Atormentada. Paula Rego (que morreu esta quarta-feira, 8 de junho, aos 87 anos) era uma mulher atormentada pela natureza humana. De uma sensibilidade angustiante e de uma liberdade extenuante, punha em tudo o que fazia aquela verdade que trazia dentro de si, o desequilíbrio entre o bem e o mal, a crueldade e a bondade, o sagrado e o profano, a realidade e a ficção, a sexualidade e o desejo. Sabia medir forças entre contrários e iguais, sabia quais as energias a vibrar dentro do corpo perante a dor e a alegria, a supremacia e a submissão, o sofrimento. Mestre na cor dessa condição que é a humana, contou todas as histórias, as dela e as nossas.
Escolheu-as entre os contos mais tradicionais, as fábulas e a literatura do século XIX do seu querido Eça de Queirós. Aí foi buscar personagens vivas, rostos, corpos, sentimentos. Perturbadora, apaixonante, livre, brutal, imortal, Paula Rego foi a artista portuguesa que mais pegou no nosso imaginário grotesco e o transformou no sentimento universal do homem e da mulher, sobretudo da mulher, esse ser que sempre quis ultrapassar na medida em que a igualdade de género se tornou uma luta no seu percurso de vida e na sua carreira profissional. Conseguiu.
Morreu Paula Rego, uma das mais importantes artistas portuguesas
Em 2021, quando a Tate Britain, em Londres, lhe consagrou finalmente uma retrospetiva à altura do seu talento, dizia ao telefone por intermédio do filho, Nick Willing, “agora estou entre os crescidos. Agora sou homem”. O desabafo surgia ao lado de uma alegria não disfarçada. A academia britânica reconhecia-lhe a pertença há muito requerida à Escola de Londres, onde nomes como Francis Bacon, Lucian Freud, Frank Auerbach, o do seu marido Victor Willing, o de Leon Kossoff, ou Michael Andrews conviviam desde os anos 60, unidos por um tipo de figuração detentora de um caráter muito existencial, mesmo que às vezes abstrata, e muito baseada nas experiências vividas pelos artistas.
A utilização de modelos vivos a aumentar aquele realismo figurativo em todas as suas dimensões. Mas onde ela não figurava desde essa altura com o mesmo à vontade, sendo portuguesa, não britânica, e sendo mulher. Estar entre os grandes, como também se pode traduzir a sua reivindicação, era, no entanto, uma realidade mais recente. Lá estava ela desde há 30 anos, sim, quando, nos anos 90 do século XX a comunidade artística a passa a aplaudir e as vendas no mercado lhe aliviam o dia a dia da mãe de três filhos a ter de pagar o leite que todos as manhãs lhe fica à porta.
Mas o reconhecimento surgiu lento, na Grã Bretanha e no mundo: “As mulheres artistas não eram integradas por inadequações conceptuais”, contava Catarina Alfaro na altura da inauguração da retrospetiva que a Tate lhe dedicou, em Londres, no ano passado. No início dos anos 60, Paula Rego teve destaque na exposição de artes plásticas da Gulbenkian. O primeiro aplauso tinha sido dado em 1954, pela Slade School of Art, que frequentava, em Londres, com a atribuição do prémio da Summer Composition. O tema do concurso de verão é a peça radiofónica de Dylan Thomas, “Under Milk Wood”, datada desse mesmo ano. “Paula produz uma obra que é destacada pelo crítico David Sylvester, o grande mentor da chamada Escola de Londres, o mesmo que, mais tarde, em 1965, faz referência a essa obra num jornal, a propósito de uma exposição onde Paula Rego participa ao lado de Frank Auerbach”, dizia-nos a investigadora. E ao lado de outros nomes como Victor Willing, Leon Kossoff, Michael Andrews.
Paula Rego: “Usei as histórias de outras pessoas para descobrir qualquer coisa sobre mim própria”
Primeiro no London Group, depois na mostra Six Artists. 1965 era o ano em que a Sociedade Nacional de Belas Artes a lançava em Portugal, enquanto fugia das correntes artísticas. “Afasta-se de qualquer rótulo que lhe queiram colocar. Se é neo-dada, se é uma artista da neo-figuração, ela diz que a sua pintura é neo-nada. Revela, logo nessa altura, a sua personalidade insubmissa, e este combate pela afirmação da sua especificidade, declara a sua independência perante qualquer movimento artístico. Também associavam a obra dela ao surrealismo e ela não aceitava. Paula Rego defendia que era uma artista diferente porque as suas fontes de inspiração estavam mais distantes da pintura e mais próximas do quotidiano, como a caricatura ou as notícias do jornal, os acontecimentos de rua e os provérbios, os pesadelos, os desejos e medos. Uma independência muito importante para a construção da sua própria narrativa histórica, ao mesmo tempo que procura sempre explicitar a originalidade e a autonomia do seu trabalho. Disto ela não abre mão. Talvez por isso tenha sido vista durante tanto tempo como uma artista outsider.”
