As caras de barro cru, cor de tijolo, estão pousadas na mesa colocada no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, num espaço de visita entre quadros da exposição Elevador da Glória, em exibição até ao fim do ano. Daqui a pouco, esses rostos moldados à mão serão pintados pelos seus autores, pessoas com doença mental que participam na oficina artística que ali acontece às sextas-feiras de manhã ao longo de um ano letivo. Pintarão com as cores que quiserem, como entenderem, sem pressas. Será mais um momento criativo, experimental, livre. Haverá tintas acrílicas, pastilhas com pigmentos compactados, pincéis, boiões de água, um avental para cada um, à disposição. Tudo preparado para mais uma sessão. O grupo está prestes a chegar.
A oficina tem horário estabelecido, começa às 10h30 e termina às 12h30, duas horas de atividade artística. O grupo senta-se, hoje são cinco, costumam ser seis. “Já não me lembro qual é a minha careta”, diz Paulo Castro que a descobre em segundos. É um diabo que vai pintar com cores vivas e alegres. Cara vermelha, cornos vermelhos e brancos; boca, orelhas e olhos de azul; nariz, sobrancelhas e barbicha de amarelo. Porquê o diabo, perguntamos. “Eu, às vezes, ouço o diabo”, responde. Frequenta a oficina há dois anos e está bastante satisfeito, confessa, são momentos que aprecia e fora da rotina, dos desenhos às manualidades que puxam pela imaginação.
“Gosto de tudo, de pintar, de desenhar, do barro, já costurei fantoches. É uma descoberta”, diz Paulo Castro. Com as perguntas, pára de pintar o seu diabo e partilha a sua história de vida. É longa e dura. “Faz 12 anos que não sou internado em psiquiatria”, revela. Continua a ser acompanhado em psiquiatria, psicologia, medicado para a esquizofrenia. Ao longo da oficina, conta mais coisas da vida e de si. Gosta do Carnaval, fala-se do Natal e sabe o preço de um determinado chocolate em desconto numa certa superfície comercial, e recorda ainda a festa dos seus 50 anos.
Anabela Gomes desenha desde criança, sóis amarelos, paisagens verdes, flores de muitas cores, montanhas, rios e nuvens, principalmente a lápis. Guardava tudo numa gaveta. “Gostava de ser pintora ou desenhadora, mas, infelizmente, não fui para a universidade.” Pausa, silêncio e acrescenta. “O problema é a cabeça, é a doença.” Esperou uns meses até entrar na oficina. “Era um sonho vir para aqui.” Agora está a pintar o seu macaco de barro. “Calhou, foi o que me veio à cabeça, também tem a ver com o que vi na exposição.” Essa exposição está ali ao pé, chama-se “Mutantes” e tem animais imaginários, seres orgânicos, criaturas que dançam num mundo psicadélico, figuras que misturam o animal e o humano. São obras da coleção de arte bruta Treger Saint Silvestre, a maior do género da Península Ibérica, à guarda do centro de arte, e que o grupo observou antes do trabalho no barro.
Estefânia Larez, terapeuta ocupacional do serviço de Psiquiatra da Unidade Local de Saúde de Entre Douro e Vouga (ULSEDV), acompanha regularmente o grupo às sextas-feiras. Está no projeto desde o início e lembra que a ideia foi importada do Serviço Educativo do Museu Thyssen, em Madrid, por uma médica psiquiatra que trabalhava no centro hospitalar. “Apesar do projeto no Museu Thyssen funcionar em moldes diferentes do nosso, os dois convergem em objetivos importantes, como trazer a pessoa com experiência de doença mental para a comunidade – que é um espaço seu por direito – e a utilização da arte como forma de comunicação com os outros e expressão do mundo interno”, explica. “Por estes motivos, na altura, sentimos que este tipo de projetos dotavam os seus participantes de ferramentas muito importantes no seu processo de reabilitação psicossocial. Para além disso, era uma abordagem inovadora em Portugal e que foi muito bem acolhida pelo Centro de Arte Oliva”, acrescenta.
