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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Pedro Santos, o engenheiro português que levou água canalizada aos refugiados no Iraque

Pedro Santos vive no Iraque, onde trabalha para dar saneamento e higiene a quem fugiu da guerra e do Estado Islâmico, e conta ao Observador como um boné do Benfica lhe abriu um check-point iraquiano.

Reportagem em Erbil, Iraque

Quando terminou a licenciatura em engenharia ambiental em Lisboa, em 2009, Pedro Santos não imaginava que em menos de dez anos estaria a viver no Iraque. Nem que seria responsável por gerir um projeto orçamentado em cinco milhões de dólares com o objetivo de devolver condições sanitárias às populações afetadas pela guerra e pela invasão do Estado Islâmico. Muito menos lhe passava pela cabeça que, antes de se mudar para o Iraque, já tivesse passado um ano no Tajiquistão a construir algumas das primeiras mini-hídricas da zona rural da Ásia Central, que permitiram aproveitar o potencial hídrico da região para, pela primeira vez, fornecer eletricidade a aldeias do interior do país.

Mas aconteceu. E tudo começou com a crise. “É difícil arranjar emprego em Portugal. Trabalhei em Portugal durante seis meses e nunca fui pago. Chateei-me e disse ‘olha, vou trabalhar para fora’”, conta ao Observador em Erbil, capital da região autónoma do Curdistão iraquiano, numa noite de sábado antes de regressar a Duhok, a cidade 60 quilómetros a norte de Mossul onde trabalha desde 2016. Ali, é responsável pelo programa WASH (água, saneamento e higiene) da organização não governamental francesa ACTED, que tem como missão ajudar os cerca de 11 milhões de iraquianos que ainda necessitam de ajuda humanitária, nomeadamente os que tiveram de fugir de casa depois do Estado Islâmico fazer de Mossul a capital do seu seu califado e que só agora regressam às suas regiões de origem.

Desde a derrota do Estado Islâmico no ano passado, o trabalho de Pedro tornou-se mais tranquilo — se é que a palavra pode ser usada neste contexto. Quando chegou ao país, em 2016, ainda Mossul e grande parte da planície de Nínive estavam sob controlo da organização terrorista. “Na altura, estava a trabalhar numa aldeia chamada Zummar [65 km a noroeste de Mossul]. A um quilómetro dali, via as bombas a caírem. Há ali uma aldeia cristã, Alqosh, onde fui várias vezes. Das montanhas, víamos a planície de Nínive, e víamos as bombas. Era inverno e pensávamos que eram tremores de terra. Mas eram bombas a cair. Nos bombardeamentos eram duas bombas por segundo”, conta.

Pedro Santos em Erbil, no norte do Iraque, onde esteve num fim de semana de julho antes de regressar a Duhok, cidade curda onde trabalha (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Na altura, à medida que os extremistas avançavam, milhares de pessoas fugiam em poucos dias daquela região, procurando refúgio no norte do Iraque, no Curdistão e noutras zonas próximas da fronteira com a Turquia. O fluxo de deslocados internos a chegar em massa às regiões de Duhok e de Erbil, no Curdistão, colocou pressão nas cidades e vilas curdas, que deixaram de ter capacidade para acolher tanta gente. Foi preciso construir campos de refugiados e de deslocados, mas também cuidar das habitações devolutas que muitas famílias deslocadas começaram a ocupar.

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Pedro assumiu a missão de tratar da questão sanitária, sobretudo nas pequenas vilas cuja população aumentou significativamente com o êxodo de iraquianos e sírios fugidos da guerra que aumentou nos últimos anos com o Estado Islâmico. “Em campos [de refugiados ou deslocados], há sempre muitas ONGs a trabalhar, há coordenação, há tendas… Mas as pessoas que estavam a viver em vilas estavam a viver em condições muito más. Não tinham chuveiro, não tinham água. O meu trabalho é dar o mínimo àquelas pessoas. Dar água potável, casas de banho e chuveiros, para terem as mínimas condições de higiene.”

