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O poder do EI deve-se à "ignorância" dos britânicos e dos americanos

O jornalista da BBC Andrew Hosken, autor do livro "Império do Medo", sobre o Estado Islâmico, acha que os erros dos EUA foram a catapulta do grupo. E que o EI só tem a ganhar com a islamofobia.

Andrew Hosken, jornalista da BBC, acaba de lançar em Portugal o livro “Império do Medo” (Planeta), onde analisa o Estado Islâmico (EI) desde o seu início, quando era uma célula subsidiária da Al-Qaeda, até aos tempos atuais, em que domina uma vasta área distribuída entre a Síria e o Iraque e cujos tentáculos chegam até às capitais europeias. Hosken assistiu a isto de perto — quando Abu Bakr al-Baghdadi, atual líder do EI, declarou o califado em julho de 2014 em Mossul, no Iraque, o jornalista britânico estava em Bagdade, a apenas 400 quilómetros. “Houve amigos meus que apostaram 10 libras comigo em como eu só ia conseguir sair de lá quando um helicóptero me fosse buscar ao telhado da embaixada do Reino Unido”, contou em entrevista ao Observador.

A conversa decorreu em Lisboa — uma entre várias cidades que, garante Hosken, estão na mira do EI. Para o repórter da BBC, o atual poderio do EI é uma consequência de “um grande nível de ignorância dos americanos e dos britânicos” quando estes invadiram o Iraque, em 2003. Além disso, rejeita a ideia de que a religião seja a causa que motiva o EI, mas antes uma busca pelo poder — e, aqui, com os líderes do antigo regime de Saddam Hussein a serem uma peça fundamental. E argumenta que a raiz de atentados como os de Paris e de Bruxelas, cometidos por jovens muçulmanos nascidos na Europa, é a islamofobia e o isolacionismo. “Há pessoas que podem perder a cabeça quando lhes prometem poder, mulheres e um bom salário”, diz.

HUGO AMARAL/OBSERVADOR

Nesta altura, já podemos dizer finalmente que temos mais respostas do que perguntas em relação ao Estado Islâmico (EI)?

Houve muita gente apanhada de surpresa em julho de 2014 [data da proclamação do califado, em Mossul], como se o EI tivesse aparecido como um grupo de extraterrestres. A verdade é que a História deles começa em 1999. Portanto, já há muito por onde olhar. Neste momento, acho que já sabemos um pouco sobre a organização. Sabemos o que os motiva. Não sabemos é como é a vida no EI, porque os jornalistas simplesmente não entram lá. Há um site, o Raqqa Is Being Slaughtered Silently, feito por gente muito corajosa. Tirando isso, nada. Mas há uma dicotomia estranha. Por um lado, o EI gaba-se das atrocidades que comete. Decapitam pessoas ou queimam-nas vivas e metem o vídeo na internet. É aí que eles vão buscar toda a sua glória, ao contrário dos nazis, que faziam por esconder os seus crimes. Por outro lado, há um mistério enorme em torno da liderança deles. Hoje em dia, sabemos muito mais sobre Osama Bin Laden do que alguma vez soubemos de Abu Bakr al-Baghdadi. Não sabemos se ele está vivo sequer. Eu acho que está, mas é difícil ter certezas. E tudo isto provoca uma enorme confusão. Recentemente ouvi uma política britânica a falar do EI na rádio e durante uma hora de conversa ela chamou-lhes vários nomes diferentes. ISIS, EI, autodenominado Estado Islâmico, ISIL, Daesh… E ela estava sempre a falar da mesma organização. O desconhecimento é tanto que as pessoas nem sabem o que lhes chamar.

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Há mais perguntas do que respostas, então.

Entre políticos e decisores sim, certamente. E no público em geral há uma grande confusão. Por isso, o meu livro é uma tentativa de contar a história desta organização e dar o seu contexto. O EI está nas primeiras páginas dos jornais de todo o mundo praticamente todos os dias. E, quando se olha para a história deles, ela é muito clara. Começou com Zarqawi, que implementou o “Reino de Terror”. Depois mataram-no e outras pessoas seguem-se, declaram o Estado Islâmico do Iraque e eles quase são destruídos. E depois é Abu Bakr al-Baghdadi que em 2010 pega na organização e a reconstrói. Isto é simples.

