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Poderá a decisão do Tribunal Constitucional alemão pôr em causa as políticas do BCE?

Se o Tribunal Constitucional alemão não a inverter a sua sentença, o edifício da União Europeia ficará profundamente abalado. Como evitar isso? Ensaio de Abel Mateus.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Aquando da criação da União Monetária da Zona Euro, o Tribunal Constitucional Alemão (TCA) declarou-se como guardião do Tratado. A opção foi influenciada pelo receio generalizado entre o povo alemão de que a troca do marco alemão pelo euro ressuscitasse fantasmas do passado, como a experiência traumática da hiperinflação dos anos 1920. Este Tribunal considerava que os Estados-membros eram soberanos e que a cedência de soberania às instituições comunitárias, como o BCE, era feita na conta e medida necessárias para o exercício do mandato explícito no Tratado. É nesta base que o Tribunal, seguindo uma queixa de quase dois milhares de cidadãos alemães, emitiu um julgamento no início de maio que coloca em causa o programa de compra de obrigações dos Estados-membros, com vista a estimular a economia. O que é histórico é não só que este acórdão vai contra o julgamento preliminar do Tribunal de Justiça Europeu (TJE), que havia confirmado a legalidade daquele programa, mas sobretudo que um tribunal nacional declare ilegal a atuação de uma instância comunitária. Se o BCE não for capaz de responder às dúvidas do Tribunal alemão no prazo de 3 meses, o Bundesbank fica obrigado a descontinuar o programa dentro da Alemanha — e o Governo e Parlamento alemães a fazer tudo para parar o programa.

Vamos analisar neste ensaio os argumentos económicos em que o Tribunal alemão se baseou para tomar a sua decisão, não deixando de fazer referência aos argumentos de natureza jurídica. Note-se que o Tribunal alemão não questiona que o BCE e o Eurosistema, constituído pelo conjunto dos bancos nacionais da Zona Euro (SBCE), esteja a violar o princípio da proibição de financiamento dos défices — porque as obrigações são adquiridas em mercados secundários, e não diretamente aos Tesouros nacionais. O que o Tribunal alemão questiona é a proporcionalidade dos programas de compra de obrigações, conhecidos por Quantitative Easing (QE), no sentido de que têm impactos na economia real e na disciplina orçamental dos Estados, que extravasam as competências atribuídas pelo Tratado ao BCE/SBCE. E, neste ponto, o Tribunal alemão contradiz o TJE, que tinha considerado que não havia esse ultrapassar do mandato. A nosso ver, o TJE fez uma análise muito ligeira desta questão e abriu o flanco à decisão do Tribunal alemão.

As questões de natureza económica vão ao cerne das teorias monetárias e macroeconómicas, pelo que exigem uma argumentação técnica que poderão exigir uma leitura mais atenta por parte dos nossos leitores. Como veremos, em nossa opinião, o Tribunal alemão e os economistas alemães que têm vindo a escrever sobre estas questões em seu apoio baseiam-se em argumentos de teorias monetaristas que levantam muitas dúvidas teóricas e empíricas. Essa é a boa notícia: os economistas e juristas do BCE que têm de responder ao Tribunal alemão têm pela frente um trabalho árduo, mas que não é impossível. Evidentemente, as consequências políticas para o futuro da UE serão bastante gravosas, caso a decisão do Tribunal Constitucional alemão prevaleça.

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Desde 1993 que o Tribunal Constitucional alemão, ao avaliar a legalidade da ratificação do Tratado de Maastricht pela Alemanha, considerou ter poder jurisdicional sobre a legalidade das instituições europeias e a sua atuação.

Não é possível compreender as questões levantadas pelo Tribunal alemão sem nos reportarmos à teoria monetária prevalecente aquando da fundação da União Monetária nos finais dos anos 1980. A hiperinflação alemã e tantos episódios de elevada inflação, como em Portugal nos anos 1920 (ver Mateus, Economia Portuguesa, 2004), foram devidos à rotativa dos bancos centrais que criava moeda em grandes quantidades para financiar os défices orçamentais. E estes episódios só se resolveram depois de reformas orçamentais para equilibrar os orçamentos, e o comprometimento pelos Governos de abandonar as políticas inflacionistas. E, para dar confiança aos agentes de que se abandonam estas políticas, a forma que os Estados tinham de “atar as mãos” era de criar um banco central independente, para acabar com a tentação, e de proibir o financiamento monetário dos défices.

