao Observador, o líder parlamentar do CDS, Nuno Magalhães, garante, no entanto, que “esta não é uma moção calculista e de taticismo político. É um direito e um dever de dar voz institucional à indignação de um país que assiste atónito à falência do Estado”. À falta de capacidade para fazer cair o Governo, o CDS agarra-se ao marco político. “O Estado não foi capaz de salvar pessoas, bens, florestas, não foi capaz de salvar o essencial. Se esta não for uma razão para apresentar uma moção de censura, por que razão o faríamos?“.

Desde que a democracia é democracia, o Parlamento assistiu a 31 moções de censura ao Governo (a primeira em maio de 1979, do PCP ao Governo chefiado por Carlos Mota Pinto) e apenas uma cumpriu em pleno a sua função: deitar abaixo um Governo. Foi em 1987, na moção apresentada pelo PRD ao primeiro Governo liderado por Cavaco Silva. A antecipação de eleições, depois dessa censura, acabou na primeira maioria absoluta do então primeiro-ministro. Nos dez anos que se seguiram, mesmo perante a evidência de uma maioria, não deixaram de aparecer moções, mas a maior parte delas (20) apareceram depois disso — Passos e Sócrates foram os mais censurados, seis moções cada — e a diversidade de razões para estas moções tem sido imensa. Exemplos: o apoio do Governo de Durão Barroso à guerra do Iraque (PS, PCP, BE e Verdes, em 2003); “travar a política de exploração e empobrecimento, construir uma política patriótica e de esquerda” (PCP, em 2012); por o Governo de José Sócrates não ter referendado o Tratado Europeu (Bloco, em 2008); à “desorientação política do primeiro-ministro” António Guterres (a única do PSD, em setembro de 2000).

Esta moção concreta do CDS, motivada “pelas falhas do Governo nos incêndios trágicos de 2017”, foi já aproveitada pelo Presidente da República, na declaração ao país de há uma semana. Para Marcelo Rebelo de Sousa também não haveria grandes dúvidas sobre a existência de um contexto para a queda do Governo. Ainda assim, o Chefe de Estado disse ver na moção uma oportunidade para que a “Assembleia soberanamente clarifique se quer ou não manter em funções este Governo, condição essencial para, em caso de resposta negativa, se evitar um equívoco, e de resposta positiva, reforçar o mandato para as reformas inadiáveis”. Para o Presidente, o “equívoco” seria a solidez do suporte do PCP ao Governo, algo que os comunistas já trataram de afirmar com a ambiguidade que os caracteriza (ver último ponto).

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Sabendo à partida que a censura teria perna curta, Marcelo Rebelo de Sousa definiu logo ali o quadro da etapa seguinte: o Governo fica sem qualquer desculpa para não avançar com as “reformas inadiáveis”, concretamente em matéria de florestas e prevenção de incêndios. Até agora, ninguém podia garanti-lo. Afinal, ainda em julho, logo depois do fogo de Pedrógão Grande, a Assembleia da República fez audições em tempo-recorde, para fazer avançar uma reforma que estava há meses à espera de uma resposta parlamentar. No final, foi um dos parceiros do Governo que fez cair uma das peças centrais. Ao lado do PSD e do CDS, o PCP chumbou o banco de terras, onde ficariam as terras identificadas como não tendo dono no novo registo cadastral, e isto mesmo depois de o Governo ter feito uma alteração de última hora para tentar ir ao encontro das preocupações comunistas.

Reforma florestal. PCP chumba banco de terras, mas Governo vai insistir

No Governo, a análise política ao impacto desta censura, é (sem surpresa) desdramatizada. Numa entrevista conjunta à Antena1 e ao Jornal de Negócios, o ministro da Solidariedade e da Segurança Social reconheceu o “direito democrático e parlamentar” do CDS de apresentar uma moção, mas quando questionado sobre se a confiança do Governo sairá reforçada, Vieira da Silva disse: “Não creio que vá produzir mudanças muito significativas, também não digo que [pelo chumbo da moção] o Governo sairá reforçado”.

Certo é que esta terça-feira, a partir das 15 horas, António Costa enfrentará a primeira moção de censura desde que é primeiro-ministro. Serão mais de três horas de debate, com meia dúzia de intervenientes do lado do CDS, o partido proponente. E muitos dos argumentos e contra-argumentos já estão estudados nas várias frentes.

O ataque do CDS

A questão política propriamente dita, sobre o timing da moção de censura: a esquerda não tem poupado o CDS às críticas de “aproveitamento político” de uma tragédia, a mais forte das quais veio da líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, que classificou a moção “apresentada no primeiro dia de luto” de “truque grotesco”, durante o último debate quinzenal. “Quem critica o CDS por usar um truque político com o fundamento que reforça o Governo está a cair num erro em que o CDS nunca pensou“, responde Nuno Magalhães que garante ainda que a moção nasceu de uma “atitude espontânea” do partido e visa “dar voz à indignação das pessoas. Uma moção também serve para isto. Afinal, entre todas as que foram apresentadas até hoje e por todos os partidos, só uma foi aprovada”, argumenta.

