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ANA MARTINGO/OBSERVADOR

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Perda gestacional. “Amar um filho é querer o melhor para ele, mesmo que o melhor para ele seja não o ter”

Apesar de comum, pouco se fala sobre perda gestacional, o que torna tudo ainda mais difícil para quem passa por ela. Para pôr fim ao tabu e ajudar outras, 3 mulheres falam sobre os bebés que perderam.

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Um em cada quatro. A estatística é conhecida mas, como o tabu subsiste, os casais que perdem bebés durante a gestação — acontece numa em cada quatro gravidezes, 25% dos fetos não sobrevive — acabam invariavelmente a sentir-se sós, muitas vezes culpados e quase sempre injustiçados, com o “porquê nós?” a assomar à mente e à boca: se ninguém fala do assunto só pode ser porque ele não existe.

Existe. E foi exatamente por isso que se convencionou que, pelo menos até à ecografia das 12 semanas, não se revelam gravidezes, não vá alguma coisa correr mal e depois o assunto vir à baila em conversas no trabalho ou em encontros fortuitos no supermercado.

Como se na realidade fizesse qualquer diferença ou doesse menos a quem passa por isso, asseguraram as três mulheres que aceitaram falar ao Observador sobre os bebés que não chegaram a ter, todas com o mesmo objetivo: quebrar a regra e falar sobre o assunto, mesmo que entre lágrimas, para ajudar com o seu exemplo quem passe pelo mesmo.

Nathalie Marques perdeu o seu bebé às 13 semanas, Susana Vidigal às 24 e Patrícia Silva às 25.  A verdade é que, apesar de serem muito mais frequentes até ao fim do primeiro trimestre, explica Inês Carvalho, médica geneticista na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, as perdas gestacionais também acontecem depois disso.

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“Já todos ouvimos falar de casais que chegam às 37 ou às 38 semanas e de repente o coração do bebé pára. Isso é uma morte fetal tardia. A partir das 13 semanas o risco de isto acontecer, sem haver intervenção, baixa muito, para os 5%, mas continua a existir”, contabiliza a especialista.

“Ter um bebé saudável, no fundo, é uma sorte. É imaginar que de uma célula que se forma depois de haver a fecundação, se vão multiplicar e dividir milhões que depois se vão diferenciar em cada órgão e tecido. Ora em todo este processo de divisão e multiplicação celular há tanta coisa que pode correr mal que efetivamente quando corre bem é um milagre da natureza.”
Inês Carvalho, médica geneticista

“Estima-se que uma em cada quatro gravidezes não chegue a termo. Mas nós, na genética, achamos que até 60% das gestações não evoluem, ou seja, são perdas. Isto já inclui aquilo a que chamamos os microabortos, que são perdas gestacionais extremamente precoces; muitas vezes a mulher dá por um atraso no seu período menstrual e não percebe sequer, quando ele chega, que possa ter sofrido um aborto”, explica Inês Carvalho.

“Ter um bebé saudável, no fundo, é uma sorte. É imaginar que de uma célula que se forma depois de haver a fecundação, se vão multiplicar e dividir milhões que depois se vão diferenciar em cada órgão e tecido. Ora em todo este processo de divisão e multiplicação celular há tanta coisa que pode correr mal que efetivamente quando corre bem é um milagre da natureza.”

A normalização social da perda gestacional por Michelle Obama, Beyoncé e Chrissy Teigen

Porque também elas se viram sozinhas no momento em que o milagre não se deu, nos últimos anos várias figuras públicas têm partilhado os seus depoimentos sobre as respetivas perdas. Michelle Obama contou na sua biografia como há mais de duas décadas se sentiu “só”, “perdida” e “devastada” depois de ter sofrido um aborto espontâneo e, de caminho, abordou outro dos grandes tabus femininos e revelou como, com o marido, Barack, recorreu à fertilização in vitro (FIV) para fazer nascer Sasha e Malia, as filhas hoje com 19 e 22 anos. “Senti que tinha falhado. Porque não sabia quão comum era a perda gestacional, porque não falamos sobre isso”, disse a ex-primeira-dama americana em entrevista à ABC.

“Fechamo-nos na nossa dor, a pensar que temos alguma coisa de errado. Esta é uma das razões por que acho importante falar com as mães jovens sobre o facto de os abortos espontâneos acontecerem e de o relógio biológico ser real”, continuou. “Porque a produção de óvulos é limitada, eu tinha 34 ou 35 anos, e tivemos de fazer FIV. Acho que é uma das piores coisas que nós, mulheres, fazemos umas às outras, não partilharmos a verdade sobre os nossos corpos e a forma como funcionam ou não.”

“Fechamo-nos na nossa dor, a pensar que temos alguma coisa de errado. Esta é uma das razões por que acho importante falar com as mães jovens sobre o facto de os abortos espontâneos acontecerem e de o relógio biológico ser real. Acho que é uma das piores coisas que nós, mulheres, fazemos umas às outras, não partilharmos a verdade sobre os nossos corpos e a forma como funcionam ou não.”
Michelle Obama, em entrevista à ABC

Mais recentemente, em entrevista à edição britânica da revista Elle, Beyoncé revelou, de passagem, que antes de conseguir engravidar da filha, agora com 8 anos, perdeu vários bebés — e, apesar de não ter dado mais detalhes, foi notícia em todo o mundo, muito pouco habituado a revelações do género, ainda para mais da parte de uma das maiores e mais reservadas celebridades internacionais.

Uns meses depois, no início de outubro, a modelo Chrissy Teigen deixou pouco por contar. Além de ter partilhado nas redes sociais a morte do seu bebé, forçado a nascer com apenas 20 semanas depois de um descolamento parcial da placenta, publicou fotografias captadas no hospital onde foi internada — incluindo uma em que aparece ao lado do marido, o cantor John Legend, e tem o bebé (Jack foi como decidiram chamar-lhe) já sem vida ao colo.

Ver esta publicação no Instagram

We are shocked and in the kind of deep pain you only hear about, the kind of pain we’ve never felt before. We were never able to stop the bleeding and give our baby the fluids he needed, despite bags and bags of blood transfusions. It just wasn’t enough. . . We never decide on our babies’ names until the last possible moment after they’re born, just before we leave the hospital. But we, for some reason, had started to call this little guy in my belly Jack. So he will always be Jack to us. Jack worked so hard to be a part of our little family, and he will be, forever. . . To our Jack - I’m so sorry that the first few moments of your life were met with so many complications, that we couldn’t give you the home you needed to survive. We will always love you. . . Thank you to everyone who has been sending us positive energy, thoughts and prayers. We feel all of your love and truly appreciate you. . . We are so grateful for the life we have, for our wonderful babies Luna and Miles, for all the amazing things we’ve been able to experience. But everyday can’t be full of sunshine. On this darkest of days, we will grieve, we will cry our eyes out. But we will hug and love each other harder and get through it.