Depois da primeira resposta de emergência, o trabalho da organização passa agora pela construção de estruturas de médio e longo prazo. Por exemplo, recentemente, o português foi responsável pela construção da primeira rede de distribuição de uma vila que nunca tinha tido água canalizada. “Isso é brutal”, comenta. “Tu vais lá, constróis aquilo e de repente as pessoas dizem ‘opá, sai água das torneiras’.” É aquilo a que Pedro chama de “engenharia express”, o “balanço entre fazer engenharia, que demora sempre algum tempo, e ao mesmo tempo ter algum resultado imediato”.

De Lisboa ao Tajiquistão para dar energia à Ásia Central rural

“Engenharia express” é talvez a melhor forma de descrever aquilo que Pedro Santos tem vindo a fazer desde que saiu da faculdade, em 2009. “Sou muito irrequieto, impaciente. Quero fazer algo tangível, que tenha resultados imediatos, é disso que gosto”, diz Pedro, hoje com 30 anos. A falta de emprego em Portugal levou-o, recém-licenciado em engenharia do ambiente, a inscrever-se num mestrado e a fazer Erasmus na Holanda. Ainda trabalhou naquele país antes de se candidatar a um estágio na Comissão Europeia. Em 12 mil candidaturas, foi um dos 12 portugueses escolhidos — e foi para um estágio na Agência de Execução para as Pequenas e Médias Empresas, onde colaborou em questões relacionadas com o financiamento de projetos ambientais.

Em 2014, numa altura em que tinha regressado a Portugal e ao surf em Cascais, a paixão de sempre, enviou o currículo para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, dizendo-se disponível para trabalhar em projetos de natureza ambiental numa organização internacional. Estava a acampar com amigos em Sagres quando recebeu uma carta do ministério a aceitar a candidatura.

Mas só depois da Comissão Europeia, quando se candidatou a um lugar na OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), é que Pedro entrou verdadeiramente na viagem pelo mundo em que a sua vida se viria a transformar. Em 2014, já depois de ter terminado o mestrado e o estágio na Comissão Europeia, e numa altura em que tinha regressado a Portugal e ao surf em Cascais, a paixão de sempre, enviou o currículo para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, dizendo-se disponível para trabalhar em projetos de natureza ambiental numa organização internacional. Estava a acampar com amigos em Sagres quando recebeu uma carta do ministério a aceitar a candidatura.

“Disseram-me que já não havia uma candidatura de Portugal há oito anos e que queriam muito que fosse para aquele trabalho. Respondi logo: ‘Bora’. É para quando? E disseram-me que tinha de começar dali a três a semanas”, recorda Pedro Santos. A ideia inicial era passar três meses em Viena, Áustria, na sede da OSCE, a maior organização regional do mundo, que se dedica a promover práticas democráticas nos seus 57 estados-membros. Foi ali que começou a interagir com o mais alto nível da esfera política internacional. Conheceu o secretário de Estado norte-americano John Kerry e esteve em reuniões diplomáticas entre os Estados Unidos e a Rússia. Nos bastidores da diplomacia mundial, entusiasmou-se com o trabalho político nas organizações internacionais.

"A única missão adequada ao meu perfil era o Tajiquistão. Há lá muita água, muitos recursos aquáticos. Disseram-me: ‘Tens meio milhão de euros para gerir como tu quiseres, para fazer infraestruturas’"

Dali, deveria seguir para a Arménia, para gerir um projeto ambiental financiado pela organização. Quando já tinha tudo pronto para seguir viagem, um problema de segurança obrigou a uma mudança de planos. “E a única missão adequada ao meu perfil era o Tajiquistão. Há lá muita água, muitos recursos aquáticos. Disseram-me: ‘Tens meio milhão de euros para gerir como tu quiseres, para fazer infraestruturas’”, recorda Pedro. Naquele ano, 2014, em que os fundos destinados para o Tajiquistão estavam destinados a projetos ambientais, o desbloqueio desses fundos já estava atrasado. Por isso, o jovem português teve de se apressar a conhecer o país e as necessidades das populações para decidir, afinal, em que é que iria aplicar o dinheiro.

