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Há 26 anos, Paulo Ribeiro criou a Companhia que ainda hoje leva o seu nome e a qual volta agora a dirigir depois de seis anos de interregno
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Há 26 anos, Paulo Ribeiro criou a Companhia que ainda hoje leva o seu nome e a qual volta agora a dirigir depois de seis anos de interregno

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Há 26 anos, Paulo Ribeiro criou a Companhia que ainda hoje leva o seu nome e a qual volta agora a dirigir depois de seis anos de interregno

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Paulo Ribeiro: "Não sei o que é que a nossa diplomacia faz pela cultura, mas acho que faz muito pouco"

Bailarino e coreógrafo, Paulo Ribeiro apresenta uma nova criação no CCB e celebra a companhia que criou. Em entrevista, revê obra, deixa críticas, declara o amor pela dança e aponta caminhos futuros.

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Nasceu em Lisboa, cresceu no Brasil, viveu na Bélgica e em França e regressou a Portugal em 1988. Começou no judo, passou para a dança como bailarino, mas consagrou-se como coreógrafo. Estudou psicologia e filosofia. As suas peças correram mundo. Por cá, foi um dos fundadores da Nova Dança Portuguesa nos idos anos 90. Há 26 anos criou a Companhia que ainda hoje leva o seu nome e a qual volta agora a dirigir depois de seis anos de interregno.

Trabalhou com o Ballet Gulbenkian, com o Nederlands Dans Theater, o Grand Thêatre de Genève, a Companhia Nacional de Bailado. Acreditou na descentralização e sediou-se em Viseu, onde montou também uma escola de dança. Celebra a vida, o trabalho e a companhia em “Segunda 2”, uma obra com estreia marcada para sábado, dia 30, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, um desejo de longevidade também. Lá, vai ter que subir a palco e ainda sente um calafrio sempre que tem de o fazer. Paulo Ribeiro: o encantador de almas cada vez que faz mover bailarinos.

Paulo Ribeiro celebra a vida, o trabalho e a companhia em “Segunda 2”, uma obra com estreia marcada para sábado, dia 30, no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa

Como é que se consegue dançar e manter uma companhia própria e independente em Portugal durante mais de 25 anos? Portugal é um país para a dança?
A pergunta é: Portugal é um país para quê?, digo eu. Comecei a coreografar antes disso, comecei em 1984, vivia em Paris nessa altura. Em Portugal, os grandes desafios tiveram início em 1988.

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Foi a Nova Dança Portuguesa e a Companhia de Dança de Lisboa?
Sim, mas também o Ballet Gulbenkian, fui o primeiro coreógrafo fora da companhia convidado a coreografar para lá. Tive sorte porque a peça que fiz foi vista pelo Jiri Kylian do Neterlands Dans Theater, que gostou imenso e me convidou para ir trabalhar com ele. Aquela era a companhia topo, topo, topo. Daí fui trabalhar com o Grand Thêatre de Genève. De fio em agulha, a coisa foi-se tecendo e, é verdade, tive uma carreira muito intensa e muito entusiasmante. E, também, de certa maneira, no desconforto confortável. A Companhia Paulo Ribeiro quando começou tinha a necessidade de ter intérpretes a tempo inteiro, pois quando coreografamos para as companhias de reportório deixamos de ter mão, fazemos uma peça, que fica com os assistentes da companhia, que tem um caderno de encargos complicado, que faz com que as obras sejam condenadas a diluírem-se. Quando o autor não as acompanha, elas vão ficando só a forma e não o fundo.

Daí a companhia de autor?
Sim. Queria ter uma companhia de autor que tivesse o meu estilo, porque tinha a pretensão de ter um estilo próprio. E acho que ele existe, qualquer peça minha reconhece-se. Lancei-me e aí também tive imensa sorte, porque a primeira peça, “Sábado 2”, em 1995, correu logo mundo. A questão internacional foi sempre muito importante para que as companhias portuguesas sobrevivessem, inclusive agora. O que é que faz com que o Jonas Lopes e o Lander Patrick [bailarinos] tenham o sucesso que têm, o que é que faz com que a Marlene Freitas tenha o sucesso que tem? São os parceiros internacionais. França normalmente é um grande aliado.