Uma publicação partilhada por chrissy teigen (@chrissyteigen) a

“Estamos em choque e a passar por aquele tipo de dor profunda de que só se ouve falar, o tipo de dor que nunca sentimos antes. Não fomos capazes de parar a hemorragia e de dar ao nosso bebé os fluidos de que ele precisava, apesar de sacos e sacos de transfusões de sangue. Não foi suficiente”, escreveu no Instagram e no Twitter, de onde viria a desaparecer quase até ao início de novembro — além de modelo e de autora de livros de receitas, Chrissy Teigen é considerada, passe a redundância, uma das mais influentes influencers do mundo, com 33 milhões de seguidores no Instagram e 13,4 no Twitter, onde desde 2009 já postou mais de 13.500 vezes.

Após 26 dias de luto e silêncio, a modelo reapareceu na plataforma Medium, onde publicou um texto a recordar a experiência de perda por que passou e a justificar por que insistiu com a mãe e com o marido para que a fotografassem naquele momento tão doloroso e privado.

“Não posso expressar quão pouco que me importa o facto de odiarem as fotografias. Quão pouco me importa que, se fossem vocês, não o tivessem feito. Estas fotos são só para as pessoas que precisam delas. O que os outros pensam não me importa.”
Chrissy Teigan, em texto publicado na plataforma Medium

“Ele odiou. Eu percebi. Não fez sentido para ele na altura. Mas eu sabia que ia precisar de me recordar daquele momento para sempre, da mesma maneira que precisei de me lembrar de como nos beijámos ao fundo do corredor, da mesma maneira que preciso de me lembrar das nossas lágrimas de felicidade pela Luna e pelo Miles [os filhos mais velhos, de 4 e 2 anos]. E tinha a certeza de que ia precisar de partilhar esta história”, escreveu para logo a seguir rechaçar os críticos. “Não posso expressar quão pouco que me importa o facto de odiarem as fotografias. Quão pouco me importa que, se fossem vocês, não o tivessem feito”, garantiu. A seguir explicou: “Estas fotos são só para as pessoas que precisam delas. O que os outros pensam não me importa”.

“Pais Coragem”, um grupo para ajudar a lidar com a perda e fazer o luto

Há 13 anos na Maternidade Alfredo da Costa, a maior unidade de assistência médica perinatal e da saúde da mulher em Portugal, e há 8 anos a trabalhar no serviço de diagnóstico pré-natal, a enfermeira Leonor Gonçalves sabe quão importante é a normalização social da perda gestacional — “Continua a ser um tabu, quem passa por isso partilha com muito poucas pessoas. Primeiro porque se sentem incompreendidos na dor. Depois porque aquilo que as pessoas dizem, na maior parte das vezes, não só não ajuda como provoca revolta”, explica ao Observador.

No serviço onde trabalha, na maternidade referência no País, último recurso para os casos que noutros hospitais não têm solução, os 25% transformam-se em 100%, todos os dias da semana. “Esse praticamente é o meu trabalho: lidar todos os dias com mães que têm bebés com malformações fetais e que acabam, em grande parte, por culminar numa interrupção médica de gravidez. Existem outras situações que acontecem com alguma frequência no serviço, como a morte fetal e os abortos espontâneos”, revela.

“Esse praticamente é o meu trabalho: lidar todos os dias com mães que têm bebés com malformações fetais e que acabam, em grande parte, por culminar numa interrupção médica de gravidez. Existem outras situações que acontecem com alguma frequência no serviço, como a morte fetal e os abortos espontâneos.”
Leonor Gonçalves, enfermeira

Foi por se ter apercebido, pela conversa com essas mães e pais em sofrimento, que as consultas de psicologia disponibilizadas não chegavam, que resolveu criar um grupo de ajuda, que no final de outubro reuniu pela primeira vez. “O objetivo é acolher estes casais na sua dor, face ao luto gestacional, e oferecer-lhes um espaço onde possam partilhar, em grupo. Percebi que a maior parte dos casais sentia a necessidade de estar e de falar com pessoas que estavam a viver o mesmo processo. Paralelamente, vamos também oferecer-lhes estratégias e ferramentas na área do desenvolvimento humano e pessoal para que se tornem mais fortes para lidar com isto”, explica.

Para além de Leonor Gonçalves, enfermeira e hipnoterapeuta, fazem parte do projeto “Pais Coragem” outra enfermeira, uma psicopedagoga clínica — que também perdeu um bebé e é, aliás, uma das três mulheres que contam a sua experiência ao Observador —, e um coach na área do desenvolvimento pessoal.

O projeto Pais Coragem tem como missão acolher e apoiar os pais que perdem o seu filho durante a gravidez. Oferece aos...

Publicado por Pais Coragem em Segunda-feira, 12 de outubro de 2020

As reuniões, que decorrem em Lisboa e têm a duração de três horas, de duas em duas semanas, são gratuitas e, para já, estão a funcionar com cinco casais. “Quase todos passaram pela MAC, mas o objetivo é chegarmos ao maior número de pessoas que precisem e se queiram juntar a nós”, diz Leonor Gonçalves, que prevê que o acompanhamento dado a cada grupo possa prolongar-se entre quatro a seis meses, para depois dar lugar aos pais seguintes. “O objetivo passa por fazê-las entender que raiva, desesperança, culpa, tristeza, o que for, são todas sensações que fazem parte do processo natural do luto; e permitir também que tenham esse espaço para libertar pensamentos, emoções e sentimentos.”

Apesar de cada pessoa ter a sua forma de lidar com esta perda, explica a enfermeira, há reações mais ou menos tipificadas: há quem se deixe consumir pelo sentimento de culpa — sobretudo as mulheres, que têm tendência a tentar justificar o que aconteceu com os seus próprios atos, ao longo da gravidez ou até no passado —; há quem perca toda a autoestima e deixe de acreditar numa futura gravidez levada a termo; e depois há também quem dê tudo por tudo para desvalorizar e atirar o assunto para debaixo do tapete.