O facto de a ministra da Administração Interna se ter demitido entretanto tira peso a esta iniciativa? “Não, reforça”, diz o líder parlamentar para logo depois elencar os recuos do primeiro-ministro nos últimos dias: “Demitiu a ministra da Administração Interna, pediu desculpa, reforçou meios operacionais, apresentou propostas que chumbou, como a alteração ao contrato do SIRESP, já aprovou indemnizações por mecanismos extrajudiciais. O que mudou para tomar estas medidas em oito dias quando não tomou em quatro meses?“. O CDS vai cobrar cada um destas medidas que, diz, poderiam ter surgido logo após a primeira tragédia, em Pedrógão Grande. “Foi preciso uma nova tragédia”, lamenta o deputado centrista que também diz ter sido precisa a declaração ao país do Presidente da República para o Governo avançar.

A líder do partido Assunção Cristas já tinha dito no último debate quinzenal que “falhou a competência e a descoordenação de quem foi nomeado pelo Governo”, apontando ao Executivo “desleixo” e “incompetência”, com críticas também à gestão política da situação, nomeadamente às declarações polémicas da ex-ministra da Administração Interna, do seu secretário de Estado e também do próprio primeiro-ministro na noite de domingo, dia 15 de outubro, e madrugada do dia seguinte: “O que disseram aos portugueses foi: salve-se quem puder”. Palavras, expressões e acusações que terão novamente palco no debate desta terça-feira.

Relatório. Todas as falhas que contribuíram para a morte de 64 pessoas

O CDS está também preparado para rebater a justificação da esquerda para uma época de fogos devastadora este ano. O argumento do Governo (e não só) tem sido o fenómeno das alterações climáticas e a condições meteorológicas particularmente propícias para o aparecimento de fogos durante o último verão e também no início do outono. O CDS recusa que a explicação fique por aí e vai trazer para o debate as conclusões do relatório da comissão técnica independente sobre Pedrógão Grande que apontou falhas ao nível operacional. “A partir do momento em que foi comunicado o alerta de incêndio, não houve a perceção da gravidade potencial do fogo, não se mobilizaram totalmente os meios que estavam disponíveis e os fenómenos meteorológicos extremos acabaram por conduzir o fogo, até às 03h00 do dia 18 de junho, a uma situação perfeitamente incontrolável”, concluíram os especialistas.

Além disso, Nuno Magalhães ainda antecipa uma argumentação mais política, como a que tem preparada para o Bloco de Esquerda, por exemplo, caso partido se escude também nas condições meteorológicas — como já aconteceu: “Em 2013 houve incêndios onde morreram bombeiros e o deputado do Bloco Pedro Soares disse que o Governo de então não se podia esconder das questões de meteorologia”. “A incompetência do Governo não pode encontrar justificação na meteorologia”, dizia o deputado do BE nessa altura perante o Executivo PSD/CDS, acrescentando que “competente a um Estado competente colocar um dispositivo no terreno que permita contrariar os efeitos, tanto ao nível do ataque direto como da prevenção”. Agora o Bloco de Esquerda apoia o Governo socialista e o CDS vai preparado para atirar a todas as frentes da “geringonça”.

A defesa do Governo

O ataque é a melhor defesa e António Costa já testou, no último debate quinzenal, um ataque à direita, em forma de desafio, que deverá repetir no debate da moção de censura: está ou não disponível para apoiar as medidas que forem necessárias (e algumas já avançadas no Conselho de Ministros extraordinário de sábado)? A seu favor, o primeiro-ministro tem o pedido do Presidente da República no sentido da necessidade de uma “convergência alargada” sobre a floresta em Portugal. E o desafio não servirá apenas para atirar à direita, António Costa também deve fazer a mesma pergunta aos parceiros do Governo no Parlamento.

O que aconteceu não é normal e é inaceitável. Não nos podemos conformar, mas convém não confundir o realismo com a aceitação da realidade”, disse o primeiro-ministro no quinzenal para desafiar também o CDS para a necessidade de concretizar em medidas, e “tirar do papel as recomendações e conclusões” da comissão independente. “Espero que os que concordaram com a comissão também estejam de acordo em pôr em prática” as suas conclusões, desafiou muito claramente na semana passada. O relatório da Comissão Técnica Independente será, aliás, aliado na defesa do Governo das acusações que venham da direita, concretamente do PSD, já que foram os sociais-democratas que defenderam a existência desta comissão para apurar o que se passou em Pedrógão.