Quando começou também era França.
Era França, Alemanha e Inglaterra e, depois, países de Leste, Hungria, fomos várias vezes a Budapeste, quase todas as peças foram apresentadas lá. Croácia também, Zagreb acompanhou-nos imenso. Logo, esta questão internacional foi essencial. Os Estados Unidos, o “Sábado 2” também foi aos Estados Unidos e teve ótimas críticas no New York Times. A seguir a isso, com a segunda peça, “Rumor de Deuses”, participámos naquele concurso em Bagnolet, Rencontres Choréographiques Internationales de Seine Saint-Denis, que está para a dança como Cannes está para o cinema, e ganhámos imensos prémios.

"Se não fosse este percurso internacional não sei o que seria. Se olharmos para trás, para 1995, Portugal era aqui o CCB, em Lisboa, e o Teatro Nacional de São João, no Porto, estava a começar com a direção do Ricardo Pais, mas, de resto, o país era paisagem."

Já ganhou muitos e muitos prémios ao longo da carreira, significam muito para si?
Sim, o reconhecimento é interessante. E os prémios que também são pecuniários ajudam a que a companhia continue a trabalhar. Foi o que aconteceu com Bagnolet, eles davam uma verba que permitiu fazer o projeto seguinte. Os bailarinos também tiveram um prémio de interpretação coletiva e puderam ir de férias graças a isso. Se não fosse este percurso internacional não sei o que seria. Se olharmos para trás, para 1995, Portugal era aqui o CCB, em Lisboa, e o Teatro Nacional de São João, no Porto, estava a começar com a direção do Ricardo Pais, mas, de resto, o país era paisagem.

E por que decide sediar a companhia em Viseu?
Por isso mesmo. Tínhamos tournées incríveis, digressões de um dia estar em Nova Iorque e noutro dia estar em Berlim, noutro ainda estar em Budapeste.

Imagino que seja excitante, de alguma forma.
É muito excitante, mas é muito, muito desgastante. Lembro-me de estarmos em Nova Iorque. Tínhamos chegado via aeroporto J.F. Kennedy e o nosso produtor achou que a saída seria do mesmo aeroporto a que tínhamos chegado. Lá fomos. Quando lá chegámos percebemos que era em Newark e não ali. Bem, foi um calafrio que de repente toda a gente nos dizia que o avião não ia esperar por nós, que dali até ao outro aeroporto havia engarrafamentos. Saímos de lá, estava uma fila enorme para os táxis, para os autocarros a mesma coisa. De repente, chegam dois tipos e dizem: “Eh men, what are you looking for?”. Arranjaram-nos duas limusines e lá fomos em excesso de velocidade. Só pensava que não tinha dinheiro e que os cartões de crédito não cobriam a estadia da companhia por mais um dia, pensava nas passagens de avião… ia com o coração apertadíssimo. Chegámos ao aeroporto de Newark e, no fundo, o avião ficou à nossa espera. Estamos a entrar no avião e está lá o Carlos Pontes Leça, antigo diretor-adjunto do Serviço de Música da Gulbenkian, que me diz: “Paulo, só tu é que fazes parar um avião em Nova Iorque!” Estas coisas são deliciosas, mas ficava em risco o espetáculo em Berlim. É muito prazeroso, mas não podemos ter digressões de mais de três semanas, mais, e começávamos todos, como se diz, a fritar. Mas isto para dizer que comecei a achar que era inconsequente ter só isto. Por acaso até acho que achei mal, se não me tivesse interessado por estas coisas da descentralização em prol do país, a carreira teria sido diferente.

E aí escolhe Viseu.
Achei que Portugal tinha de abrir e então comecei a ver e a fazer uma espécie de périplo para perceber que teatros é que existiam no país que estivessem disponíveis e com condições para acolher um projeto. Descobri o Teatro Viriato que tinha acabado de ser restaurado, mas que não tinha nada. Ainda não tinha teia, não tinha projetores, nada.

Não tinha nenhuma relação com Viseu?
Não. Foi uma coincidência muito engraçada. A primeira peça que fiz com a Companhia de Dança de Lisboa em Portugal, chamada “Taquicardia”, que me abriu as portas da Gulbenkian, foi feita numa residência em Viseu. Antes não conhecia Viseu de lado nenhum. Quando descubro o Teatro Viriato e faço o projeto para lá, a Leonor Keil, minha mulher na altura, diz-me para irmos visitar os pais dela que se tinham mudado para Canas de Senhorim, que é ali ao pé, a 25 km de Viseu. Ela, sim, tinha antepassados ali. De repente, sem ter planeado, tínhamos umas condições de vida fantásticas, vivíamos a 25 km de Viseu, numa quinta centenária, onde os miúdos puderam crescer. Isso foi um destino abençoado.