Birth of twins by caesarean section

"A partir do momento em que se trata de um feto, a mulher vai ter sempre de passar por um processo que, em termos de fisiologia, é idêntico a um parto", explica a enfermeira Leonor Gonçalves

BSIP/Universal Images Group via

“Há pessoas que ficam extremamente aborrecidas quando lhes falamos em bebé, mesmo que já fossem dez semanas de gravidez. Tentam rejeitar, dizem que não querem pensar ou falar sobre o assunto, que assim é melhor. Mas… não é. E com o tempo vem-se sempre a verificar que não é. As coisas não são trabalhadas nem arrumadas no seu devido lugar, e depois aquilo fica ali tão baralhado mentalmente que ficam com mais medos e também são mais propensas a depressão, porque não vivem o luto e o luto tem de ser vivido”, alerta Leonor Gonçalves.

A estratégia de Chrissy Teigen para lidar com a perda do seu bebé às 20 semanas vem afinal nos livros, explica a enfermeira, citando vários estudos sobre o assunto: para além de ser essencial dar nome ao bebé, outro ato importante será o da criação de memórias. “Há quem tire fotografias; há quem escreva cartas de amor; e há quem faça despedidas em locais especiais e liberte balões. Também há casais que fazem impressões das mãos e dos pés do bebé e depois fazem tatuagens… Tem a ver com a questão da aceitação: nós não somos responsáveis, nem controlamos tudo o que nos acontece, a diferença está na forma como reagimos ao que nos acontece e ao que sentimos.”

“Há quem tire fotografias; há quem escreva cartas de amor; e há quem faça despedidas em locais especiais e liberte balões. Também há casais que fazem impressões das mãos e dos pés do bebé e depois fazem tatuagens…”
Leonor Gonçalves, enfermeira

Apesar de as mulheres serem quem vive fisicamente todo o processo, tendo na maior parte das vezes de passar pela traumática experiência de fazer nascer os seus bebés já sem vida, faz questão de frisar Leonor Gonçalves, a atenção aos homens — aos pais — é outro dos aspetos que tem de ser melhorado quando se fala de perda gestacional, até porque o sofrimento psicológico, no fundo, é o mesmo.

“O homem é o suporte e o pilar que tem de transmitir força à mulher, portanto não se pode desmanchar. Se não estivermos atentos a isto e não promovermos espaços para que a figura masculina se abra e diga o que está a sentir, acaba por ficar ao canto em todo o processo. Infelizmente, mesmo ao nível dos profissionais de saúde, o homem ainda é considerado um elemento secundário.”

A genética ajuda mas na maior parte dos casos as perdas não chegam a ser explicadas

Por muito que para algumas pessoas possa fazer toda a diferença — Patrícia Silva, por exemplo, só conseguiu começar a sarar cinco meses depois, quando recebeu o resultado do estudo cromossómico feito aos dois bebés que perdeu —, grande parte das perdas gestacionais nunca chegam a ser explicadas.

“Ainda há pouco tempo tivemos um caso no serviço de uma mulher que teve onze abortos, e depois teve um bebé que nasceu às 28 semanas e faleceu passados uns dias. Está a ver a história obstétrica desta mulher… Este bebé que faleceu tinha uma restrição de crescimento fetal, mas não se percebe por que razão é que esta mulher teve onze abortos. Às vezes há histórias assim”, diz a enfermeira Leonor Gonçalves.

“Quando o coração para de bater é muito raro conseguirmos chegar a um diagnóstico ou a um porquê. Às vezes conseguimos perceber que existiam nós no cordão umbilical, que comprometeram a oxigenação do bebé, ou detetamos alterações graves na placenta, mas é uma pequena percentagem."
Inês Carvalho, médica geneticista

A geneticista Inês Carvalho assina por baixo: “Quando o coração pára de bater é muito raro conseguirmos chegar a um diagnóstico ou a um porquê. Às vezes conseguimos perceber que existiam nós no cordão umbilical, que comprometeram a oxigenação do bebé, ou detetamos alterações graves na placenta, mas é uma pequena percentagem”.

Ainda assim, explica, há vários tipos de perda onde a genética pode ter um papel fundamental, no estudo cromossómico do casal e na pesquisa de alterações genéticas na mãe, que de alguma forma possam dificultar a implantação do embrião ou levar à morte do feto. “Cerca de 1% das mulheres tem abortos espontâneos recorrentes — regra geral, mais de três, sem causa aparente e geralmente até às 12 semanas —; depois temos as alterações cromossómicas, que são responsáveis por mais de 50% das perdas — a trissomia 13 e a trissomia 18, mais do que a 21, são as principais alterações que podem levar a uma perda fetal; são geralmente menos compatíveis com a vida, ou têm uma experiência média de vida extra uterina muito, muito curta”, enumera a especialista.

MECHELEN ILLUSTRATIONS PREGNANCY GYNAECOLOGIST

A partir das 13 semanas de gestação o risco de perda gestacional baixa para 5%

AFP via Getty Images

Depois, há ainda outro tipo de causa cujo estudo por parte da genética pode ser determinante para evitar novas perdas gestacionais ou pelo menos para perceber por que motivos não evoluiu a gravidez ou foram detetados problemas que levaram à sua interrupção — de acordo com a legislação portuguesa, a interrupção médica da gravidez (IMG) é permitida, sempre mediante aprovação de uma comissão de ética, até ao final da gravidez em casos de inviabilidade do feto ou de risco de vida para a mãe e até às 24 semanas de gestação em caso de doença ou malformação grave.

Muito mais raras — em média em cerca de 3% das gravidezes —, as malformações fetais costumam ser despistadas a mais de meio da gestação, na ecografia morfológica das 21 semanas, e são o terceiro grande grupo responsável pelas perdas gestacionais.

"Muitas vezes há alterações fetais que, em termos obstétricos, até nem dão um mau prognóstico ao bebé mas que se tiverem uma alteração genética por trás podem efetivamente implicar outras situações, como, por exemplo, um atraso grave do desenvolvimento psico-motor. Isto é aquilo que mais preocupa os pais porque não é detetável ecograficamente, a não ser que haja uma alteração grave do sistema nervoso central.”
Inês Carvalho, médica geneticista

“É depois desta ecografia que nós entramos e cada vez com mais respostas aos casais. Imaginemos que todas as cromossomopatias de que falámos no primeiro trimestre foram descartadas, ou tiveram um risco baixo, o que permitiu avançar com a gravidez sem fazer mais estudos, mas depois chegamos à morfológica e temos uma malformação — ou cardíaca, ou renal, do sistema nervoso central, que são as mais frequentes. Nós temos um papel fundamental para perceber por que motivos é que isso acontece”, explica a especialista da MAC.