Abu Bakr al-Baghdadi, quando proclamou o califado, em julho de 2014, numa Grande Mesquita de al-Nuri, em Mossul, no Iraque

ISLAMIC STATE VIDEO / HANDOUT/EPA

No seu livro fala do plano dos “Sete passos” elaborado por Abu Musab al-Zarqawi [fundador do EI] e Abu Muhammad al-Maqdisi [mentor espiritual de Zarqawi] em 1996 quando os dois estavam presos na Jordânia. Olhando para trás, parece uma premonição. Eles previram algo como o 11 de setembro, no sentido que falavam de um ataque nos EUA, e uma invasão norte-americana no Médio Oriente entre 2000 e 2003. Também está lá a queda de regimes na região entre 2010 e 2013, o que aconteceu com a Primavera Árabe, em 2011. E também previram a proclamação de um califado entre 2013 e 2016.

É como as previsões de Nostradamus, que séculos antes previu o aparecimento de alguém como Hitler. Como é possível terem previsto a Primavera Árabe em 1996, com a qual não tiveram nada a ver? E como é que saberiam que iam estar na posição de declarar um califado? É um pouco assustador. Mas muito disto é sorte e nem sequer é uma obra exclusiva deles. O ocidente e os governos árabes na região é que permitiram que o Iraque se tornasse assim. Temos de perguntar se, como aparece no último dos sete passos, o EI vai mesmo estender-se dos Pirenéus à Indonésia em 2020. Duvido que se confirme. Portanto esse plano já se está a desfazer. Mas isto demonstra o quão determinados e implacáveis eles são na sua demanda por expandirem o seu domínio. Já houve quem quisesse um califado, mas estes tipos querem mesmo um califado. Não vão esperar décadas, como Osama Bin Laden. Para eles, é já.

"Os americanos achavam que iam chegar ao Iraque, ficavam alguns meses e saíam pouco depois, já com uma democracia madura pelas costas. Isso não aconteceu."

Os EUA e os seus aliados foram para a região precisamente para apanhar os talibãs e Bin Laden, mais tarde Saddam Hussein, e agora parece que há um problema maior em mãos. Que erros é que foram cometidos? No livro fala muito da ignorância com que se tratou das tensões e desequilíbrios entre sunitas e xiitas no Iraque.

Vou meter o meu chapéu da BBC, porque supostamente temos de ser neutrais. Mas todos sabemos que algo coreu mal no Iraque. A premissa da guerra era falsa, não havia armas de destruição maciça. E, sem dúvida, que houve um grande nível de ignorância dos americanos e dos britânicos em relação à sociedade iraquiana. Por exemplo, o Partido Baath [de maioria sunita, liderado por Saddam Hussein até à sua queda em 2003] foi tratado como se fosse o Partido Nazi da Alemanha. Mas as suas condições eram muito diferentes. O Partido Nazi tinha raízes pouco profundas quando comparadas com o sectarismo entre sunitas e xiitas, que existe há 1500 anos. A seguir à queda de Saddam, os xiitas [até então, maioria oprimida pela minoria sunita] deram a volta ao jogo e isso provocou o caos. E foi desse caos que Zarqawi se aproveitou para fomentar o ódio e a guerra civil entre xiitas e sunitas. Antes de 2003, os xiitas e os sunitas chegavam a casar uns com os outros, apesar de haver discriminação. Mesmo assim, viviam de forma algo harmoniosa. E Zarqawi só precisou de três anos para destruir isso. Os nossos erros ajudaram a exacerbar isso. Os americanos achavam que iam chegar lá, ficavam alguns meses e saíam pouco depois, já com uma democracia madura pelas costas. Isso não aconteceu.

Saddam Hussein foi derrubado com a invasão norte-americana e britânica de 2003. Foi executado em 2006.

Getty Images

A democracia não cresce das árvores…

Infelizmente nunca houve uma tradição democrática naquela parte do mundo. Agora já há parlamento e as pessoas podem votar, mas os deputados servem interesses que não são os do Iraque. Vivem fora do país ou longe dos sítios onde os carros armadilhados explodem todos os dias. Como se costuma dizer, o inferno está cheio de boas intenções. Derrubar Saddam Hussein foi importante, mas retirar do poder um grupo e colocar lá outro que lhe é contrário nunca é uma boa ideia. Porque o EI agora é o quê? Não é só uma organização terrorista, é uma amálgama do Partido Baath. Não é uma organização terrorista internacional, é uma organização terrorista iraquiana que também está presente na Síria. Se olharmos para a estrutura do EI, vemos lá baathistas, generais, coronéis, polícias. Especialistas a matar e a torturar pessoas. É a estas pessoas que o EI vai buscar os conhecimentos para implementar o terror. Eles já eram muito bons no terrorismo, mas para impor o terror é preciso alguém com experiência. Por isso, o EI é uma organização terrorista com um partido totalitário a seu serviço.

