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Passos tentou coligação com Seguro antes de Portas reverter a demissão irrevogável. Líder do PS "infelizmente" não aceitou

O Observador faz a pré-publicação do livro "Diplomacia em Tempo de Troika", um livro do embaixador Luís Almeida Sampaio. Passos Coelho faz revelações sobre a crise do irrevogável no prefácio da obra.

É mais um capítulo da história recente sobre os tempos em que troika esteve em Portugal, escrita por quem a viveu. Pedro Passos Coelho revelou que tentou obter um acordo de Bloco Central com o então líder do PS, António José Seguro, durante a “crise do irrevogável” e ainda antes de chegar a acordo com Paulo Portas para a continuidade do Governo de coligação PSD/CDS. No livro Diplomacia em Tempo de Troika, de Luís Almeida Sampaio — do qual o Observador aqui pré-publica uma parte — o antigo primeiro-ministro conta a sua versão da maior crise do governo de direita no prefácio da obra.

O então líder do PSD tinha uma viagem marcada para Berlim e decidiu ir na mesma, para mostrar pelo menos a solidez da sua liderança — já que a do Governo estava em causa depois de Paulo Portas, líder do CDS e parceiro de coligação, ter anunciado que pedia a demissão e que essa era “irrevogável”. Já na capital alemã, Passos Coelho “ainda não tinha obtido uma garantia de que o segundo partido da coligação se manteria no governo, apesar da intenção firme” de Paulo Portas de “vir a abandonar o Governo”.

O antigo primeiro-ministro conta que “naquela manhã não sabia sequer se teria ou não Governo no dia seguinte.” Passos Coelho acreditava que só o PSD “poderia chefiar o governo do país naquele quadro parlamentar” e  que a outra alternativa, “a realização de eleições, naquele contexto significaria pelo menos ter de pedir um novo resgate!” — Passos escreve assim mesmo, com ponto de exclamação, a hipótese de um novo resgate.

O antigo líder do PSD ficou então com a “noção muito clara do que estava em jogo” e procurou que o PS “pudesse apoiar no Parlamento os esforços do governo para que este pudesse fechar o programa de ajustamento”. Para isso, Passos Coelho pediu ajuda ao então presidente da comissão, Durão Barroso, e ao líder dos socialistas no Parlamento Europeu, Martin Schulz para convencerem Seguro a aceitar um acordo com o seu Governo.

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O antigo primeiro-ministro escreve agora no prefácio que ainda tentaria tudo o que estivesse ao seu alcance para salvar a coligação, mas sabia que havia probabilidades de não ser  “bem-sucedido”. Por isso, revela agora Passos, “era muito importante que o maior partido da oposição, mesmo que não quisesse assumir um ónus de coligação governativa com o PSD nas circunstâncias do programa de ajustamento, pudesse dar o apoio parlamentar necessário à conclusão do programa.”

Ou seja: Passos Coelho nem sequer excluía que Seguro aceitasse integrar um Governo de salvação nacional, mas, não sendo possível, propunha um acordo parlamentar PSD-PS, deixando o CDS de fora. E propôs esta solução ainda antes de se sentar à mesa com Paulo Portas, na negociação que havia de tornar o líder do CDS vice-primeiro-ministro.

E o que dava em troca o PSD? Eleições antecipadas assim que acabasse o programa da troika. Passos Coelho fez saber a António José Seguro que promoveria esse novo escrutínio um ano depois: “Do meu lado, estava disponível para assumir o compromisso de, logo a seguir ao fecho do programa, dali a um ano, apresentar a minha demissão e abrir o caminho à realização de eleições legislativas antecipadas.”

Passos Coelho diz que “infelizmente” a reposta de Seguro “não demorou muito”. O “infelizmente” de Passos pressupõe que, naquele momento preferia essa solução a ter de se sentar novamente com Paulo Portas (mesmo que já tivesse dado a garantia de que faria tudo para salvar a coligação). A reposta, transmitida através de Barroso e Schulz, quase a papel químico foi que “António José Seguro considerava que era já demasiado tarde para gestos de apoio ao Governo e entendia que o país precisava de eleições, não dali a um ano, mas naquele mesmo momento.”

Esta decisão de Seguro, conta agora Passos, fez com que saísse de Berlim “ainda mais decidido nesse dia a fazer tudo para que a coligação sobrevivesse ao episódio que tinha dado origem à crise.” Passos, no prefácio, do livro chama a estes contactos para um acordo com o PS “diligências berlinenses, feitas à margem da reunião do Conselho informal”.