“Muitas vezes há alterações fetais que, em termos obstétricos, até nem dão um mau prognóstico ao bebé mas que se tiverem uma alteração genética por detrás podem efetivamente implicar outras situações, como, por exemplo, um atraso grave do desenvolvimento psico-motor. Isto é aquilo que mais preocupa os pais porque não é detetável ecograficamente, a não ser que haja uma alteração grave do sistema nervoso central”, exemplifica Inês Carvalho.

Nem todas as três mulheres que aceitaram contar as suas histórias ao Observador tinham estas preocupações, mas todas elas passaram por este tipo de consulta e, a dada altura das respetivas gravidezes, receberam as notícias que nenhuma mãe ou pai quer ouvir. Os testemunhos de Nathalie, Patrícia e Susana são impressionantes e podem até ferir a suscetibilidade dos leitores mais sensíveis mas não deixam por isso de ser necessários, não apenas para quem tenha passado, esteja ou venha a passar por uma situação de perda, mas também para ajudar à tal normalização social em curso.

“Não tenho dúvidas de que sou mãe. Independentemente de não ter o Romeu comigo, eu sou mãe e vou continuar sempre a ser”

Susana Vidigal
44 anos
Psicopedagoga clínica
Évora

O Romeu não foi planeado. Tinha a ideia de que com a minha idade não ia ser fácil mas a partir do momento em que fiz o descanso da pílula fiquei automaticamente grávida. Foi tão rápido que até fiquei um bocadinho chocada quando soube e entrei num processo um pouco de negação, achava que ainda tinha uma série de coisas para fazer até querer ser mãe…

Até à primeira consulta, achei sempre que não ia ser uma gravidez evolutiva. O meu coração pedia muito mas a minha racionalidade não estava a deixar-me aceitar o que estava a acontecer. Depois a minha obstetra, a Dra. Susana Sarzedas, confirmou que estava tudo bem e eu fui envolvida numa bolha enorme de amor pela nossa família. Fui contagiada pela felicidade dos meus sogros, do meu pai, da minha irmã, e a partir daí não tive dúvidas nenhumas. Tive a certeza de que era aquilo que queria.

Já gostávamos de Romeu: era um nome pouco comum, pequeno e já tínhamos falado nele antes, quando conversávamos sobre a possibilidade de termos um filho. No dia da ecografia das 12 semanas ficámos logo a saber o sexo. Na consulta seguinte, quando a obstetra nos perguntou como se ia chamar o bebé, olhámos um para o outro e dissemos ao mesmo tempo: “Romeu”. E a médica respondeu: “É o primeiro Romeu que vou fazer nascer”. E nós ainda ficámos mais felizes, por ser o primeiro Romeu para a Dra. Susana… Infelizmente não foi.

"Confirmou que havia uma suspeita de uma síndrome grave degenerativa, que evolui ao longo da gestação e que nas primeiras semanas não é detetável. É uma síndrome que acaba por afetar todo o sistema neuromuscular e que provoca uma grande incapacidade a todos os níveis — exceto mental."
Susana Vidigal, psicopedagoga clínica

Talvez por trabalhar na área da doença e da deficiência mental sempre tive muitos receios e sempre senti que alguma coisa não estava bem com o meu filho. Apesar de não ter indicação para isso, já tinha 41 anos, portanto fiz questão de fazer todos os exames mais importantes.

Fiz a amniocentese, a translucência da nuca, o teste de Array e a ecografia morfológica — e tudo corria normalmente. Na morfológica houve apenas um sinal, que não foi muito valorizado na altura, com as mãos e os dedos do meu filho, que pareciam não ter movimento. Mas até à consulta de reavaliação da ecografia morfológica, com a minha obstetra, que estava de férias na altura, ficámos descansados.

Era uma data péssima para mim: perdi a minha mãe aos 12 anos, precisamente no dia 11 de dezembro; quando a consulta foi agendada para esse dia tive logo um mau pressentimento. Foi nesse dia que se confirmou que havia algo de errado com o meu filho.

Já estava de 23 semanas, estava no limite — se alguma coisa corresse mesmo mal — para poder fazer a interrupção [médica] da gravidez, que é permitida até às 24 semanas. Era acompanhada na CUF Descobertas e fui logo encaminhada para uma consulta de genética (que na altura não ajudou grande coisa) e para o Dr. Álvaro [Cohen], da Maternidade Alfredo da Costa, para fazer uma avaliação mais específica.

Foi ele que confirmou que havia uma suspeita de uma síndrome grave degenerativa, que evolui ao longo da gestação e que nas primeiras semanas não é detetável. É uma síndrome que acaba por afetar todo o sistema neuromuscular e que provoca uma grande incapacidade a todos os níveis — exceto mental.

Até esse momento mantive sempre uma grande esperança de que fosse uma situação simples, que o Romeu fosse mais preguiçoso, quis acreditar em imensas coisas, mas nessa consulta a esperança terminou.

"Independentemente de eu saber que o meu filho já não estava com vida, foi um parto e eu quis conhecer o Romeu — o pai não conseguiu. Estava esgotada, muito cansada, mas não tive dor. Só em termos psicológicos: esta perda é das dores mais intensas, das que provocam mais sofrimento. Nós sabemos que vamos dar à luz um filho sem vida. Costumo dizer que foi o ato de amor mais difícil da minha vida, mas considero que foi um ato de amor."
Susana Vidigal, psicopedagoga clínica

Fomos encaminhados para a MAC, para dar início a um possível processo de interrupção, que obviamente teve de ir à comissão de ética. O Dr. Álvaro não nos deixou margem para dúvidas, efetivamente não iria existir nenhuma qualidade de vida do nosso filho. O que houve foi uma ambivalência enorme de sentimentos e emoções… Sentíamo-nos culpados, porque achávamos que íamos matar o nosso filho. Tanto eu como o pai do Romeu, que teve ainda mais dificuldade em lidar com esta situação.

Fiz a interrupção às 24 semanas e três dias, já depois do limite legal, porque o processo foi despoletado anteriormente. E se nessa altura já não havia esperança, só consegui aceitar e ter a certeza de que o Romeu tinha mesmo aquela síndrome rara — artrogripose é como se chama —, quando recebemos o resultado da autópsia, três meses depois. Até aí tive sempre dúvidas…

O Romeu nasceu muito perto do Natal, às 17h30 do dia 23 de dezembro de 2017. Foi um parto difícil, fiz todos os ciclos de medicação oral e estive três dias em trabalho de parto, num quarto mais reservado que existe na Maternidade para estas situações, mas tive de circular por toda a enfermaria — precisava de caminhar, para acelerar o processo.

Ao terceiro dia, pela manhã, a equipa que entrou disse que daquele dia não passava. E a partir do momento em que comecei a receber oxitocina através de intravenosa o processo acelerou.