É possível que a invasão norte-americana do Iraque tenha radicalizado ainda mais estes membros do partido Baath? O totalitarismo já fazia parte do seu ADN. O extremismo islamista, apesar de presente, nem tanto.

Isso depende de até que ponto é que podemos achar que isto pode estar relacionado com a religião e até que ponto é que pode ser uma questão de poder, controlo e vingança.

Qual é o principal?

Se falarmos com pessoas na região, muitas vão dizer que isto não tem absolutamente nada a ver com religião. Eu acho que isto ainda faz parte do movimento de insurgência iraquiana do pós-guerra. É uma mutação entre um movimento islamista mas também é parte da insurgência iraquiana. Não há dúvidas quanto a isso. O vice-Presidente do Iraque Izzat Ibrahim al-Douri [foi sempre o número dois de Saddam, entre 1979 e 2003] combateu lado a lado com Abu Bakr al-Baghdadi. Em 2004 prestou homenagem a Zarqawi. Ou seja, é um tipo que em tempos mandava no Iraque e depois prestou homenagem a um proxeneta jordano. Isto demonstra o quão baixo o Partido Baath desceu. E isso é o que me leva a questionar até que ponto é que estes coronéis eram islamistas fanáticos. Não me parece que seja bem assim. É uma questão de conveniência, de controlo. Voltaram a ser os galos na capoeira depois de terem sido “despedidos” pelos americanos em 2013. Portanto nós podemos dizer que a Al-Qaeda, por exemplo, é uma organização puramente fundamentalista do ponto de vista religioso. O EI é mais do que isso. É isso, sim, mas numa fusão com o que sobrou do Partido Baath. E é isso que o torna tão único.

"As condições incontornáveis para formar um califado são o caos e a violência. Porque são estes dois elementos que diminuem a confiança das pessoas no Estado ou num governo. Se o Estado não consegue sequer proteger o seu povo, então que confiança que é resta às pessoas? Foi isto que vimos no Iraque. O EI conseguiu diminuir estas instituições de uma maneira muito eficaz."

Ainda assim a religião é uma das várias origens deste problema, tendo em conta a divisão antiquíssima entre sunitas e xiitas, não?

É, claro. Antes da guerra muitos iraquianos podiam estar a beber um copo num bar e nem sabiam se um e outro era xiita ou sunita. Não era assunto. Mas a divisão entre estas duas partes foi essencial para a criação do califado. Há um livro, “A gestão barbárie”, escrito por Abu Bakr Naji, o responsável pela propaganda da Al-Qaeda, que dizia que as condições incontornáveis para formar um califado são o caos e a violência. Porque são estes dois elementos que diminuem a confiança das pessoas no Estado ou num governo. Se o Estado não consegue sequer proteger o seu povo, então que confiança que é resta às pessoas? Foi isto que vimos no Iraque. O EI conseguiu diminuir estas instituições de uma maneira muito eficaz. E eles conseguiram criar esse caos precisamente ao exacerbarem a divisão entre os sunitas e os xiitas. Quase que a criaram. E esta foi a desculpa útil para minarem a credibilidade nas instituições.

Apesar do terror e do totalitarismo vivido lá dentro, será possível que o Estado Islâmico é mais eficaz a proteger o seu próprio povo do que o Iraque e as suas instituições?

Há uma vantagem de viver dentro do território do EI: é que lá o EI não anda a explodir carros-bomba em cada esquina. E isso é o que as pessoas no Iraque vivem diariamente. Mas nós não sabemos em que condições vivem as pessoas vivem no EI. Sabemos que a população civil vive constantemente assustada, porque nós estamos a bombardeá-los. Raqqa, Mossul e outras cidades são alvos muito claros. Isto deve ser aterrorizador para quem vive lá. E por cima disso há o terror que o regime lhes causa. Além disso, há relatos de falta de comida, surtos de doenças, a qualidade da água é má. Como disse, não sabemos ao certo, isto pode ser apenas propaganda, mas também é bastante provável. Por isso eu não acho que qualquer pessoa quereria viver no EI. Mas será mais seguro do que Iraque? Bom, pelo menos não sofrem os atentados do próprio EI.