Tinha um sentido de forasteira, que se intrometia, assumia a intransigência e não se submetia a nenhum género artístico ou rótulo. No dia a dia encontrava aquilo que precisava para a inspirar, no quotidiano mais banal e mais obscuro, no mais óbvio e o mais secreto. Diz-se mais perto das notícias do jornal dos medos e das reais caricaturas do que da pintura, fala em nome próprio, autonomiza-se cedo num meio onde a originalidade continua a ser um trunfo. Agarra forte narrativas dramáticas. Pinta diretamente na tela e deixa os seus “bonecos” crescerem e dilacerarem quem acha que a vida corre em meigos caminhos. Insubmissa, troca as voltas ao homem que troca pelo animal e ao animal que pinta como homem.
Escrevíamos aqui na altura da maior retrospetiva que lhe dedicaram que Paula Rego trabalhava a hipocrisia, a violência, a intolerância, plastificava a malvadez, a solidão e a fragilidade, pintava a abnegação e o amor. Os anos 80 davam-lhe muito, mas não lhe davam regras, a ela, uma artista que soube de cor transformar a ficção numa realidade mais cruel. Para isso, fazia uso da tinta como se fossem sobreposições, pele sobre pele, cada uma a querer destacar algo mais, tapando e destapando segredos à vista de todos. Como o fez na série “Aborto”. As obras surgiram quase forma impulsiva, quando o primeiro referendo a favor da despenalização da interrupção voluntária da gravidez recebeu o veto dos portugueses. Antes, as exposições não tinham sido muitas. Em 1989, as suas “Nursery Rhymes”, gravuras que mostrara na galeria Marlborough, tornaram-na bastante notada. E um ano depois, a sua passagem pela National Gallery como artista convidada para o programa de residências então iniciado fez dela um nome inquestionável da arte contemporânea.
A década de 80 foi cenário de liberdade, mas liberdade numa escala rara de encontrar. E dessa liberdade surgiu uma capacidade de fazer novo, de fazer diferente, de fazer mais. “A utilização de animais que simbolizam pessoas e que têm comportamentos humanos e de humanos que têm comportamentos animais, são um universo de interações exuberantes. Este tipo de linguagem é completamente novo, a própria paleta é muito arrojada, não há propriamente aquela atenção que a Paula sempre teve ao desenho, ela pinta diretamente sobre a tela”. “O pincel é que puxa o boneco”, dizia-nos Catarina Alfaro, que classificava a pintura de Paula Rego como “muito livre, em que não há espaço sequer para a autodisciplina, ela própria dizia que se sentia como um sismógrafo, ia registando aquelas narrativas que se constroem a partir dessa liberdade de expressão que é muito mais estridente”.
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Na mesma altura, foram vários os críticos que estabeleceram muitas comparações, incluindo com Bosch: “Pela profusão de criaturas, de mistura entre animais e pessoas, tudo muito apelativo, tudo ganhava uma outra dimensão de esplendor, de formas e de cor que é uma novidade em Londres”, explicou-nos Catarina Alfaro. Em 1989, quando as exposições não eram muitas, as suas “Nursery Rhymes”, gravuras que mostra na galeria Marlborough, deram-lhe outro mediatismo, captaram atenções (ou recaptaram) para uma figura que, mesmo nos momentos de maior recolhimento, nunca deixou de ser símbolo de vanguarda. Artista convidada pela National Gallery em 1990, integrada no programa de residências que começava por esses tempos, assume em definitivo o estatuto de nome inquestionável da arte contemporânea.
Nos anos 90, Paula Rego pratica a pintura que já foi integrada nas exposições da Tate. “É que aquilo que é valorizado no que respeita à Escola de Londres é a relação que a artista estabelece com o modelo, que é o que a une aos outros artistas, a utilização do modelo enquanto expressão de emoções e de relação com o artista. Ela é olhada de um ponto de vista mais formalista, de integração com alguns pressupostos de trabalho dessa Escola de Londres, um critério que tem mais a ver com metodologias de trabalho”, avançava na altura a programadora da Casa das Histórias.
Paula Rego, que sempre usou as dinâmicas sociais para chamar a atenção para as mulheres, para os seus direitos e as suas condições de vida, para o tráfico de humanos e a mutilação genital feminina, temas por ela tratados mais tardiamente, avançava para a tela à procura dela própria também. Encontrava-se nas memórias bem portuguesas da Ericeira, onde chegou a passar longas temporadas com o marido e os três filhos. Encontrava-se naquele ambiente trágico dos seus quadros, naquela tensão carregada, espelhada em rostos inesquecíveis, olhos e bocas, mas também nos músculos dos seus retratos, sempre a desafiar o sentimento do espectador, a sua capacidade de diálogo com as personagens que criava voluntariamente, misto de ser humano e animal, de condição primitiva, no sentido de genuína, autêntica, verdadeira, tão concentrada de emoções, paralisada no movimento que se adivinha, naquela multiplicidade de duplas e triplas dimensões. Carateres robustos de significado.
Como ela, determinada num caminho incansável pela honestidade da sua vulnerabilidade. Uma imposição, qual cláusula de um contrato invisível, da qual nunca abdicou para pintar.