Susana Vidigal escreveu uma carta ao filho, que depois colocou numa garrafa e atirou ao mar

Só queria que aquele processo de expulsão passasse o mais depressa possível. Não gosto de lhe chamar expulsão, para mim foi um nascimento. Independentemente de eu saber que o meu filho já não estava com vida, foi um parto e eu quis conhecer o Romeu — o pai não conseguiu. Estava esgotada, muito cansada, mas não tive dor. Só em termos psicológicos: esta perda é das dores mais intensas, das que provocam mais sofrimento. Nós sabemos que vamos dar à luz um filho sem vida. Costumo dizer que foi o ato de amor mais difícil da minha vida, mas considero que foi um ato de amor.

O processo de luto não tem fim. Aceitamos a perda e a dor, arranjamos estratégias e ferramentas, mas nunca ultrapassamos uma coisa destas. E as datas causam-nos um grande sofrimento: o dia do nascimento, a data prevista para o parto…

Reservo sempre o dia 23 de dezembro para mim, nunca vou trabalhar, e vou sempre fazer uma coisa diferente, passear a um sítio novo, que me transmita sensações boas — por mim e pelo Romeu. No dia 11 de abril, que era o dia em que o Romeu devia ter nascido, em 2018, também tento sempre fazer qualquer coisa.

Quando a minha mãe morreu decidi que iria viver tudo aquilo que ela não pôde viver, e assumi essa vontade com a perda do meu filho também. Vou viver, vou viver tudo o que eles não tiveram a possibilidade de viver, e o que eu mais quero é que a minha mãe e o meu filho tenham o maior orgulho em mim.

"Acho que o pai do Romeu não conseguiu lidar com a minha tristeza, que se prolongou. Não tive um quadro depressivo, tive um quadro de tristeza com sintomatologia depressiva, nunca necessitei de fazer medicação, mas sou uma pessoa de vida, de sorrir, e ele não soube lidar com isso. Como ele costuma dizer, perdemos um filho e perdemo-nos um do outro."
Susana Vidigal, psicopedagoga clínica

Não foi fácil chegar aqui. Tive respeito por mim, aceitei a minha tristeza. Tive necessidade muitas vezes de estar sozinha, fora de casa. Um dos momentos mais dolorosos é a chegada a casa. Adorava a minha casa, era o meu refúgio, mas tivemos muita dificuldade em estar lá porque faltava o Romeu. O vazio era enorme. Saía todos os dias e só regressava à noite, para tentar descansar. Não conseguia dormir. Só seis meses depois do processo de interrupção e de fazer uma viagem, sozinha, para fora do País, é que consegui encontrar-me e voltar a dormir.

Acho que o pai do Romeu não conseguiu lidar com a minha tristeza, que se prolongou. Não tive um quadro depressivo, tive um quadro de tristeza com sintomatologia depressiva, nunca necessitei de fazer medicação, mas sou uma pessoa de vida, de sorrir, e ele não soube lidar com isso. Como ele costuma dizer, perdemos um filho e perdemo-nos um do outro. Temos uma boa relação, de respeito por tudo o que vivemos e pelo nosso filho, mas já não estamos juntos há cerca de dois anos.

Não tenho dúvidas de que sou mãe. Independentemente de não ter o Romeu comigo, eu sou mãe e vou continuar sempre a ser. Para mim uma vida que começa nunca termina e o Romeu está vivo em mim. Passou-me pela cabeça ter outro filho mas, como já não estou com o pai do Romeu e a idade também já não joga a favor, deixei de pensar nisso. Até porque de uma coisa tenho a certeza: um filho não substitui outro.

“Quando me fizeram a ecografia não precisaram de me dizer nada, porque eu já sabia. Tinha perdido os dois”

Patrícia Silva
33 anos
Administrativa
Aveiro

Tinha tonturas, que associei sempre ao stress, foi por isso que fui a uma consulta. Não estava a contar, não tinha sido uma gravidez planeada e muito menos podia supor que iria ter gémeos. Tenho dois filhos, o mais novo tem 4, o mais velho faz hoje 8 anos. Estava de oito semanas quando soube que estava grávida pela terceira vez e que eram dois meninos. Nasceram no dia 1 de abril deste ano, portanto soube que os tinha perdido a 31 de março. Faleceram precisamente no dia em que faziam 25 semanas.

Soube logo que era uma gravidez muito complicada: a partir do momento em que nos dizem que é uma gravidez monocoriónica vamos ler tudo sobre o assunto. Só tinha uma placenta, eles partilhavam tudo, o que obrigou sempre a mais cuidados e a consultas com maior regularidade. Também sabia desde o início que o próprio tipo de gravidez podia causar inúmeras coisas, e que há sempre uma percentagem que não chega ao fim, mas tinha esperança de que corresse bem, acreditava que podia dar certo.

Quando fiz a ecografia das 12 semanas, não estava descansada. Mas o médico viu um bebé, disse-me que estava tudo bem e eu comecei a sossegar. Mal começou a ver o outro, percebi que havia qualquer coisa.

Os bebés não eram iguais, um era mais pequeno do que o outro — coisa que o médico me disse que, em si, não era preocupante, apesar de serem os ditos gémeos verdadeiros e de partilharem todo o material genético, não tinham de ter o mesmo peso nem o mesmo tamanho. O problema é que não era só isso.

"Só tinha uma placenta, eles partilhavam tudo, o que obrigou sempre a mais cuidados e a consultas com maior regularidade. Também sabia desde o início que o próprio tipo de gravidez podia causar inúmeras coisas, e que há sempre uma percentagem que não chega ao fim, mas tinha esperança de que corresse bem, acreditava que podia dar certo."
Patrícia Silva, administrativa

Nessa ecografia percebeu-se logo que o bebé mais pequeno tinha um apêndice caudal no sacro ilíaco — o que também podia significar apenas que, durante a formação, uma vértebra não tinha fechado. Também tinha uma artéria única no cordão umbilical e o percurso do ducto venoso também não era o normal — mas isso também podia desaparecer à nascença e ele nunca vir a ter qualquer problema cardíaco.

Mas se estas particularidades, individualmente, podiam não representar nada, todas juntas podiam querer dizer alguma coisa. Podiam querer dizer que, apesar de todos os rastreios dizerem o contrário, o bebé tinha algum problema.