Os pais foram ao Google ver onde ficava o país. “Eu já sabia mais ou menos. Só mais ou menos”, brinca. Na altura, ficou esmagado pela tarefa que tinha pela frente. “Tu sais da faculdade e pensas: 'Tenho de gastar 500 mil euros?’”

O Tajiquistão é um dos países da Ásia Central onde a OSCE tem projetos de promoção da democracia, e fá-lo em duas vertentes: por um lado, na dimensão política e diplomática, com projetos de melhoramento da legislação tajique com base nos casos de sucesso europeus; por outro lado, na dimensão ambiental e no desenvolvimento de infraestruturas básicas. Quando contou à família que ia para lá, a primeira reação foi de surpresa. Os pais foram ao Google ver onde ficava o país. “Eu já sabia mais ou menos. Só mais ou menos”, brinca. Na altura, ficou esmagado pela tarefa que tinha pela frente. “Tu sais da faculdade e pensas: ‘Tenho de gastar 500 mil euros?’”

“Por um lado estava sempre a usar gravata, a falar com ministros, a tirar notas, a respeitar as opiniões deles ao mesmo tempo que os tentava convencer a mudar certas estratégias. Às vezes é aborrecido, porque cada um tem os seus interesses. Ao mesmo tempo, tirava a gravata, tirava o blazer, tirava a camisa, metia-me num jipe e ia para o meio do Tajiquistão rural, para montanhas com 5 mil metros de altitude, a que chamam o teto do mundo, um sítio com paisagens fantásticas”, lembra.

"Conectámos à vila e graças àquilo, no final do projeto, eles conseguiram abrir uma escola e uma oficina. É fantástico ver o impacto direto de uma ação nossa. Fantástico. Se eu for lá agora, aquilo ainda lá está"

Acabou por ser o Tajiquistão rural — sobretudo as pessoas “extremamente bondosas” que conheceu — a convencê-lo definitivamente de qual era a melhor opção para investir os fundos da OSCE. “Fiquei espantado com a forma como eles conseguiam pegar em qualquer coisa e fazer um pouco de tudo. O que mais me surpreendeu foi a quantidade de mini-hídricas improvisadas que eles lá tinham. Como têm montanhas de cinco ou seis mil metros de altitude, há sempre degelo, há sempre água a derreter, sobretudo no verão. E eles pegavam nuns tratores, numas pás e naqueles alternadores dos carros e fazem uma bateria. Claro que só dá para acender para aí umas seis lâmpadas”, lembra o português, que de imediato se apercebeu do potencial energético que estava a ser desperdiçado na região.

Regressou mentalmente às aulas de hidráulica e desenhou o seu primeiro grande projeto de “engenharia express”. Escolheu cinco vilas mais necessitadas no interior do país e investiu 100 mil euros em cada uma, na construção de tanques para a recolha de água das montanhas e na instalação de geradores para produção de energia. “Conectámos à vila e graças àquilo, no final do projeto, eles conseguiram abrir uma escola e uma oficina. É fantástico ver o impacto direto de uma ação nossa. Fantástico. Se eu for lá agora, aquilo ainda lá está.”

Iraque. “Depois dos bombardeamentos, a vila era uma panqueca. Não se viam casas”

O final do projeto da energia hídrica significou também o fim do financiamento para projetos ambientais no Tajiquistão naquele ano e o regresso de Pedro Santos a casa. Decidiu voltar a Portugal e procurar emprego. Mas não conseguiu. O português que tinha mudado a vida de milhares de pessoas na Ásia Central enviou centenas de currículos para instituições portuguesas e internacionais para tentar trabalhar a partir de Portugal, mas ficou oito meses desempregado.

“Neste tempo, para ganhar dinheiro, dava umas aulas de surf para me safar, para ganhar algum dinheiro”, lembra. Após algum tempo, conseguiu um trabalho de colaboração com uma ONG de Bruxelas a partir de Lisboa, onde desenvolveu um projeto de avaliação dos Estados-membros da União Europeia sobre emissões de gases poluentes.