A oficina artística começou no ano letivo de 2016-2017 com o nome “Normativos? Talvez… Não”, batismo que está atualmente em reformulação, numa parceria entre o Serviço de Psiquiatria da ULSEDV, em Santa Maria da Feira, e o Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, equipamento municipal, as duas entidades que suportam financeiramente o projeto. São ateliês artísticos dirigidos a utentes da ULSEDV com doença mental, na sua maioria com psicose e esquizofrenia, com uma motivação para se expressarem através da arte.
O objetivo não é dominarem técnicas de pintura ou desenho, mas encontrarem um espaço seguro para exprimirem vivências, pensamentos e emoções através de várias formas de expressão artística. A referenciação é feita por profissionais da ULSEDV, médicos, enfermeiros e outros técnicos com intervenção com pessoas com experiência de doença mental. Posteriormente são avaliados pela terapeuta ocupacional.
Como foi o caso de Luísa Azevedo. Frequenta a oficina há cerca de três anos e ganhou tanto gosto que se inscreveu em pintura num outro atelier. “O vício, o bichinho começou a despoletar, tenho de agradecer à médica, foi ela que me enviou para aqui, descobri a pintura aqui”, revela Luísa Azevedo que gosta de pintar paisagens, animais e abstratos. “Enquanto aqui estou, só penso nisto, não penso nos outros, não penso em ninguém”, refere. E os dias tornam-se mais leve na sua depressão profunda.
“Uma forma de me evadir do quotidiano, dos problemas mais pessoais”
Jorge Madureira pede um pincel mais fino para pintar os bigodes do seu gato de cara amarela-esverdeada, boca e nariz vermelho. Está bastante concentrado, conta que tem dois gatos em casa, a Xanoca e o Brankito, com k indica. Moldou outra cara de barro que deixou para pintar depois e que tem uma parte amovível que pode funcionar com cabelo ou como barba, basta mudar de lugar, ainda vai analisar melhor o que será. Essa figura, o que é? “Nem sei bem… É um monstro. Vi a exposição e inspirei-me num bocado de tudo”, afirma.
É o elemento mais antigo deste grupo, frequenta a oficina desde 2019. Já desenhava em casa, confessa. “É uma forma de me evadir do quotidiano, dos problemas mais pessoais.” Há mais de 20 anos que Jorge Madureira sofre de distúrbio obsessivo-compulsivo. “Não sou a mesma pessoa que era há 20 anos.” Apesar de calado, na oficina, sente-se confortável e garante que tem resultado. “É como uma terapia, é um escape. Tenho melhorado imenso.”
Essas melhorias ainda não estão quantificadas, a avaliação científica do projeto não tem sido feita. No entanto, pela necessidade de registar e objetivar os resultados que vão sendo percecionados, a monitorização está a ser feita nesta edição, que é a nona, através de testes psicométricos realizados no início e que serão repetidos no fim. Ainda assim, a terapeuta ocupacional Estefânia Larez fala do que tem visto acontecer à sua frente. “Em termos empíricos, verifico ao longo das várias edições uma evolução positiva e consistente nos utentes. Reparo que têm tido menos recaídas com menos recurso ao hospital, têm uma adesão consistente ao tratamento, a prova disso são utentes que permanecem ao longo de toda a edição do projeto, regressando na edição seguinte.” Desde o início da oficina, participaram cerca de 50 doentes.
O projeto tem vários objetivos: melhorar o desempenho funcional, desenvolver desafios interpessoais e artísticos, promover o restabelecimento de relações sociais entre os indivíduos e a sua comunidade, quebrar o isolamento social, diminuir a desvantagem psicossocial e o estigma associado à doença mental. É uma oficina que não se confina a vários espaços do percurso expositivo do centro de arte, também tem piquenique em jardins para pintar e desenhar, visita à fábrica de lápis Viarco, exposição de obras de forma espontânea e livre nas ruas de São João da Madeira, como já aconteceu.