"Os equipamentos [culturais] estão muitas vezes ligados às câmaras municipais, elas utilizam-nos como salão de festas e tem de se criar uma direção independente. O sucesso do Teatro Viriato foi esse"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

E houve ou há realmente descentralização da cultura?
Agora há. Devia haver mais e melhor. Há muitos equipamentos interessantes espalhados pelo país. Temos uma das maiores redes de teatros e cineteatros da Europa.

Não há é uma programação contínua.
Pois. Acho que estão a trabalhar nisso agora, o objetivo é encontrar uma forma de financiamento para esta rede de teatros e cineteatros. Espero que isso aconteça, porque a questão é sempre financiamento e autonomia. Estes equipamentos estão muitas vezes ligados às câmaras municipais, elas utilizam-nos como salão de festas e tem de se criar uma direção independente. O sucesso do Teatro Viriato foi esse. Tínhamos um financiamento da Câmara de Viseu e um financiamento do Ministério da Cultura, mas tínhamos autonomia. Éramos uma associação à parte. Claro que tínhamos que cumprir um caderno de encargos de público, de apresentações diversas, não só dança, mas também teatro, música, etc. Tínhamos que ter uma dinâmica que fosse aprovada, mas, a partir do momento que demos resposta, não tínhamos que ceder a mais nada.

Foi fácil conquistar um público em Viseu, que, presumo, nessa altura não estaria habituado à dança?
Foi peculiar, foi interessante. No início, a ida ao Teatro Viriato parecia as missas ao domingo, onde se vai porque fica bem ir. Cheirava imenso a naftalina, os casacos e aquela coisa toda. Era um público que, apesar de tudo, tinha mesmo vontade de fruir de uma casa de espetáculos, que não tinha há 40 anos. Iam, interessavam-se. Tínhamos que ter imenso cuidado com a programação.

Para não ferir suscetibilidades.
Exato. Não podia ser o último grito da contemporaneidade. Tínhamos que jogar com uma série de coisas. Mas, a pouco e pouco, a coisa foi-se fazendo e agora temos todos os públicos. As pessoas da minha geração vão ao Teatro Viriato e interessam-se pela programação e os mais jovens também. No fundo, o teatro tem uma programação para todos. Já são 25 anos de trabalho com as escolas, trabalho de sensibilização, etc. Há pessoas que hoje em dia são grandes encenadores e escritores que tiveram, como o Micael Oliveira, por exemplo, o seu primeiro confronto com o teatro no Viriato. Hoje em dia é mesmo uma casa para todas as gerações.

"Acho que o modelo da CNB assim é muito complicado. Claro que, lá dentro, quase toda a gente tem a impressão de que o bolo maior vai para o São Carlos. Senti que havia um lado arbitrário no sentido em que quando entrei o meu orçamento era uma coisa, uns meses depois era outra, e outros meses depois era ainda outra."

É mais fácil construir um público e essa dinâmica numa comunidade mais pequena no interior do país do que em Lisboa, por exemplo?
Não sei responder muito bem porque conheço mais essa primeira realidade, que é uma realidade de afetos. No meu caso, o que aconteceu em Viseu foi que as pessoas estavam tão gratas de ter o teatro a funcionar com uma programação que lhes dizia respeito que foram-se ligando imenso não só ao teatro como à própria direção. Eu ia ao médico e os meus filhos iam ao médico e não pagávamos. Eles tinham gosto em oferecer-nos as consultas.

Como acontecia antigamente com o padre e o professor?
Sim, era incrível. Já não estou em Viseu há bastante tempo, mas ainda tenho imensos amigos, ainda sinto ali um calor humano, sinto-me bem na cidade. E a cidade acolheu-me bem. Uma vez, quando quis fazer a escola de dança, e houve alguma resistência ao início por parte da Câmara, e eu disse que se não nos dessem o espaço para a escola a companhia sairia de Viseu. Num restaurante importante da cidade, onde fomos vários almoçar, não me deixaram pagar: “eh pá, Paulo, não, não queremos que te vás embora!” Isso numa grande cidade não acontece.