"Houve amigos meus que apostaram 10 libras comigo em como eu só ia conseguir sair de lá quando um helicóptero me fosse buscar ao telhado da embaixada do Reino Unido."

O Andrew estava em Bagdade a julho de 2014, quando, a apenas 400 quilómetros de distância, Abu Bakr al-Baghdadi declarou o califado em Mossul. Como é que viveu isto do ponto de vista pessoal?

Quando eu fui para Bagdade as pessoas pensavam que a cidade ia cair sob domínio do EI. Houve amigos meus que apostaram 10 libras comigo em como eu só ia conseguir sair de lá quando um helicóptero me fosse buscar ao telhado da embaixada do Reino Unido [risos]. Acabou por não ser assim e eu nunca cheguei a pedir o dinheiro aos meus amigos. Quando o Abu Bakr al-Baghdadi apareceu na televisão a declarar o califado as pessoas ficaram nervosas, porque corria o rumor de que estavam 2 mil agentes do EI em Bagdade. Portanto não só estavam às portas da cidade como já lá estavam dentro.

De certeza que isso o preocupou, na altura…

As pessoas conseguem habituar-se a tudo. Eu não. Mas as pessoas lá não têm outra opção. A qualquer altura e em qualquer lugar, pode explodir um carro armadilhado. Se pegarmos no mapa de Bagdade e pusermos um ponto vermelho no sítio onde foi cada explosão, então o mapa fica todo vermelho. Uma vez fui em reportagem para um quartel de bombeiros, porque eles são os primeiros a ir aos locais das explosões para socorrerem as pessoas. São extremamente corajosos, porque muitas vezes há uma segunda bomba programada para explodir depois da primeira, de maneira a matar os socorristas. Dessa vez, mal chegámos ao quartel, explodiu uma bomba. Eles foram logo para o local e nós tivemos de ficar à espera que eles voltassem, porque não nos deixaram ir lá por razões de segurança. Quando voltaram, vinham nas calmas. É um dia igual aos outros. Morreram 10 pessoas.

"Se pegarmos no mapa de Bagdade e pusermos um ponto vermelho no sítio onde foi cada explosão, então o mapa fica todo vermelho."

ALI ABBAS/EPA

Isto é tudo no Iraque, mas há a guerra na Síria. Podemos dizer que este conflito foi uma lufada de ar fresco para o EI? Era este o empurrão que eles precisavam para se confirmarem ainda mais?

Evidentemente. Foi perfeito para eles. Tudo começou quando Abu Bakr al-Baghdadi enviou Abu Mohammad al-Julani e mais sete radicais para estudarem a situação na Síria. Foi nessa altura que al-Julani terá cortado as ligações com al-Baghdadi, fundou a Al-Nusra e conseguiu tomar o controlo de Raqqa [em março de 2013]. Foi a primeira cidade do regime de Assad a cair para a oposição. Nessa altura, al-Baghdadi quis voltar a controlar Al-Nusra para passar a ter Raqqa debaixo do braço, porque era muito importante ter aquele centro. A Al-Nusra não cedeu, tornaram-se inimigos, mas o EI foi lá e tomou o controlo total de Raqqa [em 2014]. Hoje em dia é o centro do EI, é a capital. Era essencial para o EI passar de uma organização terrorista para um Estado per se. É o princípio e o centro do califado.

E é um centro que já tem ramificações na Europa. Viremo-nos para a Europa. O que é que leva jovens europeus a matar os seus compatriotas, nas mesmíssimas cidades onde cresceram? Alguns até o fazem em nome de causas que nem sempre fizeram parte das suas vidas. Salah Abdeslam e o irmão, ambos responsáveis por parte dos ataques de Paris, geriam um bar e vendiam droga até poucos meses antes dos atentados de Paris.

Eu já investiguei este fenómeno no Reino Unido. Fui a Bristol e falei com pessoas na mesquita, que me disseram “antigamente eu ia à escola com filhos de paquistaneses e filhos de ingleses e tudo corria bem”. Mas o que se passa agora é que há escolas públicas e depois escolas islâmicas separadas. As comunidades estão cada vez mais separadas. E é assim em vários sítios. Em Paris, em Marselha, em Bruxelas, com o bairro de Molenbeek. O isolamento tem os seus custos e cria um sentimento de islamofobia. E é precisamente isso que o EI quer criar. A islamofobia serve os seus interesses e radicaliza os muçulmanos, tal como conseguiram fazer no Iraque. A tarefa dos recrutadores do EI fica mais fácil. É comum falarem da Hégira [fuga de Maomé para Medina depois de ser expulso de Meca], “vem para a nossa terra, nós não te perseguimos, vem para o paraíso muçulmano”.