O contacto com a comunidade é uma mais-valia do projeto. Vera Teixeira de Sousa, diretora do Serviço de Psiquiatria da ULSEDV, realça outros pontos fortes. “Muitas vezes, estes doentes não têm um contexto em que possam ter um desempenho funcional tão adequado e estamos a dar-lhes esse contexto, de melhorar a sua funcionalidade, através de formas que antes não estavam à disposição.” “Estas pessoas não são artistas, nem têm de ser, encontram muitas vezes aqui uma forma de se expressarem e uma forma de melhorarem o seu nível funcional”, sublinha.
Há um trabalho importante nesta oficina, segundo Vera Teixeira de Sousa, que é trabalhar a própria expressão da identidade, do que é a pessoa, que não é a doença. Já se reconhecem uns aos outros pelos traços que fazem, pelo estilo que adotam, pelos objetos representados nos desenhos. “Quando estamos a falar em arte, estamos a falar também em expressar pensamentos, expressar emoções e é, muitas vezes, o que está mais limitado em relação à doença mental – com sintomas muito ativos sentem essa dificuldade – e a arte é um veículo para isso.”
Ser em conjunto não é por acaso. “O grupo é um poderoso agente terapêutico, não só no atelier, mas também no serviço, de suporte, de autoajuda, de compreensão mútua”, realça a diretora do Serviço de Psiquiatria, lembrando que “quando têm doenças graves, há um afastamento social muito grande, frequentemente acontece, e terem uma atividade em contexto comunitário, que favorece o restabelecimento de vínculos interpessoais, reforça e melhora a funcionalidade.”
Luísa Azevedo é minuciosa no que faz, tenta ser perfecionista nos desenhos, nas pinturas, nos traços das figuras humanas que faz a lápis de cor, nas flores brancas sob um fundo verde que fotografou e que guarda no telemóvel. A criatura que moldou no barro tem cara de humano e animal com orelha e um corpo de peixe. “Eu quero pintar tudo, não só a cara”, anuncia. Pinta o rosto de amarelo, boca de vermelho, olhos em azul, sobrancelhas pretas, orelhas acastanhadas, corpo com espinhas e cauda pretas, contorno a vermelho. Não se distrai, procura cores, espreme as bisnagas para o pincel e o tijolo do seu barro ganha outras tonalidades.
Daniel Costa, responsável pela coordenação de mediação e participação e pelo projeto educativo do Centro de Arte Oliva, anda por ali nesta manhã de sexta-feira, há várias atividades a acontecer no espaço. “Este projeto, como outros, são fundamentais para que estes lugares se abram a diferentes públicos. É um momento prático, é um momento experimental”, comenta. E que encaixa na permanente discussão do que é uma obra de arte, do que é ser artista. “Temos este debate interno entre esta relação da saúde mental e arte. Debates sobre estes conceitos e convenções que se vão construindo no discurso artístico e estético”, observa.
Empoderar a pessoa com experiência de doença mental é um dos propósitos do projeto desde o início. “Um fator muito importante está relacionado com os próprios participantes, que têm esta ferramenta terapêutica como muito válida. Sentem-se bem acolhidos, entendidos e empoderados neste espaço, participando ativamente em todas as tarefas que são propostas”, destaca Estefânia Larez. “Este grupo também já serviu como catalisador para utentes que querem voltar a ter a arte como sua profissão ou que procuraram junto das suas comunidades sítios onde possam desenvolver-se a nível técnico”, revela. Como foi o caso de Luísa Azevedo.
“Distraio-me um bocado, sinto-me mais desanuviado”
A oficina prossegue, há um intervalo a meio, as caras ganham cor, há um ou outro visitante que vê a exposição do centro de arte, outro atelier a acontecer ali perto. Antes dessas pinturas no barro, o coordenador das sessões Miguel Almeida, do Centro de Arte Oliva, mediador cultural, formado em artes plásticas e cinema, distribui desenhos de cada participante que transformou em autocolantes, um para colarem na capa preta que guardará os trabalhos, os restantes para oferecerem a quem quiserem. O de Paulo Castro é um sol com cara sorridente, Luísa Azevedo fez um autorretrato, Anabela Gomes desenhou dois caracóis virados um para o outro.