Já depois desse projeto, uma porta de esperança pareceu abrir-se. O Banco Mundial, uma das instituições para a qual se tinha candidato, escolheu-o para integrar o processo de recrutamento. Foram sete meses de testes e entrevistas. Mas, no final do processo, numa entrevista com os últimos quatro candidatos, ficou de fora. Começou a pensar em desistir, mas lembrou-se de uma ONG francesa que tinha conhecido no Tajiquistão, a ACTED. Enviou um currículo e recebeu uma resposta em três horas. “Temos um projeto para ti.” Foi a Paris fazer um treino de segurança, obrigatório para todos os funcionários de organizações humanitárias em zonas de conflito e, em novembro de 2016, já estava no Iraque.

O português, de 30 anos, é responsável por gerir um projeto orçamentado em cinco milhões de dólares para dar condições de saneamento aos deslocados e refugiados no Iraque (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Assim que aterrou em Erbil, no Curdistão iraquiano, Pedro foi levado para um briefing de segurança. Na altura, o Estado Islâmico ainda dominava Mossul e grande parte da planície de Nínive e o país estava em plena guerra, pelo que a segurança era a principal preocupação para as organizações não governamentais a operar no território iraquiano. A INSO (International NGO Safety Organisation, uma entidade internacional responsável por garantir a segurança dos trabalhadores humanitários em terreno de guerra) publicava mapas diários com as zonas vermelhas e laranja que todas as ONGs tinham de respeitar.

As zonas assinaladas a vermelho estavam interditas a qualquer elemento das organizações humanitárias — por exemplo, toda a zona dominada pelo Estado Islâmico era classificada como vermelha. Já às zonas laranja era possível aceder, “mas sempre numa caravana, com escolta, com dois emissores GPS por carro, com dois carros por cada elemento internacional na caravana, com um percurso estabelecido a priori e que tinha de ser cumprido à risca e sempre em contacto com um agente de segurança fora da zona laranja”, explica Pedro.

As zonas assinaladas a vermelho estavam interditas a qualquer elemento das organizações humanitárias — por exemplo, toda a zona dominada pelo Estado Islâmico era classificada como vermelha. Já às zonas laranja era possível aceder, “mas sempre numa caravana, com escolta, com dois emissores GPS por carro, com dois carros por cada elemento internacional na caravana.

A segurança é muito levada a sério nestas ONGs. E os teus pais, quando lhes explicas que vais para o Iraque, não entendem muito bem isso. Ninguém te vai mandar para uma zona de guerra. Ninguém te vai dizer: ‘Olha, vais estar ali abrigado, estão as bombas a cair e tu vais lá salvar as pessoas’”, conta o português. Mas o medo está lá. Sobretudo porque, mesmo não estando a trabalhar em zona vermelha ou laranja, tinha a zona vermelha a 15 quilómetros e a laranja a dois.

A cidade de Zummar, povoação onde existia uma estação de bombagem de água e que foi um dos primeiros locais onde Pedro trabalhou, foi das que mais sofreram com os bombardeamentos da coligação internacional que procurava derrotar o Estado Islâmico. “Durante duas semanas não pudemos ir lá porque estava constantemente a ser bombardeada. Uma semana depois de ter sido declarada segura, fomos lá e a vila era uma panqueca. Não se viam casas”, lembra.

John reconstruiu a casa, Steven e Marena vão casar. 4 anos depois, os cristãos voltam às aldeias que o Estado Islâmico destruiu

Pedro foi destacado para desenvolver e implementar um projeto em oito vilas iraquianas, a maior parte delas no norte do Curdistão, acima da cidade de Duhok. Ali já tinham chegado, desde o início da guerra civil na Síria, em 2011, milhares de refugiados. O problema agravou-se com a entrada do Estado Islâmico no Iraque e com a invasão de Mossul e da planície de Nínive, que empurrou para o norte do país milhares de iraquianos que tiveram de fugir de casa a meio da noite apenas com o que tinham no corpo. Só a região de Duhok — cidade e aldeias à volta — recebeu, em 2014, 160 mil pessoas, na sua maioria yazidis, mas também muçulmanos e cristãos. Muitos foram encaminhados para campos de refugiados e de deslocados. Mas mais ainda encontraram abrigo nas ruas das cidades e vilas — pessoas “que tiveram de fugir rapidamente e foram viver em casas deploráveis”, sem qualquer tipo de condições de saneamento e de higiene.