Depois de ter ido à Festa do Pontal, num regresso a um evento interno do PSD, Passos Coelho começa agora a reescrever a história da sua governação e a ajustar contas com protagonistas que o deixaram ficar mal em alguns momentos (como é o caso de Paulo Portas, na crise do irrevogável). No PSD, há quem veja neste reaparecimento de Passos Coelho, como um possível início de um caminho para Belém.

Vamos então à pré-publicação do livro de Luís Almeida Sampaio, que inclui o prefácio de Pedro Passos Coelho e que conta a história anterior na primeira pessoa:

Pré-publicação. A crise do irrevogável contada por Passos Coelho e a diplomacia em tempos de troika

O livro Diplomacia em Tempo de Troika, de Luís Almeida Sampaio, que foi embaixador em Berlim entre 2012 e 2015, retrata as duras negociações no plano diplomático entre o Governo português de Pedro Passos Coelho e o governo alemão de Angela Merkel. O diplomata conta como foi viver a crise do irrevogável a partir de Berlim e como convenceu Pedro Passos Coelho a não desistir da visita que tinha à Alemanha no meio da crise na coligação PSD/CDS.

A obra conta com um prefácio de Pedro Passos Coelho onde o próprio conta, na primeira pessoa, conversas que teve com Angela Merkel, mas também como lidou com a crise do “irrevogável”, revelando que preferiu, num primeiro momento, ter um acordo com o PS (de incidência parlamentar) do que voltar a sentar-se com Paulo Portas na mesa do Conselho de Ministros. A história acabou por ditar outra coisa. O Observador pré-publica a parte do prefácio que conta, da perspetiva de Passos Coelho, a crise dentro da coligação governamental.

O livro é publicado em Portugal a 27 de setembro, pela Dom Quixote

Prefácio de Passos Coelho. Da crise da demissão de Paulo Portas à nega de Seguro

Para terminar este texto, que já vai bastante mais longo do que tinha planeado, gostaria de deixar uma nota sobre um episódio que se passou comigo na Alemanha uns meses mais tarde, quando participava numa reunião informal do Conselho Europeu dedicada às questões do desemprego jovem. Essa minha deslocação é relatada pelo nosso embaixador Luís Almeida Sampaio neste livro. A viagem decorre num ambiente de algum dramatismo político associado ao episódio que envolveu a substituição do ministro de Estado e das Finanças e o pedido de demissão do ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros.

Não desejo aqui debruçar-me sobre esse episódio propriamente dito. Isso necessitaria de outro espaço com outro fôlego que aqui não cabem. Mas há um desenvolvimento que vem associado a esse episódio maior que não é indiferente para a história do que aconteceu no País e que merece ser relatado.

A minha presença naquela reunião do Conselho em Berlim era muito importante para poder transmitir, tanto quanto isso era possível, a minha convicção em como o problema e a crise institucional que se tinha aberto no dia anterior seriam ultrapassados e que o País não iria descarrilar e jogar fora tudo o que tinha custado tanto a alcançar. Aos olhos dos nossos parceiros e da comunicação social internacional, a minha ausência seria vista como o sinal de que o governo ficara mergulhado numa crise profunda da qual poderia não sobreviver.

Ora, Portugal tinha, ainda havia pouco tempo, realizado uma emissão de obrigações a dez anos, que era indispensável para reconstruir a curva de rendimentos e poder assegurar a saída do programa sem necessitar de negociar um outro. E tínhamos beneficiado da solidariedade dos nossos parceiros, que tinham poucos dias antes aprovado a extensão das maturidades. Era por isso fundamental manter a máxima racionalidade e enfrentar calmamente a situação. Explicar aos nossos parceiros e aos mercados que saberíamos vencer aquelas adversidades, que de resto só dependiam de nós, era crucial para poder levar a água ao moinho.