Daí que o Tratado de Maastricht tenha consagrado (i) a independência do BCE e bancos centrais da Zona Euro (artigo 130.º do TCUE e artigos 9.º, 11.º e 14.º do Protocolo IV); (ii) tendo como objetivo primordial a estabilidade dos preços (artigos 127.º e 282.º do TCUE); e (iii) a proibição do financiamento direto dos défices orçamentais (artigo 123.º do TCUE).

O acórdão do Tribunal Constitucional alemão

É importante desde já clarificar que o TJE é quem controla a legalidade dos atos do BCE (art. 263.º do TCUE). No decorrer do processo a correr no TCA, em relação ao Programa de Compras de Títulos dos Estados Membros (PSPP), de Quantitative Easing (QE), este tribunal enviou um conjunto de questões ao TJE, para a emissão de um julgamento preliminar — isto é, um julgamento que deverá servir de orientação ao tribunal nacional para a sua decisão final — relativamente ao PPSP. Na decisão Weiss de 11.12.2018, o Tribunal julga: (i) que o PSPP não viola o art. 123.º do TCEU, pois adquire obrigações no mercado secundário de títulos, e não no primário, depois de os Tesouros respetivos terem vendido aos agentes económicos os títulos, confrontando as condições específicas do mercado, e que não contribui para o relaxamento da disciplina orçamental; e (ii) não viola o princípio da proporcionalidade, porque excede o mandato do BCE tal como ele é prescrito no Tratado e Protocolo, por causa do elevado volume do PSPP e de este ter efeitos de política económica (sobre os balanços dos bancos comerciais e condições de financiamento dos Estados) tão importantes como a prioridade da política monetária. Ora, no seguimento de uma queixa feita nos Tribunais alemães por um grupo de 1,750 pessoas, em 2015, o TCA colocou as questões, anteriormente mencionadas, ao TJE.

Desde 1993 que o TCA, ao avaliar a legalidade da ratificação do Tratado de Maastricht pela Alemanha, considerou ter poder jurisdicional sobre a legalidade das instituições europeias e a sua atuação. Naquele julgamento, o TCA confirmou que o TJE tinha a responsabilidade primária na fiscalização do Tratado, mas levantou a possibilidade de o TCA executar essa fiscalização jurídica caso o TJE não a fizesse adequadamente. Da mesma forma, afirmou o seu direito de avaliar a legalidade dos instrumentos das instituições e agências europeias, para determinar se os seus atos permaneciam dentro dos limites dos direitos que lhes eram conferidos pelos Estados-membros (conhecido como controlo dos atos ultra-vires). Esta posição é tudo exceto consensual, pois restringe a competência das instituições comunitárias, a supremacia da lei comunitária sobre as leis nacionais e a competência única atribuída ao TJE para julgar a legalidade dos atos das instituições da UE.

É fundamental perceber que a decisão do TCA sobre o PSPP, emitida a 13 de maio, não sugere que as políticas de QE, especificamente no caso do PSPP, sejam contrárias ao art. 103 TCUE, que proíbe o financiamento direto dos défices públicos. Mas o TCA põe em causa o uso desta política quanto à sua “proporcionalidade”. Ou seja, se esta política é proporcional aos objetivos que estão legalmente cometidos ao SEBC/BCE, e não extravasa o seu mandato, em termos comunitários. No fundo, o TCA avalia se esta instituição não está a atuar para além do que lhe foi delegado pelo Tratado da UE, interferindo na soberania dos Estados-membros. Ora, o TCA acha que está.

Na decisão, o TCA acusa o TJE de ter feito uma avaliação abaixo do aceitável. Isto porque não faz uma avaliação compreensiva de se o SEBC e o BCE observam os limites do seu mandato, porque não deu a importância devida ao princípio da proporcionalidade, e porque não faz qualquer avaliação dos efeitos do PSPP. Um programa de compra de títulos do Estado só respeita o princípio da proporcionalidade se for um meio adequado e necessário para atingir os objetivos específicos do mandato do BCE, e este tem a responsabilidade de fazer o balanço entre os objetivos de política monetária e de política económica, em geral. Porque o BCE não faz a avaliação dos efeitos económicos (por exemplo, na dívida pública, poupanças, manutenção de empresas sem viabilidade económica, e preços de ativos), não cumpre o princípio da proporcionalidade.