Isto aconteceu em janeiro, a partir daí foi sempre um sobressalto. Moro em Aveiro, no final do mês passei a ser seguida em Coimbra. Foi lá que me explicaram que poderia acontecer uma coisa chamada síndrome de transfusão feto-fetal. Quando isso acontece, há um bebé que é considerado o dador e que vai perdendo sangue, enquanto o outro, o recetor, vai ganhando. Ou seja, há um que pode sofrer de anemia grave e o outro pode morrer porque tem demasiado fluxo sanguíneo.

Se isto acontecesse, a única solução seria fazer uma intervenção, que em Portugal só se faz na MAC, com a equipa do Dr. Álvaro Cohen, e que até podia nem resultar. Se não fizesse nada era certo que perdia os dois; se fizesse a cirurgia podia perder os dois mas havia uma probabilidade, baixa, de salvar um.

A situação era controlada através das ecografias, que fazia de 48 em 48 horas, em Coimbra. Se houvesse um desnivelamento do líquido amniótico, era o sinal de alerta: podia estar a ocorrer essa síndrome.

Não havia, da parte da genética, indícios de que pudesse haver algum problema — já tinha tido dois filhos, eram ambos saudáveis, e nenhum de nós tinha problemas nem familiares portadores de deficiências —, mas a dúvida era constante. Isto porque um bebé continuava a crescer e a apresentar boa vitalidade, e o outro ia crescendo também e desenvolvendo mas sempre com uma discrepância em relação ao irmão.

"Disse-me que talvez houvesse uma possibilidade, se eu fizesse uma intervenção para laquear o cordão umbilical do bebé que já estava a falecer. Era uma questão de ver se o outro resistiria, e depois teríamos uma margem, com ele in utero, para perceber se ficava com sequelas. Se não ficasse, a gravidez decorreria normalmente. Se ficasse, era-me permitido interrompê-la mais tarde, por ter feito um procedimento cirúrgico. Mas se eu não fizesse nada, eles nasciam conforme... conforme acontecesse..."
Patrícia Silva, administrativa

Até que um dia fui à urgência do hospital de Aveiro e o líquido estava com valores alterados. Em Coimbra, percebeu-se que estava perto, mas que não atingia ainda o valor da síndrome, por isso continuei a fazer ecografias de 48 horas em 48 horas, fiz um ecocardiograma fetal para despiste de alguma patologia cardíaca — que não encontrou nada — e o tempo foi passando.

No dia 30 de março, depois de me terem deixado estar uma semana em casa, porque os níveis tinham estabilizado e a fase de maior risco já tinha passado, fui novamente à consulta a Coimbra. Foi quando o médico me disse que o bebé mais pequeno tinha parado de crescer.

Perguntei-lhe o que devia fazer. E ele respondeu: “Honestamente, a tua situação é muito complicada. Porque se houvesse uma síndrome de transmissão feto-fetal nós saberíamos o que fazer, assim não sabemos. Se a gravidez não fosse monocoriónica era fácil, cada um tinha a sua bolsa e a sua placenta, e podíamos interromper a gravidez de um e continuar com o outro. Neste caso, não podemos, porque tudo pode afetar o outro; eles partilham as ligações sanguíneas, partilham tudo, estão dependentes um do outro e não sabemos que sequelas é que o que está aparentemente bem poderá vir a ter”.

Disse-me que talvez houvesse uma possibilidade, se eu fizesse uma intervenção para laquear o cordão umbilical do bebé que já estava a falecer. Era uma questão de ver se o outro resistiria, e depois teríamos uma margem, com ele in utero, para perceber se ficava com sequelas. Se não ficasse, a gravidez decorreria normalmente. Se ficasse, era-me permitido interrompê-la mais tarde, por ter feito um procedimento cirúrgico. Mas se eu não fizesse nada, eles nasciam conforme… conforme acontecesse…

Durante todas aquelas semanas e meses nunca tive um dia em que pudesse respirar de alívio. Obviamente que já tinha pensado nisso, já tinha conversado com o meu marido sobre o assunto e já tinha chegado à conclusão de que amar um filho é querer o melhor para ele, mesmo que o melhor para ele seja não o ter.

O médico perguntou-me se eu queria uma opinião do Dr. Álvaro e eu disse-lhe que sim: “Se ele achar que vale a pena eu faço a cirurgia”. Passados uns minutos chamou-me e disse-me que estava tudo tratado: no dia seguinte, 31 de março, tinha de estar às 9h na MAC.

"Quando me levaram ao bloco, para ver se era necessária alguma intervenção, eles foram a acompanhar-me, ao colo de uma enfermeira, e tive mais ou menos perceção do tamanho que tinham, mas não os vi. Quando nasceram pedi que os tirassem logo, não queria ver, não queria aquela imagem... Não queria olhar para os meus bebés sem vida. Só quis saber se eles fisicamente eram perfeitos, se estavam formados. E a enfermeira disse-me que sim, que eram bebés perfeitinhos, e eu descansei."
Patrícia Silva, administrativa

Fiz toda a viagem para Lisboa calada, não sei como explicar… ia cheia de esperança de que pelo menos um aguentasse… Nessa tarde fiz a cirurgia para laqueação do cordão umbilical do bebé mais pequeno, o Manel. Foi horrível, é uma cirurgia com anestesia local, feita através de laser e de sonda. Estão a ver tudo por monitores. E eu estava a ver também — a tentar não ver… Depois comecei a ter muitas contrações e tive de ficar internada.

No final, o médico disse-me que, apesar de ter laqueado o cordão, o bebé continuava vivo e que o outro, o João Maria, também estava bem. Depois, mais tarde, deixei de senti-los… E quando deixei de os sentir percebi… Quando me fizeram a ecografia, já de madrugada, não precisaram de me dizer nada, porque eu já sabia. Tinha perdido os dois.

Na manhã seguinte começaram a induzir-me o parto. Foi horrível, foi um processo muito doloroso, e eles só nasceram depois das dez da noite. Estive sempre medicada e sedada, mas quando chegou o momento, foi um parto natural, sem epidural, foi tudo muito rápido, nasceram no quarto, foi uma enfermeira que me ajudou.

Quando me levaram ao bloco, para ver se era necessária alguma intervenção, eles foram a acompanhar-me, ao colo de uma enfermeira, e tive mais ou menos perceção do tamanho que tinham, mas não os vi. Quando nasceram pedi que os tirassem logo, não queria ver, não queria aquela imagem… Não queria olhar para os meus bebés sem vida. Só quis saber se eles fisicamente eram perfeitos, se estavam formados. E a enfermeira disse-me que sim, que eram bebés perfeitinhos, e eu descansei.

Fizeram um estudo cromossómico, que deu resultado em agosto, e sei que não tinham nenhuma doença genética. Não havia nenhum problema, portanto, à partida, a morte foi consequência de uma gravidez monocoriónica. Fiz parte daquela percentagem em que ocorrem certas coisas para as quais não há uma explicação muito concreta.