"O que sabia era que mais nenhum partido poderia chefiar o governo do país naquele quadro parlamentar, e a realização de eleições naquele contexto significaria pelo menos ter de pedir um novo resgate! (...) Infelizmente, a resposta não demorou muito e foi muito semelhante nos termos em que foi transmitida por cada um dos meus interlocutores: António José Seguro considerava que era já demasiado tarde para gestos de apoio ao governo e entendia que o país precisava de eleições, não dali a um ano, mas naquele mesmo momento"
Pedro Passos Coelho, no prefácio do livro Diplomacia em Tempo de Troika

Senti as preocupações que todos mostraram em Berlim, e todos queriam saber como se resolveria o problema. Ora, eu ainda não tinha a solução para a crise, mas sentia que estaria em condições de a resolver. No entanto, o que estava em jogo era suficientemente relevante para que tivesse de explorar todas as possibilidades. Naquele dia em Berlim ainda não tinha obtido uma garantia de que o segundo partido da coligação se manteria no governo, apesar da intenção firme divulgada pelo seu presidente de vir a abandonar o governo. Em bom rigor, naquela manhã eu não sabia sequer se teria ou não governo no dia seguinte. O que sabia era que mais nenhum partido poderia chefiar o governo do país naquele quadro parlamentar, e a realização de eleições naquele contexto significaria pelo menos ter de pedir um novo resgate!

Foi com esta noção muito clara do que estava em jogo que entendi que deveria procurar, em última instância, que o Partido Socialista pudesse apoiar no Parlamento os esforços do governo para que este pudesse fechar o programa de ajustamento. Procurei, com esse fito, conversar com o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, e com o líder dos socialistas no Parlamento Europeu, e presidente desse parlamento, Martin Schulz. A ambos coloquei a questão da mesma maneira e solicitei o mesmo apoio para uma diligência que me parecia inadiável.

"O que sabia era que mais nenhum partido poderia chefiar o governo do país naquele quadro parlamentar, e a realização de eleições naquele contexto significaria pelo menos ter de pedir um novo resgate! (...) Infelizmente, a resposta não demorou muito e foi muito semelhante nos termos em que foi transmitida por cada um dos meus interlocutores: António José Seguro considerava que era já demasiado tarde para gestos de apoio ao governo e entendia que o país precisava de eleições, não dali a um ano, mas naquele mesmo momento"
Pedro Passos Coelho, no prefácio do livro Diplomacia em Tempo de Troika

A questão era simples. Para Portugal e para a União Europeia, era fundamental que o nosso país pudesse concluir com êxito o programa de ajustamento. No quadro parlamentar existente, apenas o PSD poderia assegurar um governo que cumprisse esse desígnio. Não sabia ainda se a coligação sobreviveria à crise que se tinha espoletado na véspera. Faria tudo ao meu alcance para que sobrevivesse. Mas se não fosse bem-sucedido, era muito importante que o maior partido da oposição, mesmo que não quisesse assumir um ónus de coligação governativa com o PSD nas circunstâncias do programa de ajustamento, pudesse dar o apoio parlamentar necessário à conclusão do programa. Do meu lado, estava disponível para assumir o compromisso de, logo a seguir ao fecho do programa, dali a um ano, apresentar a minha demissão e abrir o caminho à realização de eleições legislativas antecipadas.

Ambos os interlocutores pareceram compreender a gravidade da situação e disponibilizaram-se para contactar o líder do PS e exporem-lhe esta minha proposta. Pareceu-me que os dois canais que tinha procurado eram os mais eficazes para ter a certeza de que nenhum ruído político doméstico se intrometeria no julgamento da questão por parte do líder do PS e de que o interesse europeu, veiculado por um antigo primeiro-ministro e por um dirigente socialista insuspeito de deter qualquer interesse pessoal nesta situação, seria o que melhor probabilidade de sucesso poderia apresentar.

Infelizmente, a resposta não demorou muito e foi muito semelhante nos termos em que foi transmitida por cada um dos meus interlocutores: António José Seguro considerava que era já demasiado tarde para gestos de apoio ao governo e entendia que o país precisava de eleições, não dali a um ano, mas naquele mesmo momento. Saí, assim, de Berlim ainda mais decidido nesse dia a fazer tudo para que a coligação sobrevivesse ao episódio que tinha dado origem à crise. Estas diligências berlinenses, feitas à margem da reunião do Conselho informal, escaparam ao nosso embaixador na Alemanha, e por isso não poderiam estar aqui narradas por ele. Fica o registo histórico do que se passou para completar a história deste livro.

Pedro Passos Coelho, junho de 2022

Além do prefácio de Pedro Passos Coelho, o Observador pré-publica ainda um capítulo do livro, o sétimo, sobre a mesma altura, na perspetiva do autor, Luís de Almeida Sampaio.

«VOCÊS PERDERAM A CABEÇA?» 