Pouco a pouco, Pedro Santos foi formando uma equipa internacional para trabalhar com ele na avaliação das condições em que os deslocados viviam na região e na procura de soluções de curto e médio prazo para aquelas pessoas. O projeto que lidera conta com um orçamento de cinco milhões de dólares — a maioria do dinheiro oriunda do governo do Canadá, mas também de outros governos europeus como a Suécia ou a Alemanha — e passa por melhorar, de forma transversal, as condições de saneamento e higiene das povoações que receberam milhares de residentes adicionais por causa da guerra.

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No início, porém, ainda antes de se começar a pensar em planos a longo prazo, foi preciso dar uma resposta rápida à crise em curso. Sobretudo, numa situação em que os campos de refugiados ou deslocados eram manifestamente insuficientes para receber toda a gente, foi necessário arranjar soluções e definir prioridades. “Houve muita gente que até para prisões foi viver. Eu reabilitei uma prisão do tempo do Saddam Hussein, que foi usada para acolher 120 pessoas. Tinha duas casas de banho, feitas pela UNICEF em 2016 e que eram uma porcaria. As outras ONGs que construíram não tiveram o cuidado de perguntar se as mulheres podiam usar a mesma casa de banho. Conclusão: só os homens usavam a casa de banho, e a casa de banho das mulheres era usada como armazém, e elas tinham de ir ao campo fazer as necessidades”, lembra Pedro.

O foco do engenheiro português era o saneamento, mas o seu trabalho não se limitou a construir casas de banho, chuveiros ou redes de distribuição de água. “Houve situações em que ia reabilitar as casas e via que não tinham telhado, não tinham janelas, não tinham porta de entrada. O que é que ia fazer? Não podia ir lá e dizer: ‘Estou aqui só para as casas de banho’. Claro que não. Gastei muito dinheiro a dar o mínimo. Uma porta de entrada, luzes exteriores, janelas. Quando lá cheguei, estavam -10ºC. Tenho fotografias em que se vê neve de um metro e pessoas descalças, sem sapatos”, recorda o português.

Gastei muito dinheiro a dar o mínimo. Uma porta de entrada, luzes exteriores, janelas. Quando lá cheguei, estavam -10ºC. Tenho fotografias em que se vê neve de um metro e pessoas descalças, sem sapatos”

“Um dia apareceu-me um gajo com um boné do Benfica. Era de uma milícia”

Desde que chegou ao Iraque, em novembro de 2016, Pedro Santos aprendeu uma lição: para fazer alguma coisa, “tem de ser tacto” e “perder um bocado de tempo a falar com as pessoas e a conhecê-las”. Num país em que cada região, vila ou cidade é controlada por uma das centenas de milícias armadas das várias fações religiosas e étnicas, uma das principais dificuldades é deslocar-se de um lugar para o outro sem ficar bloqueado num check-point porque se ser cristão, muçulmano, europeu ou árabe. Por isso, o elemento fundamental da operação da ACTED no Iraque é a frota de 50 carros e o conjunto de motoristas locais que colaboram com a organização.

“Eles é que falam nos check-points. Eu agora também sei falar curdo, algumas palavras que aprendi. Mas o curdo daqui [de Erbil] é diferente do curdo de Duhok, por exemplo. Comunicar é complicado, e eles depois olham para nós… Eu, como sou português, até já me safei. Uma vez estava em Bashiqa e aparece-me um gajo com um boné do Benfica. Era de uma milícia. Um boné do Benfica? E ele diz-me ‘ah, pois, gosto do Benfica e tal’. E eu disse-lhe: ‘Olha, eu sou português’. ‘Então bora, passa’. E conheci ali o gajo. A partir dali, já lhe ligava a dizer quando é que ia passar no check-point para conseguirmos passar. É preciso conhecer as pessoas e começamos a receber o retorno”, conta Pedro Santos. “E o português é muito bom nisso”, garante.