“O orçamento da CNB é inferior ao orçamento de uma companhia de província francesa”

Como foi o afastamento de Viseu, houve um desapontamento, porque saiu da cidade?
Gosto de iniciar projetos e desenvolvê-los. Agora, entrar numa rotina em que a coisa se repete, não. Em Viseu as coisas estavam a correr muitíssimo bem, a cidade gostava de mim, gostava da companhia, mas tínhamos que dar um passo. E o passo era eu ter uma companhia com um elenco fixo, nem que fosse de cinco ou seis bailarinos, é isso que uma companhia de autor tem que ter, cinco ou seis bailarinos ali a trabalhar. Por exemplo, nesta produção, que vai estrear aqui no CCB, tenho uma dificuldade muito grande porque os intérpretes estão a fazer milhares de coisas. Há um que não pode vir de manhã, outro que não pode vir à tarde. É um quebra-cabeças. Em Viseu eu achava que tinha um património enorme, com obras e obras e obras, e obras interessantes que podiam ser um desafio para os mais jovens. Portanto, podia, com uma companhia minha, de autor e com staff fixo, remontá-las com a escola [Lugar Presente] e com os melhores alunos ou os mais interessados, integrando-os com os bailarinos profissionais e fazendo com que esse reportório circulasse na região, etc. Esta questão da memória é muito importante, montar estas peças antigas é certamente um desafio para eles. Juntava-se o útil ao agradável, miúdos a caminho da profissionalização e profissionais maduros. Além disso, eu poderia criar. E criar uma dinâmica com uma companhia descentralizada. Era o passo com que sempre sonhei. Fui fazendo as coisas em Viseu por forma a ter o teatro, mais institucional, a escola, o caráter pedagógico, a companhia e um espaço aberto para primeiras obras. Tinha ali um núcleo que ia no sentido deste meu sonho muito antigo que é uma casa da dança.

Seria o cenário ideal.
Seria um cenário fantástico, mas era uma evolução lógica, natural, orgânica. A Câmara Municipal foi dizendo que sim, sim, que era uma boa ideia, mas nunca deu aval e nunca me ajudou neste sentido. Achava que estava a fazer mais do mesmo. Tinha que sair daquele ram ram de programar e fazer as minhas peças. Entretanto, isto também coincidiu, em termos pessoais e familiares, com uma nova vida. E veio o convite para a Companhia Nacional de Bailado, que também foi sempre o meu sonho, trabalhar só com dança, com grandes intérpretes e com os meios que me permitam programar como deve ser.

"Esta peça que estou a fazer aqui, “Segunda 2”, não cabe no estúdio do Viriato. Não podia ensaiar lá. Preciso de um pé direito, preciso de uma dimensão maior"

Mas a CNB também não tinha meios.
A CNB tem muito poucos meios. E tem esta forma de gestão a que não me consigo adaptar. Ter um conselho de administração conjunto com o Teatro São Carlos, a Opart, é muito complicado. Ou sentimos afinidade com estes administradores e a coisa pode funcionar, que é o que acho que aconteceu muito bem com o Tiago Rodrigues no Teatro Nacional D. Maria II, com a administração a trabalhar no seu sentido, para a sua orientação artística. Numa casa como esta tão multifacetada, é muito difícil ter uma administração a perceber o que se passa. Também é mais difícil perceber uma companhia nacional, que tem esta coisa mista entre os clássicos e os modernos e os contemporâneos, e uma casa que tem um elenco grande, mas que só quase metade é que está completamente operacional.

Está a falar de quantos bailarinos?
Na minha altura eram 70, mas mais ou menos 40 é que estavam operacionais e faziam tudo. Muitas vezes tínhamos bailarinos de corpo de baile ótimos, excelentes, que podem vir a ser bailarinos principais e solistas de primeira água, que estavam ainda jovens a desempenhar já esses papéis. Numa companhia nacional tem que se poder conciliar a questão do autor e do coreógrafo com a questão maior do reportório. O que é que esta pessoa específica traz à companhia e de que forma é que a companhia, não perdendo o seu fito, se adapta a estas correntes. Além disso, o orçamento é complicadíssimo. O orçamento da CNB é inferior ao orçamento de uma companhia de província francesa. A CNB na minha altura [2016-2018] não chegava a ter um milhão de euros para programar. O Ballet de Lyon, por exemplo, tem milhões de euros, o Ballet de Marselha tem milhões de euros.

Estamos a falar de um país, a França, que dá mais de 1% do Orçamento de Estado à Cultura, não de um que dá 0,25%.
A ambição da CNB em termos artísticos não pode ser a de prestação de serviços. A sua missão é como a de uma ópera, é a de fazer clássicos, mas também ter um olhar para a dança moderna, do século XX, e também estar atenta aos grandes coreógrafos da atualidade. É isso que a Ópera de Paris faz e faz bem, mas eles têm um orçamento que equivale a todo o orçamento da cultura em Portugal.