"Não sou diferente de ninguém, nunca perguntei ‘porquê eu?’ — ninguém merece passar por isto, é uma dor sem fim. O amor que sentimos pelos nossos filhos é imensurável, portanto perdê-los é qualquer coisa que nos ultrapassa."
Patrícia Silva, administrativa

Não sou diferente de ninguém, nunca perguntei “porquê eu?” — ninguém merece passar por isto, é uma dor sem fim. O amor que sentimos pelos nossos filhos é imensurável, portanto perdê-los é qualquer coisa que nos ultrapassa.

Foi muito difícil e é difícil, vai ser sempre difícil, sempre. Iniciei acompanhamento com uma psicóloga na MAC — e continuo até hoje. Não vou negar que às vezes penso como teria sido se não tivesse feito nada… mas tenho confiança de que tomei a melhor decisão, a única decisão que poderia tomar, e é por isso que não sinto culpa.

Saber que não havia nada a fazer acalma-me. Não me vai impedir nunca de chorar por eles, nem de os amar, de querer que estivessem cá ou de pensar como teria sido, mas eu não podia fazer nada. Fui uma mãe de colo vazio. Mas eles são meus filhos e eu vou ser sempre mãe de quatro.

Inicialmente tentei negar a realidade, tentava fugir ao assunto, tentava não falar. Queria à força voltar a ser o que era antes de ter engravidado. Durante dois ou três meses não consegui dormir, fechava os olhos e via tudo. Tinha ataques de pânico, não conseguia sair de casa sozinha, achava que as pessoas me iam fazer perguntas, que me iam dizer, como cheguei a ouvir, “Deixa lá, também já tens dois filhos” ou “Tu nem sequer estavas a contar, não é?”. Não queria chorar, muito menos à frente das pessoas, queria ser mais forte do que isso. Tive de perceber que tenho direito a sofrer e que só depois de chorar tudo é que vou conseguir olhar em frente.

“Nunca me arrependi. Estou muito certa daquilo que quero para mim e tenho bem noção do que é uma criança com deficiência”

Nathalie Marques
33 anos
Psicóloga
Sintra

Tivemos sorte, começámos a tentar engravidar em setembro e em outubro já tinha o teste positivo. Já tínhamos um menino de 2 anos e meio, estava tudo a correr como planeado, de maneira a que o bebé nascesse quando o Duarte já tivesse três anos, que era a idade que eu achava mais conveniente.

No dia em que o nosso teste deu positivo, uma grande amiga nossa, que estava quase no fim do tempo, entrou no hospital para fazer uma interrupção da gravidez, também por problemas de malformação. Mas como a minha primeira gravidez correu bem, apesar dos enjoos do princípio ao fim, eu não estava muito preocupada. Quase que parece que estava tudo delineado…

Apesar de ser uma segunda gravidez, o diagnóstico pré-natal, que é feito às 12 semanas, para despistar eventuais malformações e trissomias, foi uma novidade para nós. Na minha primeira gravidez decidi fazer mas a nível particular, o meu médico de família na altura disse-me que não havendo histórico de trissomias na família, o exame não se justificava. Curiosamente foi o diagnóstico que tive na segunda gravidez: uma trissomia 21.

"Quando a médica nos disse que as notícias talvez não fossem boas pensei que estava a brincar. Claro que não estava, não faz sentido nenhum, talvez tenha sido uma defesa, mas a sensação que tive foi que não podia ser. Aquilo pareceu-me na altura extremamente surreal: 'Estas coisas não me acontecem', acho que é o pensamento que toda a gente tem..."
Nathalie Marques, psicóloga clínica

Tive a consulta de rotina das 12 semanas na MAC a uma sexta-feira, dia 20 de dezembro.  Quando a médica nos disse que as notícias talvez não fossem boas pensei que estava a brincar. Claro que não estava, não faz sentido nenhum, talvez tenha sido uma defesa, mas a sensação que tive foi que não podia ser. Aquilo pareceu-me na altura extremamente surreal: “Estas coisas não me acontecem”, acho que é o pensamento que toda a gente tem…

A médica explicou-nos que se a zona da coluna estivesse translúcida não era um bom sinal, que algumas dimensões também não pareciam estar dentro dos parâmetros, mas apesar disso mandou-me fazer um exame de sangue para fazer o despiste e ir lá na segunda-feira a seguir, para poderem confirmar o diagnóstico.

Nessa sexta-feira tivemos logo acompanhamento psicológico. Depois, deram-nos um papel, que podíamos assinar para interromper a gravidez, mas explicaram-nos que podia ser rasgado na semana a seguir, que era só uma questão burocrática, por causa dos timings e porque era Natal e depois vinha o Ano Novo. Assinei. Foi das vezes que mais me custou escrever o meu nome — e eu assino muitos papéis. Apesar de saber que era reversível, parecia que estava a ditar uma sentença.

Para mim e para o meu marido sempre esteve muito certo que se fosse uma trissomia não íamos querer avançar. É daquelas coisas de que vamos falando, ao longo da vida e enquanto casal. O que senti logo nesse momento foi que a decisão não era difícil, mas era dura.

Durante o fim de semana sinto que entrei num loop, queria procurar respostas que me dissessem que a probabilidade de aquilo ser um problema era baixa, não queria acreditar que fosse mesmo assim. Liguei logo a uma amiga que teve de ser submetida a imensos testes porque havia a suspeita, que no caso dela não se confirmou. Agarrei-me a essa esperança, quis acreditar que comigo ia ser exatamente como tinha sido com ela, mas o fim de semana foi muito duro. Uma das coisas que pensamos logo é “O que é que fizemos de errado para nos calhar isto?”. Mas claro que não tem nada a ver com isso.

"Fomos fazer a amniocentese e o médico disse-nos logo que achava que o feto já não tinha vida e que mesmo que não tomássemos aquela decisão o mais certo era que perdêssemos o bebé. Para mim não fez diferença nenhuma mas para o meu marido foi extremamente organizador."
Nathalie Marques, psicóloga clínica

Perceber que isto acontece tantas vezes e que tanta gente à nossa volta já passou por isto foi das coisas que me impressionaram mais. E ao mesmo tempo revoltou-me também, porque ninguém fala sobre isto e se as pessoas normalizassem este assunto era muito mais fácil.