Pouco mais de um mês depois Gaspar demitia-se, alegando não ter condições para continuar e falando abertamente de desinteligências no seio do governo. O ministro tinha percebido que ao mudar a maré, ao entrarmos na fase do investimento – como Portas e Pires de Lima a designariam –, não devia ser ele o rosto mais visível. No entanto, Passos Coelho, não aceitou à frente do Ministério das Finanças nenhum dos nomes sugeridos por Portas e escolheu Maria Luís Albuquerque para suceder a Gaspar. E Portas bateu com a porta.

Nesse preciso dia, 2 de Julho, eu estava em Berlim a acompanhar Álvaro Santos Pereira que, na sua pele de ministro do Emprego, preparava com a sua homóloga alemã, Ursula von der Leyen, a cimeira devotada ao combate ao desemprego jovem promovida por Merkel, e que decorreria no dia seguinte na Chancelaria federal. Em plena sessão, no gabinete da ministra alemã, sinto o meu telemóvel a vibrar e abro a mensagem que dava a notícia da demissão de Portas. Escolhi deixar acabar a reunião e à saída, prevendo a presença de jornalistas que não deixariam de levantar questões a Santos Pereira, puxei-o para o lado e mostrei-lhe a mensagem. Explodiu!

Foram uma tarde e um serão penosos, essencialmente ao telefone com Lisboa ambos a tentar convencer Passos Coelho a não cancelar a participação na cimeira do emprego do dia seguinte. Seria uma oportunidade única para explicar em primeira mão aos seus pares o que estava a acontecer em Portugal. Não comparecer daria azo a todas as más interpretações quer em Portugal quer na Europa, designadamente na Alemanha. Nessa noite já muito tarde, em casa, depois de ter deixado Álvaro Santos Pereira no hotel, recebi um telefonema da Chancelaria federal sobre as demissões em Portugal. Só uma pergunta: «Vocês perderam a cabeça?»

No dia seguinte de manhã cedo fui esperar o primeiro-ministro ao aeroporto. Excepcionalmente, tinha feito a viagem num dos Falcon da Força Aérea Portuguesa que, para dar exemplo de contenção, só utilizava quando não era possível usar um avião comercial. Era o caso, tinha de regressar a Lisboa nessa tarde, sem poder arriscar qualquer atraso, logo que terminasse a cimeira. Assim que entrámos no automóvel, ainda na pista do aeroporto, disse-me que ia telefonar a Portas com quem ainda não tinha falado desde o anúncio público que este fizera da sua intenção de abandonar o governo. Perguntei-lhe se queria que saísse do carro que ainda não começara a marcha em direcção à Chancelaria federal. Pediu-me que ficasse e que ouvisse.

Conversas destas não se revelam a não ser daqui a muitos anos mas se esta em especial tivesse sido escutada pelos portugueses sei que teriam ficado impressionados com a elevação, patriotismo e sentido de serviço que eu testemunhei no que Passos disse e no que pude adivinhar do que Portas lhe respondeu. Quando ouvi o que foi dito percebi que o «irrevogável» do comunicado da véspera não seria. Não poderia ser de outro modo. E ainda bem para a estabilidade do governo, para a prossecução dos objectivos de cumprimento do programa, para a superação da crise financeira e para a imagem internacional de Portugal. Além desta histórica conversa telefónica com Portas, a forma como Passos Coelho geriu a sua participação na reunião nesse dia difícil, como descreveu aos seus pares nos contactos bilaterais em que se multiplicou, com perfeita calma, com grande clareza, a situação política em Portugal, transformaram definitivamente a grande consideração que já tinha por ele em genuína admiração pessoal.

Sem se alterar nunca, nem nunca criticar ninguém, aproveitou ali, com grande oportunidade, naquele crucial palco internacional, na extremamente delicada circunstância política que o nosso país atravessava, para expor como via a situação em Portugal e, sobretudo, como via a superação da crise governativa que tinha de gerir.

Sou também a única testemunha, porque Álvaro Santos Pereira tinha de atender aos seus homólogos titulares das pastas do Emprego nos seus respectivos países, de como Pedro Passos Coelho, com Merkel, com Hollande, com Durão Barroso e tantos outros, demonstrou inabalável determinação em tudo fazer para encontrar, tão rapidamente quanto pudesse, a solução política possível. Como teria sido fácil desistir. Como tantos teriam percebido se desistisse.

Fui nesse dia igualmente testemunha de como, em todas as conversas bilaterais que manteve, o primeiro-ministro de Portugal ouviu palavras de admiração, solidariedade e encorajamento, sobretudo na perspectiva de como era essencial para a União Europeia no seu conjunto o sucesso do programa de ajustamento português e o regresso do país, nas melhores condições possíveis e dentro dos prazos esperados, aos mercados.