A sua saída da CNB foi uma questão de dinheiro ou mais do que isso? Sentiu-se o parente pobre da Opart?
Acho que o modelo da CNB assim é muito complicado. Claro que, lá dentro, quase toda a gente tem a impressão de que o bolo maior vai para o São Carlos. Senti que havia um lado arbitrário no sentido em que quando entrei o meu orçamento era uma coisa, uns meses depois era outra, e outros meses depois era ainda outra. Diziam-me: “olha é assim, faz com isso”. Também vou para as coisas com uma certa ingenuidade a pensar que elas podem mudar, mas depois não mudam. O modelo da CNB deve ser o de uma direção-geral, tem que ser autónoma, saber ir buscar os financiamentos e criar mais  financiamentos. Não esta coisa estranha de que por ser nacional tem de oferecer os espetáculos. Não tem de oferecer os espetáculos. Uma companhia independente vai pedir um cachet e a CNB oferece? É preciso fazer coproduções. A peça [“Le Chef d’ Orchestre”] que fiz para a companhia em 2019 foi uma coprodução com o Théâtre National de Chaillot, de Paris. Os outros teatros coproduzem, acolhem, compram espetáculos, ajudam a financiar a companhia, só cá é que não. Além de tudo isto, tinha uma comunicação difícil com o presidente do Conselho de Administração da Opart dessa altura [Carlos Vargas]. Foi isso que me levou a sair. Estava com tanta vontade de fazer e de dar um passo em frente que saí de Viseu sem me precaver. Deixei as coisas orientadas, a direção do Teatro Viriato com a Paula Garcia, que trabalhava comigo há praticamente 20 anos, a escola entreguei-a ao Albino Moura, que tinha começado o projeto comigo, e a companhia ficou com a São Castro e o António Cabrita. Isto porque na CNB tinha que ter exclusividade, um disparate enorme. Veja-se que os próprios bailarinos da CNB não têm exclusividade e um diretor tem que ter mesmo que isso o obrigue a romper com todo o seu passado.

"A dança é uma entidade voraz. Para já, apropria-se da música, depois apropria-se da videoarte, das artes plásticas a mesma coisa, apropria-se mesmo de uma certa teatralidade. A dança tem esta vocação cosmopolita que é muito interessante."

É uma exigência que não faz sentido.
Pois não. Por exemplo, a Sasha Waltz, na Alemanha, teve o mesmo desafio que eu aqui e disse não à exclusividade. Passamos momentos na nossa vida em que estamos mais ou menos aptos.

Mais vulneráveis?
Sim, mais vulneráveis. E na altura estava a passar por um período de uma certa fragilidade. Quando decidi sair da CNB fiquei com um vazio enorme.

Encontrou logo a seguir a Casa da Dança em Almada.
Sim. Desafiei a Inês de Medeiros [presidente da autarquia] com esse projeto. Eu tinha a impressão de que a Inês gostava que a Companhia Paulo Ribeiro fosse para Almada. Mas, como já havia uma Companhia de Dança de Almada, podia criar suscetibilidades. E, como a minha companhia estava a ser dirigida pela São e pelo António, que tinham um contrato que só acaba agora, achei que não podia ser. Acho que é mais interessante acrescentarmos algo aos projetos e não tirarmos nada. Disse então à Inês que não me importava de ir para a frente e fazer algo maior e que era o meu sonho. Ela gostou da ideia e arrancámos com o projeto. Depois veio a pandemia e foi o que foi. Gosto de fazer projetos, mas, ao mesmo tempo, sou muito impaciente. Gosto de fazer logo, quando a coisa se vai arrastando, fica o conceito, o espaço não se escolhe, o autarca tem uma vontade, a tutela tem outra… Acabei por desafiar o Amaury Cacciacarro e a Adriana Grechi, que são dois brasileiros que têm um festival em São Paulo e que conhecem bem a realidade portuguesa, para ficarem em Almada. Eu continuo a fazer parte do conselho consultivo da Casa da Dança.

E o regresso a Viseu como está a ser?
O regresso não é bem a mesma coisa. Volto a tomar conta da companhia que está sediada na cidade. Sinto, quando lá vou, que as pessoas têm saudades das peças, de me ver lá.

Isso deve ser muito bom.
É. Realmente há ali uma relação muito forte coma cidade.

Programar o Teatro Viriato, nunca mais?
Programar dança posso programar, que é o que conheço. Só faz sentido a companhia voltar para Viseu, tendo um espaço próprio. O estar no Teatro Viriato com este novo paradigma não é bem o que quero. Por exemplo, esta peça que estou a fazer aqui, “Segunda 2”, não cabe no estúdio do Viriato. Não podia ensaiar lá. Preciso de um pé direito, preciso de uma dimensão maior. São só seis, mas a peça precisa mesmo de espaço.