Há quase dois anos a viver no Iraque, Pedro quer voltar a casa quando o projeto estiver concluído. Desde que está no Médio Oriente, veio quatro vezes a Portugal para visitar a família e os amigos. Podia ter aproveitado os períodos de descanso para viajar por outras partes do mundo, como fizeram vários dos seus colegas internacionais — e chegou mesmo a fazê-lo algumas vezes. “Mas a certa altura dá-me prazer ir a Portugal”, explica. “É uma coisa de Portugal. Somos muito apegados ao nosso país. Relaxo lá, gosto de ir a casa, gosto de fazer surf, gosto do mar. Muitos colegas meus não têm esse apego a casa, ao país deles. Mas eu sinto isso. Quando chego a Portugal, sinto aquele ambiente familiar.”

"Os portugueses não consomem assim tantas notícias internacionais. Se calhar, não é assim tão sexy estar sempre a falar sobre a Síria ou sobre o Iraque, ou sobre o que é que se passa na Turquia"

Por isso, há de sempre voltar a Portugal, o país “fantástico” com “cerveja e comida barata” e grande qualidade de vida. Mesmo que seja “nos intervalos” entre as missões no estrangeiro. Mas há uma desilusão relativamente a Portugal que não esconde: a falta de interesse de muitos portugueses nos assuntos internacionais. “Estamos sempre a pensar no que se passa no país. É normal, gostamos do nosso país, gostamos de saber o que se passa”, reconhece Pedro Santos. Mas “os portugueses não consomem assim tantas notícias internacionais”.

“As notícias estão lá, mas tem de se procurar por elas, procurar pela secção de Mundo. Quando as pessoas estão no metro, abrem os jornais no telemóvel e veem sempre três ou quatro notícias, sempre de Portugal. O Benfica ganhou não sei o quê, o Bruno de Carvalho isto e aquilo, e pronto. Damos demasiada importância. Mas, ao mesmo tempo, também percebo que é um negócio. Os jornais têm de vender as notícias que o português consome mais. Se calhar, não é assim tão sexy estar sempre a falar sobre a Síria ou sobre o Iraque, ou sobre o que é que se passa na Turquia”, lamenta o português, que diz sentir esta realidade na pele sempre que vai a Portugal.

“Quando vou a Portugal e falo da minha situação no Iraque, das duas uma: ou vem logo o comentário ‘acordas com umas bombas a explodir’, ou então falam das mulheres de burqa e de todos aqueles estereótipos relacionados com o Iraque. Às vezes tem piada, mas se calhar à terceira ou à quarta vez que vou a Portugal já irrita.

“Quando vou a Portugal e falo da minha situação no Iraque, das duas uma: ou vem logo o comentário ‘acordas com umas bombas a explodir’, ou então falam das mulheres de burqa e de todos aqueles estereótipos relacionados com o Iraque. Às vezes tem piada, mas se calhar à terceira ou à quarta vez que vou a Portugal já irrita. Começo a falar de desenvolvimentos políticos e a da minha vida nesse país e as pessoas não estão interessadas. E a conversa depois gira à volta da vida dos meus amigos em Portugal, do que se passa ali, do Benfica, do Sporting, do Bruno de Carvalho”, comenta.

Claro que os amigos mais próximos e o núcleo familiar gostam de o ouvir falar da sua experiência, mas a reação generalizada desmotiva-o. “Não me dá tanta vontade de falar sobre o assunto”, sublinha. Prefere continuar o trabalho discreto na base humanitária de Duhok, região onde a organização com a qual colabora se prepara para abrir uma nova base — em Sinjar, onde vivem muitos yazidis, “a etnia que mais sofreu com esta perseguição”. Não que lhe interesse particularmente ajudar estes ou aqueles. “Ajudo seres humanos. Não me interessa quem são. Trabalhamos com refugiados, com deslocados, com retornados, com yazidis, com muçulmanos, com assírios, com cristãos caldeus. Quero ajudar toda a gente.”

O Observador viajou para o Iraque juntamente com outros meios de comunicação europeus a convite da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre (AIS/ACN)

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