"O isolamento tem os seus custos e cria um sentimento de islamofobia. E é precisamente isso que o EI quer criar. A islamofobia serve os seus interesses e radicaliza os muçulmanos, tal como conseguiram fazer no Iraque. A tarefa dos recrutadores do EI fica mais fácil."

No livro faz uma descrição de Zarqawi [fundador do EI] como sendo um tipo que bebe mais do que a conta, um “proxeneta” que era um “ladrão de rua” e um “arruaceiro” antes de se radicalizar na prisão. Isto parece a biografia de Salah Abdeslam e de outros. Há aqui um padrão de jovens problemáticos ou marginalizados?

Se olharmos para o caso do Jihadi John [alcunha de Emwazi al-Dhafiri, soldado britânico do EI que apareceu em vários vídeos a decapitar reféns], e eu falei com pessoas que o conheciam, ficamos a saber que ele tem um passado muito conturbado, até do ponto de vista psiquiátrico. No sábado passado estive com Robert Verkaik, que escreveu uma biografia do Jihadi John. A história dele é muito interessante. A família dele esteve no Kuwait, onde ele nasceu, mas saíram porque eram discriminados pelo facto de serem iraquianos. Vieram para o Reino Unido, onde a integração também não foi total. O Jihadi John acabou por se transformar numa pessoa com problemas de confiança, com depressão. E certamente que a discriminação que sentiu no Reino Unido não ajudou. Isto é comum. Eu sou um britânico branco, a minha mãe é escocesa e o meu pai é da Cornualha. Para nós é fácil e podemos nem notar o racismo subliminar que existe. Mas os meus amigos muçulmanos, que até fumam, bebem, namoram e chegam a ser ateus, sentem essa discriminação. Isto come as pessoas por dentro. E se há uma mensagem mais poderosa a chamá-los, se há um íman, isso dá-lhes uma sensação de poder. E há pessoas que podem perder a cabeça quando lhes prometem poder, mulheres e um bom salário. E aqui volto àquela questão: isto tem a ver com religião ou terá antes a ver com poder?

Estamos a falar de um tipo de poder muito concreto e até mundano. Mulheres, dinheiro e uma arma na mão.

Exato. Finalmente, sentem que são importantes. Não é só um problema religioso. Tem a ver com poder. Se Salah Abdeslam geria um bar onde vendia álcool, como é que podemos pensar que isto é um fenómeno religioso? E o mesmo se aplica ao EI, que faz dinheiro a vender drogas, mulheres, antiguidades ou a roubar bancos. Eu não vejo nada disso escrito no Corão.

Além de falta de pertença cultural, há aqui também um problema de identidade nacional? É pouco provável que o Jihadi John se reconhecesse como 100% britânico.

Certamente. Eu tenho uma amiga muito próxima que bebe, fuma, come porco, é ateia mas os pais são muçulmanos. Ela não vai à mesquita, sequer. Mas até ela tem um sentimento de nós e eles. Noutro dia ela estava no autocarro e uma senhora com um ar bastante respeitável chegou-se ao pé dela e disse-lhe: “Cheiras a caril”. Eu nem vou dizer qual foi a resposta da minha amiga — ela respondeu-lhe ao que é que ela cheirava. Eu fiquei chocado quando soube disto. Foi em Londres! Ela nem sequer usa um hijab ou nada disso. Estava de jeans. Para mim, ela é tão britânica como os fish and chips. Mas não sente que é aceite por todos. E isso leva a que muitas pessoas fiquem ressentidas.

"Se Salah Abdeslam geria um bar onde vendia álcool, como é que podemos pensar que isto é um fenómeno religioso? E o mesmo se aplica ao EI, que faz dinheiro a vender drogas, mulheres, antiguidades ou a roubar bancos. Eu não vejo nada disso escrito no Corão."

De volta ao Médio Oriente. É possível que o Estado Islâmico tenha tido mais olhos do que barriga? Podemos estar perante uma fase descendente do EI?