Mesmo que o BCE não esteja a financiar diretamente os défices orçamentais, o QE também está a criar um elevado montante de reservas (base) monetária junto dos bancos comerciais. A dúvida justifica-se, portanto: não estará o BCE assim a criar um elevado potencial de inflação futura?

O que de facto está em causa, do ponto de vista económico, e em nossa opinião, são duas questões muito concretas, levantadas pela queixa dos cidadãos alemães, e que se encontram plasmadas em várias declarações e publicações de economistas alemães signatários. Primeiro, se o QE não faz transferências implícitas dos cidadãos alemães para os cidadãos de outros Estados, sem que elas tenham sido reconhecidas e acordadas entre os governos. Segundo, se os cidadãos alemães não estão a incorrer em riscos derivados da mutualização da dívida, que possam no futuro implicar uma subida de impostos para esses mesmos cidadãos, sem ter havido uma autorização prévia.

As questões são legítimas. Por conseguinte, do ponto de vista económico, haverá que esclarecer os dois pontos técnicos em causa. Primeiro, se o QE implica transferências implícitas entre Estados, seja por efeitos na inflação a curto ou médio prazo, seja por transferências dentro do sistema monetário. Segundo, se o QE implica mutualização de riscos entre Estados-membros, que tipo de riscos existem e como se repartem esses riscos, seja no curto ou médio prazo. Ora, estes riscos, em termos de moeda, reduzem-se, mais uma vez, aos efeitos na inflação a curto e médio prazo. Mas a outra hipótese é de perdas de capital no balanço do BCE.

A opção que o BCE não seguiu: distribuir dinheiro por helicóptero

Uma violação clara do princípio de não financiamento direto do défice orçamental, e do Tratado, seria a compra direta (em mercado primário, ou em conta aberta no banco central a favor do Tesouro) de obrigações do Tesouro. Esta sugestão tem sido feita no contexto da atual crise por economistas espanhóis e italianos, como Gali, e está a ser seguida pelo Banco de Inglaterra. A sugestão de Milton Friedman de se distribuir dinheiro pela economia, deitando notas de um helicóptero, é hoje interpretada como aumentar o défice orçamental através da criação de reservas pelo banco central, ou seja, o banco central financia diretamente o défice.

A mecânica da criação de moeda por helicóptero é muito simples. Primeiro, o Tesouro emite um título e manda-o diretamente para o banco central, sendo depositado na sua conta. Segundo, o Tesouro recebe os euros do banco central e usa-os para transferências para empresas ou famílias, ou para comprar bens ou pagar aos funcionários. O recipiente destes euros deposita-os no seu banco, o que faz aumentar as reservas bancárias.

Como é que isso se compara com a política de QE? No QE, o banco central compra o título do Tesouro a um privado e deposita reservas no banco comercial, na conta do privado. Neste aspeto, as políticas são semelhantes: ambas levam a um aumento dos títulos do Estado e criação de reservas bancárias em euros. Contudo, existe uma diferença essencial entre as duas políticas. No caso da moeda por helicóptero, o banco central recebe o título diretamente do Tesouro, ou seja, o título é colocado no mercado primário diretamente no banco central e é o Tesouro que decide quantos euros têm de ser criados, de acordo com a política orçamental. No caso do QE, é o banco central que decide quantos Títulos compra no mercado secundário, de acordo com o objetivo de política monetária. Assim, o banco central controla o seu balanço e mantém a sua independência. Por outro lado, o Tesouro, ao colocar os seus títulos no público, tem de respeitar as condições do mercado.

São estas diferenças fundamentais que o TJE sublinhou na sua decisão e que o TCA também admitiu.

O Reino Unido foi o primeiro país desenvolvido a aceitar o financiamento monetário do Tesouro, no âmbito do programa contra o coronavírus, ao qual não é indiferente já ter saído da União Europeia. O economista-chefe do Banco de Pagamentos Internacionais de Basileia considera esta política uma quebra da reputação de independência do banco central, que no futuro poderá estar limitado para utilizar os instrumentos das taxas de juro.