Adílio Resende pintou uma jarra preta com ramos de folhas verdes, desenho transformado em autocolante, que colou na sua capa preta. A sua figura de barro é um rosto de homem. “Um retrato trivial”, diz. Há dois anos que está na oficina e gosta muito, garante. “Sinto-me melhor, mais leve, distraio-me um bocado, sinto-me mais desanuviado.” Há mais de cinco anos que foi diagnosticado com perturbação afetiva bipolar e é seguido na ULSEDV.
Os participantes continuam concentrados. “O barro absorve muito o vermelho”, avisa o monitor Miguel Almeida. São necessárias várias camadas de vermelho para a cor brilhar. Molham-se os pincéis nos boiões de água, comprimem-se nuns quadrados de pano, trocam-se cores. Alguns trabalhos da oficina foram, há dias, colocados no painel que o centro de arte tem para afixar obras que ali ganham vida por várias mãos.
As exposições são apenas o ponto de partida para o trabalho que é feito nesse cruzamento de várias linguagens artísticas e multidisciplinares. Miguel Almeida, o monitor, com conhecimentos artísticos, estimula o lado sensorial, criativo e artístico do grupo. “A abordagem é a de lhes proporcionar experiências, coisas que despoletem a curiosidade, para serem criadores. São eles que me dizem o que vamos fazer.” E sente que a oficina os aproxima, que os torna mais amigos.
O grupo é sempre acompanhado por um monitor do centro de arte, Miguel Almeida, e por um elemento do Serviço de Psiquiatria da ULSEDV, quase sempre Estefânia Larez. Nesta sexta-feira, é Mercedes Fernandez, enfermeira especialista em Psiquiatria e Saúde Mental, que acompanha o grupo, por impossibilidade da terapeuta ocupacional. Senta-se à mesa, também pinta uma cara de barro. “São encontros de reflexão, de inclusão”, comenta. “Utiliza-se a arte como ferramenta para promover a reabilitação, desenvolvem-se desafios interpessoais e artísticos, quebra-se o isolamento social.”
É tudo isso. “É um espaço de segurança para exporem as suas vivências, emoções, experiências, através da arte que produzem ou que visitam”, nota Vera Teixeira de Sousa. “Um programa de reabilitação serve para reconstituir a funcionalidade de alguém a um nível que estava perdido e isso acontece sobretudo na doença mental grave, nas psicoses e na perturbação afetiva bipolar.” E não só. “É uma envolvência que, muitas vezes, ultrapassa o espaço de um programa terapêutico, pode abrir portas para outras coisas, para outras ideias, para desbloquearem dificuldades sociais, interagir com outras pessoas, de se expressarem emocionalmente. Tudo isso está associado a esta tarefa específica que tem esta nuance artística particularmente feliz”, reforça a diretora do Serviço de Psiquiatria.
A oficina desta sexta-feira termina com um jogo. A partir da palavra “mão”, fazem-se desenhos em quadrados brancos e escrevem-se palavras em quadrados rosa que se vão acrescentando como um puzzle colocado na mesa. Enquanto isso, as caras de barro pintadas secam no chão. O desafio agora é criar associações entre palavras e imagens, umas entre as outras. Desenha-se um coração, um relógio, um marcador. Escrevem-se palavras como elo, amor, receita, Natal, prendas. É um exercício focado num momento que pretende, ao longo de várias sessões, chegar, em conjunto, ao nome da oficina. “Agora somos os anónimos”, diz Paulo Castro. Depois das férias de Natal, a oficina prossegue em janeiro, como um ano letivo, até julho. Com o mesmo grupo e mais propostas artísticas. E, porventura, com um novo batismo.
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