Nos dias imediatamente seguintes fui naturalmente abordado pelos meus habituais interlocutores na Chancelaria federal, no governo alemão e no Bundestag mas também por empresários e representantes de associações empresariais, dirigentes de partidos políticos e responsáveis por think-tanks alemães, sobre a crise em Portugal. Sempre ouvi idênticas manifestações de encorajamento para com Portugal e o seu governo, mas também recebi inequívocos sinais de preocupação e ansiedade não só com a nossa situação concreta, política, económica e social, mas também com as repercussões que a crise política portuguesa já tinha causado internacionalmente do ponto de vista financeiro e o sentimento de que urgia ultrapassá-la também em nome da estabilidade financeira, não só dos países do Sul da Europa ainda sob assistência, mas da zona euro no seu conjunto.

*

No mesmo dia em que Passos Coelho estivera em Berlim, e depois de dele me ter despedido no aeroporto, jantei com Lula da Silva, que estava na capital alemã a convite da Fundação Bertelsmann e do Banco Santander.

Nesse jantar, pensado para que Lula desse o seu contributo para a história do salto económico que o Brasil dera durante os seus mandatos – estávamos ainda relativamente longe da convulsão política, económica e social que depois engoliria o Brasil – a grande maioria dos convivas, quase todos com posições políticas, económicas, financeiras e académicas relevantes na Alemanha, fez questão de me falar da importância de Portugal vencer a crise. Nunca me tinha apercebido antes dessa noite de como tudo o que dizia respeito a Portugal era acompanhado com a maior atenção, interesse e preocupação em toda a Berlim e não apenas nos meus círculos profissionais mais quotidianos.

No dia seguinte era o 4 de Julho, Independence Day nos EUA, e na mesma, na recepção oferecida pelo meu colega americano, ouvi reflectir sentimentos equivalentes. A todos transmiti mensagens tranquilizadoras e de confiança nos responsáveis políticos portugueses, e de optimismo quanto ao futuro de Portugal. O exemplo de Passos Coelho e Paulo Portas fazia-me acreditar no que dizia.

*

Uns dias depois, após ter ido a Munique vencer o desafio de Hans-Werner Sinn que já descrevi, fui ver Meyer-Landrut. Queria falar sobre tudo o que acontecera com um pouco mais de calma. E transmitir à chanceler que não, que não tínhamos perdido a cabeça. O mais importante para a Chancelaria federal era a determinação de Passos Coelho em cumprir, no quadro do prazo estabelecido, o programa de ajustamento.

A Alemanha ia entrar em campanha eleitoral. Não haveria qual- quer possibilidade de renegociação do nosso programa e o mesmo em relação a qualquer alívio da dívida. Uma coisa ou outra «estão excluídas», disse. Retorqui que não lhe tinha vindo pedir nada, queria apenas perceber bem como a chanceler avaliava o que tinha acontecido em Portugal. Moderou o tom de imediato. O que não quereria dizer, prosseguiu, que não houvesse margem de manobra para «adaptações», designadamente na perspectiva do período imediatamente pós-Troika. Senti que estava convencido de que com esta crise política iríamos precisar de um programa cautelar depois de ela terminar e o programa formal acabasse. Mas deixei-o continuar.

Sabia que tínhamos interlocução «ao mais alto nível» com a Comissão Europeia – com Durão Barroso, obviamente, que Meyer- -Landrut sabia que nunca, mas nunca, deixava de vestir a camisola de Portugal – mas, sem querer «diminuir a importância da Comissão Europeia», haveria a sensação na Chancelaria de que não falávamos com a indispensável frequência e profundidade nem com o FMI, nem com o BCE. Como que a convidar-me a passar a mensagem a Lisboa, referiu especificamente os nomes de Poul Mathias Thomsen (também responsável pela supervisão do pro- grama grego) e de Jörg Asmussen (membro do conselho executivo do BCE). Fez questão de dizer que não estava a sugerir que falás- semos com o Fundo Monetário Internacional e com o Banco Central Europeu sobre a nossa situação política interna, mas apenas sobre as próximas etapas do nosso programa e, sobretudo, sobre «o período após». Insistiu.