Na segunda-feira, dia 23, fomos fazer a amniocentese e o médico disse-nos logo que achava que o feto já não tinha vida e que mesmo que não tomássemos aquela decisão o mais certo era que perdêssemos o bebé. Para mim não fez diferença nenhuma mas para o meu marido foi extremamente organizador. É informático, portanto é uma pessoa muito mais pragmática. A partir do momento em que ele soube que o bebé não era viável, independentemente do que decidíssemos e fizéssemos, para ele foi mais fácil. É como se nunca tivesse sido uma questão, porque nunca esteve nas nossas mãos. Já eu, o único sentimento que tinha era de que ia perder o bebé que estava a carregar há três meses.

A amniocentese foi assustadora, tinha de estar extremamente quieta e estava com muita tosse. Aliás, a própria decisão de fazer o exame é difícil porque se o bebé estiver bem mas correr alguma coisa mal corremos o risco de o perder.

Logo nesse dia o diagnóstico confirmou-se. E a seguir foi o Natal, que foi uma porcaria, nessa altura já tinha iniciado o processo de me ir despedindo, tinha até sexta-feira para me ir despedindo daquela criança.

"Em janeiro fomos à consulta de genética e voltou a ser muito, muito, muito duro para mim. Era o dia em que nos iam dizer se a trissomia tinha sido um problema genético ou um mero acaso. Foi um acaso, o que significa que a probabilidade de voltar a acontecer é muito pequena. O que me doeu horrores foi saber o sexo da criança... Sempre quis uma menina... E era menina."
Nathalie Marques, psicóloga clínica

Pelo meio fiquei doente, a tosse piorou e tive de ir ao hospital. Dizer à médica que, apesar de estar grávida, ia fazer a interrupção, portanto a medicação já não era relevante foi uma das coisas que mais me custou. Estava claramente em sofrimento, chorei imenso à frente da médica, e para ela foi igual ao litro, foi uma experiência que me doeu muito, a desumanização custou-me muito.

No dia 27, sexta-feira, fomos ao hospital para tomar o início da medicação e a sensação que tive foi de que era o princípio do fim. Depois, no dia 29, foi tudo muito rápido, tomei o resto da medicação e em duas horas fiz a expulsão do feto, mas como a placenta não saiu naturalmente ainda tive de ir para o bloco. Saí do hospital no dia seguinte: estava bem e ia-me embora, mas ia-me embora de barriga vazia…

Passámos o Ano Novo com este casal amigo, que passou pelo mesmo. Foi muito importante. As pessoas dizem coisas e têm a melhor intenção, mas não reconfortam. Os abraços são muito mais eficientes do que as palavras — a menos que sejam ditas por alguém que tenha passado pelo mesmo, como estes amigos. Uma das coisas que nos disseram logo foi “Fogo, vocês! Tinham de ficar com inveja e passar por isto também?!”. A ironia e a brincadeira à volta disto foi das coisas mais ricas de todas as que me disseram. Passámos o Ano Novo a rir com eles e a chorar, em casal.

Depois, em janeiro, fomos à consulta de genética e voltou a ser muito, muito, muito duro para mim. Era o dia em que nos iam dizer se a trissomia tinha sido um problema genético ou um mero acaso. Foi um acaso, o que significa que a probabilidade de voltar a acontecer é muito pequena. O que me doeu horrores foi saber o sexo da criança… Sempre quis uma menina… E era menina.

Esta experiência serviu para eu fazer uma reavaliação da minha vida. Reavaliei a forma como estava a viver a vida com o meu filho, aprendi a priorizar-me e a priorizá-lo a ele e ao meu marido. Nessa altura percebi que com a gravidez anterior tinha desinvestido muito em mim, na minha imagem, na minha postura… sou uma pessoa bem disposta e otimista, dei por mim a pensar que andava, na vida profissional, a pregar este lema aos outros e que não estava a fazer o mesmo comigo.

Em termos de estratégia pessoal o que eu fiz foi agarrar quase num ordenado mínimo e gastá-lo em mim. Gastei dinheiro em maquilhagem, gastei dinheiro em roupa, e decidi que se a vida me tinha dado limões ia fazer uma limonada, mas com açúcar.

Durante dois meses funcionou. Vi o copo meio cheio e voltei a mergulhar no trabalho, mas entretanto meteu-se a pandemia, tive de fechar o consultório e acabei por ter muito tempo para pensar. Foi aí que comecei a entrar em colapso com estas coisas todas: com a perda, com o sentimento de injustiça, irritava-me o facto de o meu marido estar aparentemente bem com a situação e o confronto com outras pessoas grávidas também mexeu comigo…

O dia 7 de julho era a data prevista para o parto, dez dias antes do meu aniversário, o aproximar desse dia também foi muito duro. O bebé ia nascer no mês que eu queria, ia ser do signo que eu queria, a revolta ainda era maior. “Logo agora que ia ser tudo perfeito é que me foram roubar esta oportunidade”, era o que eu pensava.

"Há quem possa achar que é egoísta da minha parte — e eu ouvi isto —, mas nós temos de ser honestos nestas coisas. Depois quem é que cuida? Quem é que tem o peso? Ia ser sempre muito difícil e nem sequer sabíamos qual ia ser a gravidade da doença, uma pessoa com trissomia 21 pode ser extremamente funcional — ou não. As pessoas têm de respeitar a decisão de cada um, isto é uma coisa muito íntima, muito pessoal."
Nathalie Marques, psicóloga clínica

Estes sentimentos todos tornam o pensamento sobre uma nova gravidez — que é o que está nos nossos planos, inclusive já estamos a tentar — , muito mais assustador. Estamos com mais medo do que alguma vez estivemos e eu tenho muito receio de que não seja uma menina. Sei que tenho de aceitar esse facto — pode não ser —, mas torna tudo ainda mais difícil.

Dói, dói muito. Mas apesar do choro e dessa dor, sinto que, hoje, aquilo por que passei não condiciona a minha vida. O que não faz com que deixe de ser triste.

Nunca me arrependi nem um bocadinho. Estou muito certa daquilo que quero para mim, e tenho bem noção do que é uma criança com deficiência. Sei que ia mudar a minha vida, a do meu marido e a do meu filho — na óptica a longo prazo, ia condicionar muito a vida do meu filho, que ia ter de cuidar do irmão.

Há quem possa achar que é egoísta da minha parte — e eu ouvi isto —, mas nós temos de ser honestos nestas coisas. Depois quem é que cuida? Quem é que tem o peso? Ia ser sempre muito difícil e nem sequer sabíamos qual ia ser a gravidade da doença, uma pessoa com trissomia 21 pode ser extremamente funcional — ou não. As pessoas têm de respeitar a decisão de cada um, isto é uma coisa muito íntima, muito pessoal.

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