"Podíamos ter uma espécie de mediação muito forte em termos internacionais se as embaixadas funcionassem bem no sentido de saberem vender Portugal"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

A peça tem uma ideia de celebração por detrás, ou não?
Quando fiz “Memórias de um Sábado com Rumores de Azul”, nos dez anos da companhia, quando o Ballet Gulbenkian acabou, fiz uma coisa fortíssima. Caíam varas, um dos bailarinos recitava Ramos Rosa e saía-lhe sangue da boca. Esta é prazerosa, dinâmica, tem sentido de humor. Celebra o corpo, celebra a vida, é lúdica, brinca com a falha, tudo a partir dos textos da Isabel Nogueira.

A peça tem texto, novo circo…
Um dos intérpretes vem do INAC [Instituto Nacional de Artes do Circo], o Pedro Matias, e o novo circo vai acontecendo.

É importante ir buscar várias disciplinas artísticas para uma peça de dança?
Acho que sim. Cada projeto, no entanto, é um projeto. Aqui foi importante e funcionou muito bem. A dança é uma entidade voraz. Para já, apropria-se da música, depois apropria-se da videoarte, das artes plásticas a mesma coisa, apropria-se mesmo de uma certa teatralidade. A dança tem esta vocação cosmopolita que é muito interessante.

“A extinção do Ballet Gulbenkian foi muito má para a dança nacional. Para mim também”

Falámos a correr da extinção do Ballet Gulbenkian, foi um golpe duro?
Foi horrível. Foi muito duro, sim. Mesmo para mim. Mas foi duro em primeiro lugar para o país.

Portugal já não precisava do Ballet Gulbenkian?
É claro que precisava e precisa. O Ballet Gulbenkian era um exemplo de boas práticas, de excelência, de excelência dos intérpretes e dos coreógrafos. Aquela casa era a imagem da Gulbenkian enquanto locomotiva que puxa para a frente. A Gulbenkian sempre puxou o país para a frente. E aqui foi o sinal contrário. De repente, percebemos que a Gulbenkian podia também não puxar para a frente. Um calafrio. A dança precisa de mais companhias. A única companhia institucional que existe, a CNB, não chega. O Ballet Gulbenkian ajudava a que a CNB se definisse em termos de vocação. E faria o tal reportório ao longo dos séculos, enquanto a Gulbenkian tinha a vocação moderna, contemporânea, para o futuro… e sempre com excelência. Era também uma forma de promover a dança portuguesa não só cá dentro, como lá fora. E era, no fundo, os alicerces dos coreógrafos independentes e dos bailarinos independentes. A extinção foi muito má para o país e para a dança nacional. Para mim, em termos pessoais, também. Não percebi como é que aconteceu. Estava em franca expansão e reconhecimento do meu trabalho. Tinha uma coprodução com o BAM, de Nova Iorque [Brooklyn Academy of Music], com o Ballet Gulbenkian, tinha outra coprodução com o Holand Dance Festival com o Ballet Gulbenkian. Como autor, aquilo que vemos agora que está a acontecer ao Tiago Rodrigues, estava a acontecer-me a mim. É muito diferente nós autores andarmos com as nossas pequenas estruturas, ou nós autores sermos reconhecidos por uma grande estrutura. Eu tinha essas pontes lançadas. O Ballet Gulbenkian acabou em 2005 e eu tinha programas definidos até 2007 com coprodutores internacionais de primeira água. Foi muito duro.

"Esta política de extroversão, de olhar para fora, faz-nos falta. Não há dinheiro, mas podia haver mais criatividade, mais informação, mais interesse. Não sei o que é que a nossa diplomacia faz, mas acho que faz muito pouco."

Que política cultural podemos ter sem dinheiro?
Podíamos ter uma espécie de mediação muito forte em termos internacionais se as embaixadas funcionassem bem no sentido de saberem vender Portugal, de saberem vender os autores portugueses. Isto acontece imenso com os nossos parceiros europeus. Os alemães têm uma ligação muito forte com África, até fazem centros culturais, os franceses com África, mas também com o Oriente, imenso. Os belgas a mesma coisa, até chegam a fazer um teatro em Avignon para receber só as companhias belgas, para dar nas vistas. É uma questão de diplomacia cultural muito forte que faz com que se dê nas vistas em termos internacionais e aí se encontrem parceiros. Esta política de extroversão, de olhar para fora, faz-nos falta. Não há dinheiro, mas podia haver mais criatividade, mais informação, mais interesse. Não sei o que é que a nossa diplomacia faz pela cultura, mas acho que faz muito pouco.