Mas mesmo que o BCE não esteja a financiar diretamente os défices orçamentais, o QE também está a criar um elevado montante de reservas (base) monetária junto dos bancos comerciais, como vimos num nosso ensaio anterior. A dúvida justifica-se, portanto: não estará o BCE assim a criar um elevado potencial de inflação futura?

As operações de Quantitative Easing do BCE

Os principais bancos centrais da Europa e América do Norte têm realizado programas de QE. O Gráfico 1 mostra o total de ativos acumulados desde a crise financeira global. O Japão é o país que tem uma história mais longa, o banco central da Suíça é o que tem o maior ativo relativo ao PIB, e o SBCE é o segundo grupo com mais peso. O caso suíço é diferente dos restantes, pois resulta do influxo de divisas no país, levando à necessidade de investir em títulos denominados em euros, USD e outras moedas.

O BCE e os outros bancos centrais não estariam a cumprir a sua missão caso a taxa de inflação desde 2007 tivesse sido claramente diferente de 2% ao ano. Ora, o gráfico 2 mostra que todos estes países tiveram médias de inflação, entre 2008 e 2019, inferiores a 2%, com os EUA com a média mais próxima do objetivo (1,8%), seguido da Zona Euro (1,4%). Japão (0,4%) e Suíça (0,2%) tiveram taxas de inflação próximas de zero, que já são próximas de deflação. Por razões de natureza estatística, uma das quais é a não incorporação das melhorias de qualidade no índice de preços, uma taxa de inflação de 2% é próxima da estabilidade de preços. Como estas estatísticas confirmam, apesar de mais de 10 anos de experiência com programas de QE, nenhum dos países experimentou um período sustentado de inflação. Antes pelo contrário, estudos académicos sobre estes países mostram que a política de QE foi importante para evitar a deflação. Contudo, este não é o consenso entre todos os economistas, dos quais uma grande parte dos alemães que participaram na queixa ao TCA.

Foram os QEs, e em particular o PSPP, proporcionais à missão do BCE manter a estabilidade dos preços? A resposta, em termos o mais simples possível, é afirmativa. Existem centenas de trabalhos académicos a demonstrar que o QE evitou uma maior deflação, o que contribuiu para o cumprimento do objetivo primário do BCE. Além disso, estimulou o crescimento do PIB e reduziu o desemprego, fatores que também contribuíram para uma menor deflação. Por exemplo, simulações com o modelo da zona Euro mostram que o QE, iniciado em 2015, reduziu as taxas de juro das obrigações públicas a 10 anos em 20 pontos base, aumentou a inflação em quase 0,5 pontos percentuais e o PIB em 1,1 pontos percentuais, atingindo o pico passados dois anos. De facto, o QE evitou uma descida do preço dos títulos da dívida pública, e perdas para os detentores da dívida (como observa o TCA), mas o impacto mais importante está em evitar a deflação e estimular o crescimento do PIB. Como discutimos num ensaio anterior, há ainda outros efeitos: de subida dos preços das ações, estímulo do crédito à economia, e de subida dos ativos dos fundos de pensões que geralmente estão investidos em ativos financeiros e reais. Estas respostas podem ser amplamente documentadas pelos economistas do BCE em resposta ao pedido de fundamentação do PSPP, feito pelo TCA.

Suponhamos que, dentro de dois a três anos, depois da recuperação da crise da Covid-19, as economias entram numa fase de expansão. Como é que é possível aos bancos centrais conter a inflação?

Mas suponhamos que se argumenta: OK, no curto prazo temos todos estes efeitos positivos sobre a economia. Mas não existe o risco de subida de inflação a longo prazo? Como é que é possível conter o efeito das elevadas reservas nos bancos, e o seu impacto sobre a economia real, no longo prazo?

Contenção dos efeitos das reservas do sistema bancário no longo prazo

O QE não só permite ancorar as expetativas de inflação no médio e longo prazo, como a formulação da chamada “forward guidance” permite aos agentes formular as suas expetativas de forma quantitativa. É verdade que se têm verificado dificuldades em descontinuar as políticas de QE, como aconteceu nos EUA em 2017 e na Zona Euro em 2018, com efeitos negativos sobre o crescimento da procura agregada, mas o que temos, desde a crise financeira global de 2008, são choques deflacionários sobre as economias, que agora culminam com crise pandémica.