Depois quis saber mais sobre a liderança actual e as lideranças possíveis do principal partido da oposição em Portugal. Ou seja, já estava a fazer contas de cabeça e, no íntimo, a admitir que a coligação PSD/CDS acabasse por estoirar. Não o podia censurar, era o que tinha estado perto de acontecer. Dissertou sobre as dificuldades de António José Seguro vencer a concorrência interna de «pesos pesados» como Costa ou Vitorino. Meyer-Landrut não conhecia bem Costa – de quem eu lhe disse pensar que seria o futuro do PS – mas nutria respeito e admiração por Vitorino com quem amiúde contactara nos tempos da Comissão Europeia. Disse-me que tinha tomado o pequeno-almoço com ele muito recentemente e mais uma vez ficara muito bem impressionado. António Vitorino ter-lhe-á então dito que o campo dos que se opunham frontalmente ao programa de ajustamento, «incluindo nele apenas o PCP e o Bloco de Esquerda», não teria crescido nas sondagens, o que representaria a melhor prova de como a base política e social de apoio ao programa de consolidação permanecia, no essencial, muito ampla. Vitorino teria acrescentado que seria um erro grave renegociar o programa ou pretender qualquer perdão da dívida. Isso, teria dito, seria dar o sinal errado. E que o domínio mais difí- cil de conciliação entre a então maioria e o PS seria a reforma do Estado, em relação à qual teria, no entanto, comentado: «mas toda a gente sabe que é indispensável.»

Porque me falava de dirigentes socialistas, aproveitou para me perguntar por José Sócrates. Disse-lhe o que toda a gente sabia. Estávamos ainda muito longe do drama de Novembro do ano seguinte.

Meyer-Landrut recordou as etapas finais do governo que José Sócrates liderou e disse-me que naquele período Portugal tinha perdido seis meses e as medidas que tinham finalmente sido acordadas na Primavera de 2011 o deveriam ter sido, «como os alemães terão recomendado», no Outono de 2010. Esses seis meses teriam «matado» o governo de Sócrates. Apesar disso, comentou curiosamente que nunca como nessa altura tinha havido tanta intensidade nas relações entre Berlim e Lisboa.

*

Entretanto Paulo Portas ascendera a vice-primeiro-ministro, também responsável pela coordenação económica, António Pires de Lima era o novo ministro da Economia e Rui Machete tomara posse como ministro dos Negócios Estrangeiros. Sugeri-lhe logo que visitasse Berlim.

Independentemente de os ministros dos Negócios Estrangeiros se encontrarem muito regularmente no quadro das reuniões da UE, considerava que uma visita bilateral àquela que era a mais incontornável das capitais europeias devia constituir prioridade. Disse-lhe que a visita não se deveria limitar a um encontro bilateral com o homólogo alemão mas deveria constituir também oportunidade para um significativo acontecimento público com o objectivo principal de contribuir para reafirmar a nossa credibilidade.

Nessa correspondência pessoal escrevi: «É tarefa vital, que eu procuro desempenhar, o melhor que sei e posso, mas que não posso desempenhar sozinho.» E para quando visitar Berlim? Escrevi: «Não imediatamente, mas em breve.» Não imediatamente, defendia eu, por razões (certas ou erradas) ligadas à percepção pública, com muito eco em Portugal, relativamente ao papel da Alemanha no contexto da crise económico-financeira, que não recomendariam que fosse Berlim a primeira capital a ser visitada pelo novo ministro português dos Negócios Estrangeiros. Acrescia que o governo federal tinha entrado nas últimas semanas do respectivo mandato, que durante o mês de Agosto as autoridades alemãs tradicionalmente não recebiam visitas oficias a não ser que uma urgência maior o justificasse, que em Setembro iniciar-se-ia a campanha eleitoral para as eleições de 22 de Setembro e que seguir-se-ia o indispensável período de formação do novo governo. Mas, depois disso, logo que possível.

Apesar desta confortável margem de manobra temporal, preparei para Rui Machete uma lista das questões de maior de interesse no nosso relacionamento bilateral com a Alemanha, como é boa prática um embaixador fazer sempre que um novo ministro dos Negócios Estrangeiros assume funções. Ainda hoje, ao reler essa lista, a acho útil para perceber o estado das relações Portugal-Alemanha naquela época e, sobretudo, o estado das minhas principais preocupações.

Voltarei a Machete no último capítulo deste livro, mas agora o leitor e eu faremos uma incursão pelo mundo fascinante da diplomacia económica e só depois, munidos de toda a informação relevante, regressaremos à cronologia da nossa vitória colectiva sobre a mais grave crise económica e financeira que assolou Portugal nas últimas décadas.

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