É preciso que haja um conhecimento maior daquilo que se faz em Portugal.
Conhecimento, interesse… É preciso que seja o Governo central a decidir. O problema é que se passa o tempo a apagar fogos, os ministros sucedem-se uns atrás dos outros, esta ministra já está há algum tempo, o que é bom. Não há segredo, é preciso tempo. Só assim se consegue perceber o que é realmente necessário e o que é que se pode fazer.

Este novo espetáculo, “Segunda 2”, é o começo de um novo ciclo?
Claramente. Vou retomar a direção da companhia, voltei a criar passado um ano e meio sem fazer nada, com a pandemia. Estava numa angústia enorme de ir para o estúdio, estar com os bailarinos e não ter nada para dar. Sentia-me completamente vazio, é verdade. Depois, as coisas foram acontecendo e foram acontecendo bem. Fiquei em casa durante a pandemia, fechei-me lá. Então, achei que chamar a este espetáculo “Segunda 2” traria alguma alegria. Agora às segundas-feiras podemos finalmente ir trabalhar, o tempo de prazer agora não é ao sábado é à segunda-feira, e nós começámos a trabalhar no espetáculo na segunda-feira, 2 de agosto.

O que é que o fascina no bailarino?
O que me fascina é a versatilidade, o poder fazer várias coisas e depois, sobretudo, a densidade, que é os movimentos serem preenchidos, quando um bailarino se move não é gratuito, parece que quando se move a atmosfera se move com ele. É uma qualidade de movimento interior, não é um movimento exterior que existe sem qualquer tipo de resistência, não. É aquele mistério que quando se mexe tudo parece fazer sentido. Há poucos intérpretes que têm isso. É maravilhosa aquela espécie de encantamento por dentro. São coisas que não sabemos explicar, mas que sentimos diretamente pela pele. Bailarinos que conseguem fazer isso, seja com linguagens de autor mais difíceis, seja neoclássico, clássico, são magníficos.

"Os filmes inspiram-me imenso, os livros também me inspiram imenso, claro que a música também. E, depois, a vida em si"

E o que é que o fascina no papel do coreógrafo?
O que me fascina nos outros coreógrafos é quando eles nos conseguem fazer viajar em peças de que gostamos. Devemos ter a mesma atitude em relação à dança que temos em relação à música, ou que temos mesmo em relação à gastronomia. Uma pessoa vai comer um prato que lhe enche as medidas e não tem que obrigatoriamente pedir a receita e saber os ingredientes.

É muito sensorial?
Sim. E é isso que me fascina, como é que os coreógrafos nos conseguem levar numa espécie de encantamento. O estarmos a assistir a uma peça e de uma forma ou de outra sermos convocados.

Tem saudades de dançar?
Não tanto. Gostei imenso de ter feito aquele desafio enorme, louco, o “Sem Um Tu Não Pode Haver Um Eu”, solo que dancei há sete anos. Tive que me ultrapassar. Dancei imenso, mas sempre tive uma relação difícil com o palco, sou daquelas pessoas que tem um enorme medo do palco. Cheguei a fazer um espetáculo em França mais de cem vezes e em todas as vezes sentia aquele medo.

“Fiz uma aula de dança, fiz duas, fiz três, fiz quatro. Fiquei viciado”

Porque ou como é que se interessou pela dança num tempo em que a dança em Portugal tinha muito pouca expressão?
A minha história na dança é o resultado de uma falha. Nunca na vida imaginei que ia fazer dança. Tive uma educação perfeitamente normal, clássica, estudei sempre nos Salesianos, ali no Estoril. Fui judoca muito cedo, comecei a fazer judo com nove anos e fiz judo a alto nível. Em 1975 fomos para o Brasil. Não por questões políticas, mas porque o meu pai era empresário e achava que isto aqui em Portugal estava muito confuso. No Brasil continuei a fazer judo, fiz o vestibular, entrei para a universidade, fui fazer psicologia, fiz dois anos. Portanto, comecei a dançar muito tarde. Vínhamos passar férias a Portugal e numa dessas férias, um dos meus melhores amigos estava na Bélgica, eu estava farto da psicologia, também estava a ficar farto do judo pela violência das competições, e ele convidou-me para ir com ele. Fui para Bruxelas assim. Os meus pais voltaram para o Brasil e eu com cinco contos no bolso apanhei o comboio e fui para Bruxelas. Ainda me inscrevi na ULB, a Universidade Livre de Bruxelas, para fazer filosofia. Continuei a fazer judo. Depois conheci uma bailarina que me levou a fazer uma aula de dança. Fiz uma aula de dança, fiz duas, fiz três, fiz quatro. Fiquei viciado. Comecei a pensar melhor e percebi que sempre quis juntar algo intelectual com o corpo e ali estava tudo. Foram momentos muito duros porque os meus pais recusaram-se a ajudar-me. Não tinha dinheiro nenhum, nada, nada.