Mas suponhamos que, dentro de dois a três anos, depois da recuperação da crise da Covid-19, as economias entram numa fase de expansão. Como é que é possível aos bancos centrais conter a inflação? Evidentemente que a primeira política seria a subida das taxas de juro de referência. E como conter os efeitos inflacionários do enorme volume de reservas bancárias? A primeira política seria inverter a atual política do BCE de “taxar” os depósitos dos bancos com taxas de juro negativas, para taxas de juro positivas. Estas taxas dariam incentivo aos bancos para deter as reservas em comparação a utilizá-las para créditos à economia.

Existem ainda outros instrumentos. Um deles, largamente utilizado nos anos 1960 a 1980, é forçar os bancos comerciais a manter reservas obrigatórias, estabelecendo rácios sobre os depósitos, que permite limitar a subida das taxas de referência. Outro instrumento ainda é à semelhança da experiência de Portugal nos anos 1990. A manutenção de elevadas taxas de juro pelo Banco de Portugal (BdP), comparadas com a desvalorização programada, levou a um enorme afluxo de divisas, com o consequente aumento das reservas bancárias, em semelhança ao que a Suíça está a experimentar, que tiveram que ser esterilizadas através da sua conversão em títulos do banco central a longo prazo, que eram transacionáveis nos mercados grossistas (ver o Relatório do Conselho de Administração do BdP de 1994).

Estas são algumas das políticas mitigadoras dos riscos de inflação que o PSPP ou outras políticas de QE, e que os economistas do BCE poderão argumentar, tendo em conta que conforme a fase do ciclo económico, assim será a atuação apropriada (e proporcional) dos bancos centrais.

É algo bizarro que se esteja a confundir a doença com o remédio. Vários economistas signatários da queixa ao Tribunal Constitucional alemão, e que foram no passado dirigentes do BCE, têm chamado a atenção para os efeitos negativos de taxas de juro próximas de zero ou mesmo negativas, sobre a economia real. Taxas de juro ultra-baixa estimulam a tomada de risco nos mercados financeiros, o que aumenta o risco sistémico, alimenta bolhas especulativas nos mercados de ativos, como nas bolsas, e, na sua manifestação mais nefasta, cria crises bancárias.

No caso de haver subida da inflação acima dos 2% numa fase expansionista do ciclo, ou numa fase de inflação com recessão (stagflation) se houver um choque sobre a oferta provocado por aumento de custos de matérias-primas ou efeitos de uma política de salários, haveria evidentemente o que se designa por um “imposto inflacionário” sobre a economia da zona Euro. E, nessa altura, mantendo a reputação de independência e de uma posição não acomodatícia do BCE, permitiria conter esse imposto. Esse imposto seria pago de forma equivalente e por todos os indivíduos da zona Euro, mas que também beneficiaram da política de QE no caso de deflação.

Mas não haverá transferências implícitas e mutualização de riscos na política de QE praticada pelo BCE? É que, como referimos recentemente, na ausência de obrigações emitidas por um Tesouro europeu, o BCE tem de comprar títulos emitidos pelos Estados membros, que têm diferentes níveis de risco, porque existem níveis de dívida pública e políticas orçamentais diferentes entre esses Estados. O economista alemão Werner Sin, um dos signatários da queixa ao TCA e dos mais influentes na Alemanha, afirmava recentemente que nem o FED na implementação do QE se arriscou a comprar ações dos Municípios americanos.

O Tribunal Constitucional alemão e outros efeitos sobre a economia real

O TCA cometeu um erro, em nosso entender, ao não considerar o objetivo de estabilidade dos preços em termos simétricos, em torno dos 2%. Ou seja, é tão grave uma economia ter uma inflação bastante superior a 2%, como ter uma deflação com a taxa de crescimento dos preços bastante abaixo dos 2%. Apesar de se ter discutido acesamente, durante a elaboração do Tratado de Maastricht, se se devia especificar nos estatutos do BCE o duplo objetivo de (i) estabilidade dos preços e (ii) contribuir para o crescimento e pleno emprego da economia, à semelhança do FED, apenas ficou o primeiro. E o entendimento era que a deflação estava geralmente associada a elevadas taxas de desemprego. Ora, no julgamento do TCA, dá-se bastante peso à inflação potencial futura que o QE poderá gerar, mas não se dá igual peso ao facto de ser necessário alargar o espaço de atuação monetária do BCE através do instrumento QE.