Costa sobre incêndios: “Admito ter errado pela forma como exprimi as minhas emoções”

Mais, António Costa tem, para levar a este debate, as medidas tomadas entretanto no Conselho de Ministro extraordinário, muitas delas constavam precisamente nas recomendações dos técnicos independentes. À noite, depois da longa reunião do Governo no sábado, o primeiro-ministro avisou que “o tempo das instituições não é o tempo de cada um de nós. A um Governo compete saber ponderar as conclusões e recomendações de técnicos e da Assembleia da República para poder decidir. Respeitámos esse tempo e agimos”, disse para justificar que as medidas só surgissem agora.

E no que à ação diz respeito, o primeiro-ministro levará ainda uma garantia para a esquerda, que já questionou o Governo sobre a capacidade financeira para dar respostas às necessidades que decorreram dos trágicos fogos, tendo em conta os compromissos europeus. “Pode haver muitos problemas, mas não é por falta de dinheiro que não vamos tomar medidas”. Costa diz que espera cumprir a “trajetória de redução do défice, sem sacrificar aquilo que não pode ser sacrificado”, mas o que tiver de ser feito “será feito”, garantiu. No Conselho Europeu do final da semana passada, António Costa soube da intenção da Comissão Europeia de não contar para o défice as despesas dos incêndios. O comissário europeu dos Assuntos Económicos, Pierre Moscovici, defendeu mesmo “uma abordagem inteligente e humana e relação à despesa pública, que seja assumida pelas autoridades portuguesas, para enfrentar os incêndios”.

Não faltará também um ataque político de peso — se não de António Costa tão diretamente, pelo menos da bancada do PS — à responsabilidade do Governo anterior na organização da floresta, por exemplo. E neste ponto concreto acertando diretamente na líder do CDS Assunção Cristas, já que quando esteve no Governo chegou a acumular (numa primeira fase) as pastas da Agricultura, Ambiente, Ordenamento do Território. O próprio António Costa já o tinha feito durante o verão, depois de Pedrógão Grande, quando desafiava a direita para participar no debate sobre as alterações que viessem a ser necessárias: “Quero saber se aquela senhora que foi quatro anos ministra da Agricultura e nada fez pela floresta e que hoje todos os dias fala, vai estar presente ou não vai estar presente. Quero saber se o anterior primeiro-ministro, que todos os dias critica os bombeiros, vai, alguma vez, fazer alguma coisa pela floresta, porque nada fez durante os quatro anos em que foi primeiro-ministro. A referência, na altura, até indignou o PSD.

O contra-ataque da esquerda

Ao lado do Governo estarão os parceiros parlamentares, pelo menos no que ao ataque a Assunção Cristas diz respeito. Na semana assada, Catarina Martins chamou-lhe a “ministra dos eucaliptos”, acusando a líder do CDS de ter sido “responsável pela liberalização total da expansão do eucalipto. Nuno Magalhães chama-lhes “desculpas de mau pagador” ao mesmo tempo que atira a ironia, em declarações ao Observador: “Afinal em vez de termos um pinhal de Leiria temos um eucaliptal de Leiria”. E remata com um convite à esquerda: “Todos temos de assumir responsabilidades, não arranjem desculpas para não aprovarem a moção de censura”.

Assunção Cristas foi “responsável pela liberalização total da expansão do eucalipto”?

O chumbo da esquerda está garantido. O PCP anunciou-o logo quando o texto foi apresentado: “Naturalmente, o PCP não pode ter outro voto que não seja o voto contra“, disse João Oliveira. “Tornou-se claro que esta moção de censura não tem rigorosamente nada que ver com a resolução dos problemas da floresta. Não resulta desta moção outra coisa que não seja aproveitar uma tragédia com a dimensão que teve a tragédia dos incêndios florestais deste ano para retirar dividendos da parte do CDS”, disse o líder parlamentar comunista marcando aquela que vai ser a crítica-maior feita ao CDS nesta terça-feira. E tanto no sentido de voto como na crítica ao CDS, o mesmo virá da bancada do Bloco de Esquerda e dos deputados dos Verdes.

Mas se os dois parceiros do PS têm críticas ao lado de lá do hemiciclo, também não ilibam totalmente o PS nesta matéria, sobretudo quando atiram aos governos anteriores que nada fizeram pelas políticas florestais. E essa culpabilização mais generalizada não faltará também neste debate. Além disso, nos últimos dias, o lado comunista da “geringonça” deixou claro que deste travão a uma moção e censura ao Governo não ser pode ler um reforço do mesmo: “O chumbo de uma moção de censura não reforça o Governo. O chumbo de uma moção de censura diminui quem apresenta uma moção de censura procurando aproveitar uma tragédia para efeitos partidários”. Ou seja, na ótica comunista, ninguém ganha. Só perde o CDS.

Para Marcelo, moção de censura acaba com o “equívoco” do apoio do PCP