E o que fez?
À noite ia para o Cirque Royal pendurar projetores, montar palcos, aos fins de semana pintava as casas das pessoas. Depois encontrei outra forma de ganhar dinheiro mais fácil, pousava para pintores na Academia de Belas-Artes. Aí a coisa era bem mais tranquila e ganhava-se bastante bem. Fui fazendo dança, ainda fui para a escola do Maurice Béjart, ainda conheci a Anne Teresa de Keersmaeker… O engraçado no meio disto tudo é que a maior parte das pessoas lá na escola do Ballet Contemporâneo de Bruxelas não acreditava em mim. A professora achava-me tão mau que nem me falava. A bailarina que eu tinha conhecido achava-me um zero à esquerda e também não me falava. A Maria de Assis, que estava em Bruxelas na altura, perguntava-me se eu não queria fazer antes outra coisa. Eu respondia: “Não”.

"Gosto muito desta capacidade que as coreografias têm de serem entes próprios, terem vida própria. Depois temos que lhes dar imenso carinho, ter muito cuidado, mantê-las como um bonsai, para que cresçam e se tornem uma árvore. Deixar que elas se afirmem por elas mesmas."

Persistência.
Foi mesmo assim. Mas trabalhei, trabalhei, trabalhei. Nunca pensei ser coreógrafo, queria era ser um bom bailarino. Queria dançar bem, queria ter técnica. E cheguei a ter mais ou menos.

Mas a coreografia foi logo uma opção?
Sim. Éramos um grupo e estávamos em Lyon, isto em 1984. Eu, a minha companheira da altura, outra amiga e um suíço que também tinha vindo de Bruxelas. Não gostávamos do que dançávamos como intérpretes e então ao fim de semana íamos fazer as nossas brincadeiras para dançar. Uma dessas peças, assim como quem não quer a coisa, apresentámos no Concurso Volinine, em Paris. Dançávamos com barbatanas, com óculos de mergulhar, a banda sonora era completamente chanfrada, tinha Nina Hagen… Gostaram muito da coreografia e queriam dar-nos um prémio, mas havia o Thierry Malandain, que dirige agora o Ballet de Biarritz, e o prémio teria que ser ex aequo, mas como não queriam dar um prémio ex aequo, inventaram o prémio de humor e ganhámos esse prémio. Nesse mesmo concurso, no segundo ano, ganhámos o Prémio Contemporâneo.

O convite de Jorge Salaviza para coreografar para o Ballet Gulbenkian, em 1988, foi o mais surpreendente ou houve outros?
O convite do Jorge foi muito surpreendente. Não estava nada à espera. Mas, a seguir ao Jorge, o Nederlands Dans Theater foi ainda mais. Era a companhia top, como já disse. E convidou-me várias vezes. Eu ainda não me considerava coreógrafo, achava que fazia umas coisas e andava a ver onde é que ia dar. Tinha um desapego grande. Estava a descobrir. Agora já acho que posso ser um coreógrafo.

O que é que costuma ir buscar antes de criar uma coreografia nova?
É muito diverso. O cinema é importantíssimo, os filmes inspiram-me imenso, os livros também me inspiram imenso, claro que a música também. E, depois, a vida em si. Para esta peça, por exemplo, fui um bocado à descoberta, sem nada definido, não tinha onde me agarrar. Quando há uns anos [2014] a Luísa Taveira me convidou para fazer uma coreografia inspirada no universo de Tarkovsky foi fantástico. Foi um desafio lindo, tinha onde me agarrar. Aqui, não queria falar de nada em específico, então fui buscar muito aos intérpretes. Vou lançando pistas, vou dando direções e são eles que depois me inspiram e me dão de volta coisas que, a pouco e pouco, se vão definindo e ganhando vida. Gosto muito desta capacidade que as coreografias têm de serem entes próprios, terem vida própria. Depois temos que lhes dar imenso carinho, ter muito cuidado, mantê-las como um bonsai, para que cresçam e se tornem uma árvore. Deixar que elas se afirmem por elas mesmas.

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