Também é algo bizarro que se esteja a confundir a doença com o remédio. Vários economistas signatários da queixa ao TCA, e que foram no passado dirigentes do BCE, têm chamado a atenção para os efeitos negativos de taxas de juro próximas de zero ou mesmo negativas, sobre a economia real. Taxas de juro ultra-baixas, durante um período alargado, estimulam a tomada de risco nos mercados financeiros. A tomada excessiva de risco, por sua vez, aumenta o risco sistémico, alimenta bolhas especulativas nos mercados de ativos, como nas bolsas, e, na sua manifestação mais nefasta, cria crises bancárias.

Uma política monetária ultra-expansionista pode levar a uma alocação de recursos desequilibrada, bloqueando o processo de ajustamento necessário quando existem graves desequilíbrios económicos. As baixas taxas de juro levam a distorções nos mercados, como aconteceu nos mercados de imobiliário nos EUA, Espanha e Irlanda, no período anterior à crise financeira global. E baixas taxas de juro prolongadas sustentam elevados níveis de endividamento, e levam os bancos a manter créditos malparados, congelando parte deste crédito nas chamadas “empresas zombies”.

Não há dúvida que estas preocupações devem estar presentes na mente dos membros dos Conselhos de qualquer banco central. E estas são apontadas pelo TCA como tal. Porém, as baixas taxas de juro são, em primeiro lugar, resultado de fatores como a estagnação secular, excesso de poupança mundial ou de choques prolongados como foi a crise financeira global. O QE e as baixas taxas de juro do BCE são uma política para estimular a procura global e tirar a economia deste equilíbrio desfavorável.

Qual teria sido o impacto sobre a economia europeia se, digamos que por volta de 2015, o BCE tivesse subido as taxas de juro para 4% em vez de ter adotado o QE, como uma situação normal de crescimento económico aconselharia? A maioria dos economistas responderia que a Zona Euro teria entrado numa nova recessão.

Também parece estranho que o TCA exija que o BCE, nas suas decisões, faça o balanço dos efeitos da política monetária nos preços, com os efeitos económicos aqui referidos. Não é possível com um único instrumento atingir múltiplos objetivos, havendo conflitos entre si. E, sobretudo, o BCE está obrigado a cumprir o objetivo primordial da estabilidade dos preços. Suponhamos mais uma vez que, para combater uma bolha no mercado imobiliário em Espanha, o BCE sobe as taxas de juro. Isso não faz qualquer sentido. Primeiro, a política monetária dirige-se à Zona Euro no seu conjunto. Segundo, não faz sentido estar a provocar uma recessão provocada pela subida dos juros, para resolver um desequilíbrio num mercado setorial. Para resolver estas questões setoriais ou de tipos de empresas (zombies, por exemplo), é que se desenvolveu a regulação macro e micro prudencial dos bancos. Se ela não for implementada com rigor, não pode ser substituída pela política monetária agregada.

Em conclusão, o TCA levanta questões importantes e interessantes sobre os vários canais de influência dos diferentes instrumentos de política monetária, que devem ser tomados em consideração na implementação da política monetária. Mas estes impactos não podem prevalecer sobre o impacto na inflação/ deflação. Os juízes devem ter em mente que existe uma panóplia de instrumentos que devem ser usados pelas diferentes instituições para resolver os problemas de política económica.

Transferências implícitas e mutualização dos riscos

Um dos principais argumentos dos economistas alemães é que o QE implementado pelo SEBC leva a transferências entre os Estados-membros, que não são autorizadas pelos respetivos Governos, e assim ultrapassam o mandato conferido pelo Tratado ao BCE e aos bancos centrais da zona Euro. Nesta publicação, os quatro professores da Universidade de Kiel afirmam: “quando o QE envolve a compra de obrigações públicas, levantam-se questões problemáticas em relação à partilha de risco e ao financiamento monetário dos défices públicos. Enquanto estes aspetos são irrelevantes no caso dos EUA e do Reino Unido, transferências implícitas via o Eurosistema são uma questão importante na zona do Euro, que está construída com base no princípio da soberania fiscal nacional e na cláusula do no-bailout”.