Talvez. Neste momento, têm 60 das nações mais poderosas do mundo contra eles. Houve alguma falha nos cálculos do EI. Mas Mark Twain disse uma vez: “Os rumores da minha morte eram bastante exagerados”. Eu penso que isso se aplica ao EI. É verdade que perderam Palmira e outras cidades no Iraque, como Sinjar, Tikrit e Ramadi. Mas isso são batalhas, eles ainda não perderam a guerra. Esta organização esteve quase a desaparecer em 2010 e depois voltou. E voltou não só por causa do génio demoníaco dos seus líderes, mas também pelas condições da região. Há a relação venenosa entre a Arábia Saudita e o irão, a divisão entre sunitas e xiitas, a corrupção que está a destruir o exército iraquiano e a ideologia do Partido Baath que ainda não desapareceu.

Já foi provado que tudo isto os ajuda a crescer.

Claro. São ingredientes perfeitos. Depois, se falarmos com especialistas sobre terrorismo, eles dizem que pode haver ainda pior do que o EI. Eu já não sei o que pode ser pior. Só se for o EI com uma bomba nuclear. A verdade é que já usaram armas químicas e podem voltar a fazê-lo.

"A ideia de que o EI está prestes a acabar não faz sentido. Certamente que tiveram contratempos. Estão em baixo, mas não estão derrotados. O ocidente ainda tem muito que lutar e muito para aprender sobre o EI.

Então não acredita que o EI esteja numa fase decadente, mesmo que tenha uma vasta coligação internacional contra eles?

O mais sensato será pensar que eles têm pouca probabilidade de sobreviver, porque o mundo já percebeu que não pode permitir ter o Estado Islâmico por perto. Mas mesmo que os tirem do Iraque a da Síria, isso não significa o seu fim. As organizações terroristas já demonstraram várias vezes que conseguem subsistir sem um território próprio. O EI já o fez antes. Por isso a ideia de que o EI está prestes a acabar não faz sentido. Certamente que tiveram contratempos. Estão em baixo, mas não estão derrotados. O ocidente ainda tem muito que lutar e muito para aprender sobre o EI.

Aprender o quê, por exemplo? O que é que o Ocidente ignora?

Ignora o facto de o EI ser uma migração do Partido Baath. E poucas pessoas já se aperceberam de que eles querem de facto conquistar o mundo. Acho que isto ainda é uma surpresa para muita gente. Fala-se do califado dos Pirenéus até à Indonésia, mas o que eles querem é o domínio global. Chegam a dizer o que é que vão fazer à Casa Branca e ao Vaticano quando lá chegarem.

Mas será que isso é minimamente realista?

Não.

É apenas uma narrativa da máquina de propaganda do EI, então?

É um sonho louco que muitos já tiveram no passado e que não conseguiram cumprir. Não sei se Adolf Hitler alguma vez disse com todas as letras que ia dominar o mundo, mas esteve certamente a caminho disso. Os nazis foram uma ameaça significativamente maior para o mundo do que estes tipos, vamos ser totalmente honestos. Mas mesmo assim é com isso que eles sonham. As pessoas têm de saber que eles querem marchar sobre Lisboa. As ambições deles vão além do Médio Oriente.

"Os nazis foram uma ameaça significativamente maior para o mundo do que o Estado Islâmico, vamos ser totalmente honestos."

Getty Images

Mas é uma perspetiva irrealista, como disse. Faz lembrar a Coreia do Norte, que de forma isolada e pontual pode causar danos graves, mas que, por outro lado, declara intenções que parecem ser fora do seu alcance. Por outro lado, houve a Alemanha nazi. Acha que o EI, em termos de perigo e alcance, está algures entre estes dois?

Acho que sim. Quando o EI entrou em Mossul havia lá 30 ou 40 mil pessoas. Agora estima-se que haja 70 mil. Dá para imaginar quão inabitáveis algumas partes do mundo passariam a ser se eles fossem 100 mil? Esse é o perigo que todos corremos. Até agora, o ocidente tem intervindo naquela região e, se formos honestos, vemos que a nossa resposta ao problema falhou. E estamos a contar com os curdos, com os xiitas e com o exército iraquiano para os derrubarem enquanto nós mandamos umas bombas dos céus. Mas será isso suficiente para derrotar o EI? Essa é a questão. Há muita gente que não acha isso possível.

É preciso haver “botas no terreno” [soldados]?

Sim, mas as botas de quem? Se forem as nossas, então é mesmo isso que o EI quer. Eles querem que o ocidente volte lá. Nós já tivemos as nossas botas no Iraque e depois demos à sola. Será que agora seria diferente só porque é o EI?

Voltamos ao início, então. Há mesmo mais dúvidas do que respostas.

Sim, é isso.

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