Discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

Intervenção do Presidente da República no 5 de Outubro de 2020

“A recuperação económica durará anos, e mais anos mesmo se for uma oportunidade desperdiçada para mudar instituições e comportamentos e antecipar de modo irreversível o nosso futuro. Essa mudança só valerá realmente a pena se não servir só alguns portugueses privilegiados, mas permitir que se ultrapassem pobreza, desigualdade, injustiça social.”

Num discurso muito limado, sem recados claros dirigidos ao Governo ou sobre os desafios políticos que aí vêm, esta passagem foi o mais longe que Marcelo Rebelo de Sousa se permitiu ir quanto às escolhas que o país terá de fazer em vésperas de receber milhares de milhões de euros em fundos comunitários. O Presidente da República, que tem insistido na necessidade de um “debate amplo” sobre as reformas necessárias e sobre o carácter “único” e “excecional” deste apoio, aproveitou o 5 de Outubro para reforçar o apelo: se não forem feitas as escolhas certas, Portugal desperdiçará uma oportunidade irrepetível de se regenerar. Sem nunca ser totalmente explícito, Marcelo pediu uma mudança nas “instituições” e nos “comportamentos” para relançar o elevador social, uma estratégia que seja capaz de mitigar a “pobreza, a desigualdade e a injustiça”, e que não se limite a promover apenas “alguns portugueses privilegiados”. Era uma referência clara ao padrão (reconhecido por todos, incluindo por António Costa) que tem dominado os últimos anos de aplicação de fundos europeus. É preciso fazer diferente e é preciso fazer melhor, notou Marcelo.

“O que nos diz este 5 de Outubro é que temos de continuar a resistir, a prevenir, a cuidar, a inovar, a agir em liberdade, a saber compatibilizar a diversidade com a convergência no essencial, a sobrepor o interesse coletivo aos meros interesses pessoais. Temos de continuar a resistir ao medo que trava a ação, ao facilitismo que agrava a situação, à tentação de encontrar bodes expiatórios a uma luta que é de todos e não só de alguns.”

Foi a primeira vez que o Presidente da República falou na necessidade de “sobrepor o interesse coletivo aos meros interesses pessoais” — seria esta, de resto, a grande tónica da intervenção do Chefe de Estado. Uma mensagem que pode ser vista como uma espécie de aviso de larga escala: para o Governo, claro, que terá de encontrar um equilíbrio sensível entre a limitação das liberdades e a necessidade de regressar à normalidade possível, sem nunca ficar toldado pelo medo ou iludido face à real gravidade do problema; mas também para a oposição, que poderá ter a tentação de encontrar na crise sanitária, económica e social o pretexto ideal para fragilizar o Governo em funções. “A luta é de todos e não só de alguns”, frisou Marcelo. Repetiria essa ideia mais tarde.

“Temos de continuar a agir em liberdade e vamos continuar a agir em liberdade porque não queremos ditaduras em Portugal. E sabemos que ditaduras por esse mundo fora não resolveram esta crise e, porventura, nem sequer a assumiram a tempo e com transparência. E sempre em conformidade com a ética republicana que repudia compadrios, clientelas, corrupções”.

Uma passagem do discurso de Marcelo que pode ser dividida em duas partes. O Presidente falou de ditaduras, como poderia falar de líderes populistas-nacionalistas, como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, que desvalorizaram e esconderam os riscos da pandemia, para recordar que os tempos são de grande complexidade e não de respostas fáceis e simplistas. Aqueles que as procuram, sublinhou, estão condenados a falhar. Em vésperas de eleições presidenciais, seria esta uma referência velada a André Ventura? Só Marcelo o saberá. A segunda parte, no entanto, pode ser entendida como um reparo ao establishment: é a falência das instituições democráticas, são os casos de “compadrios, clientelas e corrupções”, é o desrespeito pela “ética republicana”, que servem de combustível ao populismo. Num momento em que se acumulam sinais contraditórios sobre o escrutínio indispensável à aplicação dos fundos europeus — a agilização das regras de contratação pública e a não recondução do presidente do Tribunal de Contas, por exemplo –, Marcelo quis pôr o pé na porta para avisar a classe política, em particular o Governo: está nas mãos de António Costa, pelo exemplo que deve dar, a missão de travar o crescimento dos que querem pôr em causa a democracia liberal.

“Temos de continuar a compatibilizar a diversidade e o pluralismo com a unidade no essencial. Há quem prefira soluções para o estado de exceção sanitária que sacrificariam drasticamente economia e sociedade. Há quem prefira soluções para a economia e sociedade. que aumentariam riscos para a vida e saúde. Há quem proponha lados e modos diferentes. Esta diversidade é democrática e é, por isso, respeitável. Procuremos respeitá-la buscando a convergência no essencial, evitando quer o excesso de dramatização, quer o excesso de desdramatização dos dois lados. (…) Temos de continuar a sobrepor o interesse coletivo aos meros interesses individuais, a solidariedade ao egoísmo, a convergência que faz a força – convergência em liberdade não unicidade imposta – ao salve-se quem puder (…) Estes desafios maiores em que estamos envolvidos não são de uma pessoa, de uma classe, de uma corporação, de um partido, de um sindicato, de um patronato, de uma autarquia, de uma região autónoma, de um Governo, de um primeiro-ministro, de uma Assembleia da República, ou de um Presidente da República. São de todos eles, sem dúvida, a começar nos mais responsáveis. Mas são de todos os portugueses. Que ninguém pense que está dispensado de comparecer ou de lutar.”

Marcelo recuperou mais uma vez a urgência de garantir a diversidade democrática sem colocar em causa o “interesse coletivo”. É um apelo à oposição, em particular ao PSD, para que venha a jogo e reafirme uma alternativa ao Governo socialista — como há muito vem pedindo o Presidente da República –, e a todos os que estão envolvidos no combate partidário. Marcelo nunca usou a expressão “crise política”, mas a discussão que tem dominado o Orçamento do Estado, a dramatização à esquerda, em particular aquela produzida por António Costa e por outras vozes socialistas, e a saída de cena do PSD, que aproveitou o brinde do primeiro-ministro para se pôr de fora do processo (“No dia em que a subsistência deste Governo depender de um acordo com o PSD, este Governo acabou”, disse Costa ao Expresso), são sinais preocupantes para o Presidente da República. É preciso saber estar à altura dos desafios, convergir mesmo que divergindo, exigiu Marcelo.

“O 5 de Outubro veio também ele lembrar que é a soberania popular a fonte da legitimidade dos que mandam e que não há egoísmos particulares que construam uma República, que cimentem uma democracia, que deem força a uma liberdade, que façam viver uma pátria. Viva à República, viva à democracia, viva à liberdade, viva Portugal”.

Foi esta a forma que o Presidente de República escolheu para encerrar aquele que foi o seu último discurso de 5 de Outubro antes das próximas eleições presidenciais. Marcelo tem alimentado o tabu, mas dificilmente deixará de entrar na corrida pela recondução. Até lá, sabe que estará limitado nas suas funções e impedido de dissolver a Assembleia da República. O que torna todas as referências à necessidade de pôr o interesse coletivo acima de qualquer “egoísmo particular”. Marcelo sabe que o cimento que cola a ‘geringonça’ é frágil e que, à direita, a alternativa está longe de ser sólida ou sequer clara. “A soberania popular é a fonte da legitimidade dos que mandam”, recordou Marcelo. Nas entrelinhas: é aos portugueses que os partidos que estão no centro das decisões respondem; se falharem ao país, serão eles os penalizados.