Para termos uma perspetiva da questão levantada, tomemos o caso de Portugal. O Gráfico 3 mostra o montante das obrigações do Estado português nos balanços do BCE e Banco de Portugal. Estes ativos, que eram negligíveis antes da crise do Euro, atingiam €28 mil milhões, ou 33% da dívida no mercado, em dezembro de 2014 — ano em que Portugal saiu do programa de ajustamento devido à crise financeira. Foi em grande parte devido ao programa de compras de títulos dos países em crise (SMP), iniciado em 2012, que o spread das obrigações portuguesas caiu abaixo dos 4 pontos percentuais em inícios de 2014. Contudo, foi a conjugação desta com outras políticas que resolveu o problema da crise, assumindo também um papel importante o programa de ajustamento do governo de Passos Coelho. Até janeiro de 2016, o montante subiu quase metade, para €45 mil milhões, ou 47% da dívida de mercado. No Gráfico 4, podemos observar que nesta data o spread das taxas de juro das obrigações já tinha baixado para os 2 pontos percentuais. Por conseguinte, podemos concluir que as políticas de QE, dirigidas a apoiar os países da crise do Euro, conjugadas com as políticas de ajuda da UE e os programas de ajustamento destes países, tiveram um impacto decisivo na resolução da crise. Ora, estas políticas de QE não comprometeram o objetivo de estabilidade dos preços.

Mas existe um argumento que não vimos ainda ser usado. Os estatutos do BCE (art. 2.º do Protocolo) referem que, “sem prejuízo do objetivo de estabilidade dos preços, [o BCE] deve apoiar as políticas económicas gerais da União com vista a prosseguir os objetivos da União conforme especificado no art. 3.º do Tratado”. Ou seja, o BCE tem no seu mandato como objetivo apoiar e manter a integridade da zona Euro. Daí que seja sua obrigação contribuir para evitar ou resolver crises financeiras na zona Euro.

Dito isto, não concordamos com o princípio, várias vezes manifestado por Draghi, de que a política monetária deveria eliminar os spreads das taxas de juro entre mercados nacionais, entendido como eliminar a segmentação do mercado do Euro. Estes spreads devem refletir os prémios de risco da dívida, para desencorajar o sobre-endividamento, o que é sobretudo importante nas maturidades a médio e longo prazos.

E o que aconteceu depois da entrada do QE de janeiro de 2015? Como podemos observar no Gráfico 4, o spread da taxa de juro manteve-se em torno dos 2%, apesar do acréscimo de cerca de €15 mil nos balanços do BdP/BCE. Porém, a partir de janeiro de 2016 e até outubro de 2017, os spreads dispararam, mantendo-se entre 2 e 4 pontos percentuais, que coincidiu com a formação do governo de António Costa, com o apoio da extrema-esquerda. Neste período, BdP/BCE compraram mais €20 mil milhões, tendo o rácio destes ativos em relação ao stock de obrigações no mercado a 58%. Foi, pois, a conjugação do QE com a dissipação dos receios dos investidores (acompanhado pelo upgrading dos ratings da República) que fez baixar o spread, mas é difícil separar os dois efeitos sem um modelo sofisticado.

Embora as taxas de juro já viessem a cair, não há dúvida que o QE introduzido pelo BCE em janeiro de 2015 fez baixar as taxas de juro de longo prazo da Alemanha, que estimativas econométricas colocam em cerca de 2 pontos percentuais. Desde aquela data, estas taxas passaram a estar próximas de zero, tendo-se tornado negativas a partir do início de 2019.

Para além deste benefício que os países da Zona Euro obtiveram em comum, também é evidente pelo Gráfico 4 que os spreads se reduziram. Embora, nos programas de QE, o maior efeito é sempre do primeiro programa empreendido. Só este efeito marginal é que se pode considerar como transferência implícita. Quanto às transferências implícitas no PSPP, já são difíceis de argumentar, pois a compra de obrigações é feita de acordo com uma chave pré-definida, e de acordo com a participação de cada país no capital do BCE.

E o futuro da Zona Euro: formas de auxílio aos países que entram em crise

Uma equipa de três economistas escreveu um artigo que foi apresentado em quase todos os bancos centrais europeus, sobre o problema das dívidas soberanas na União Europeia e como esta tem resolvido o conflito entre a visão dos “países do Norte” preocupados com o moral hazard e os “países do Sul” que reclamam solidariedade. Apesar do princípio do no bailout, o Quadro 1 mostra as transferências implícitas na assistência aos países da crise do Euro, calculadas com referência à situação de mercado. Por exemplo, a Grécia recebeu cerca de 43% do PIB através do MEE e similares.

Perante estas transferências de natureza orçamental, a que se juntam as transferências via QE, Gourinchas et al. perguntam como é possível reconciliar estas políticas? Os custos de uma default por um Estado-membro podem ser elevados para os “países do Norte”. Primeiro, porque a default num país pode contagiar outros, em situação de elevada dívida pública e/ou externa. Segundo, porque os bancos ou investidores dos “países do Norte” podem ter créditos ou investimentos do(s) países em default. Assim, pode ser no seu próprio interesse dar assistência ao(s) país(es) em causa para evitar a default. Contudo, o bailout cria, ex-ante, a mutualização do risco, ou seja, parte do risco é atirado para os “países do Norte”, dando um incentivo ao sobre-endividamento. Mas o país que declara a bancarrota, default, também tem custos em termos de impacto da crise no PIB, de que terá de pagar uma parte da dívida em falta, e não receberá a transferência. Este custo é balanceado contra o benefício associado à dívida que deixa de pagar.

Em geral, ex-post, é sempre uma solução mais eficiente, haver no default e haver bailout, envolvendo uma transferência do Norte para o Sul. Porém, é também importante não haver um comprometimento ex-ante de bailout, que está consubstanciado no Tratado, princípio que tem vindo a ser fiscalizado pelo TCA (e TJE), e que este modelo mostra que desempenha um papel importante no jogo entre o Norte e o Sul. Daí que os autores concluam que a melhor solução é continuar “kicking the can down the road”.

Os autores também estudam a questão de monetarização da dívida como alternativa às transferências de natureza orçamental. A monetarização da dívida através de QE pelo SBCE/BCE permite reduzir o montante necessário das transferências para o bailout. Mas, para ter efeito, e se não é apenas dirigido(s) ao(s) país(es) em default, como foi o SMP em 2012, poderá criar inflação e/ou desvalorização do Euro, com efeitos distorcionários em toda a zona Euro. Assim, a monetarização da dívida nunca deve ser uma política preferida à do bailout através de transferências orçamentais.

Existem muitos argumentos para a defesa das políticas monetárias do BCE, mas é também necessário prová-los com resultados empíricos, suficientemente compreensivos para convencer os juízes alemães.

Até agora, durante a crise dos países do Euro de 2010 a 2014, os montantes destas transferências, via MEE, foram relativamente modestos. Mas o problema pode-se colocar com mais acuidade se for necessário salvar da default um país como a Itália, pela dimensão da sua dívida.

Conclusão

O TCA, no seu julgamento, afirma que o acórdão do THE “excede manifestamente o mandato judicial que lhe é conferido pelo TCUE, levando assim a uma “alteração estrutural significativa na ordem de competências em detrimento dos Estados-membros”. Por esta razão, o TCA conclui que o TJE agiu ultra vires, pelo que o seu acórdão preliminar não tem força legal na Alemanha. E, com esta frase, faz-se história: este parágrafo será provavelmente um dos mais citados nos trabalhos jurídicos sobre as leis da UE nos próximos anos. É a primeira vez que um tribunal de um Estado-membro proíbe uma ação de uma instituição comunitária nesse Estado.

Mas deixa uma aberta: o BCE tem três meses para demonstrar junto do TCA que está a respeitar o princípio da proporcionalidade na sua política de QE, e em particular, no PSPP. Ora, como este ensaio mostra, os economistas e juristas do BCE têm pela sua frente uma tarefa complexa e que, para bem de toda a Zona Euro e UE, devem desempenhar com a maior competência possível. Existem muitos argumentos para a defesa das políticas monetárias do BCE, mas é também necessário prová-los com resultados empíricos, suficientemente compreensivos para convencer os juízes alemães.

Caso o TCA não venha a inverter a sua sentença, a implicação imediata é que o Bundesbank estará proibido de prosseguir as políticas de QE do SBCE/BCE. Contudo, as implicações e ramificações deste julgamento poderão vir a abalar profundamente o edifício da União Europeia.

Abel Mateus é professor universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência.

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