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iStockphoto/Nomadsoul1

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Porque é que há mães que não gostam dos filhos?

Mães agressivas, negligentes, que sentem ciúmes dos filhos ou que não sabem mostrar amor. O novo livro da jornalista Lucília Galha mostra como, afinal, o amor de uma mãe pode não ser incondicional.

Estava sentada à mesa com a mãe que já era avó, a pedir-lhe para fazer um esforço e levar mais comida à boca, quando esta disse algo inconfessável: “Não gosto de ti, nunca gostei”. A frase aterradora, que nenhum filho desejará ouvir de uma mãe, é parte de um dos relatos recolhidos pela jornalista Lucília Galha, que acaba de lançar o livro Mãe, porque não gostas de mim?, da Esfera dos Livros.

Foram precisas 40 horas de entrevistas para chegar aqui. Conversas difíceis de ter e de ler. Em mais de 150 páginas, Lucília Galha reúne histórias de sete mulheres e de um homem, de diferentes idades, que foram, de uma forma ou de outra, mal amados pelas mães biológicas. Todos os casos traçam perfis de mães diferentes — das que não sabem amar às que não querem amar –, sendo que, na sua maioria, mostram como há padrões difíceis de quebrar.

Ao Observador, a autora do livro enfatiza que que o amor de mãe não é, afinal, incondicional e confirma que este é um tema tabu: “É sempre muito difícil chegar aos casos, mas, na realidade, eles existem e até existem bastantes. O livro saiu há pouquíssimo tempo e já tive várias pessoas que confessaram situações semelhantes — ‘a minha mãe era assim’ ou ‘a minha avó era assim’. Sendo um tema tabu, nunca temos muita noção. É muito escondido e abafado”.

© DR O livro está à venda por 12 euros.

O livro abala a noção que temos da relação entre mãe e filho. Afinal, o amor de uma mãe pode não ser incondicional?
Essa foi a premissa do livro. Quando o meu editor me desafiou a escrever sobre este tema, debruçámo-nos sobre essa questão que é tabu. Como é que uma mãe pode não amar os filhos? É uma coisa que parece inconcebível na nossa sociedade. O conceito de amor de mãe é sagrado: mãe que é mãe, ama os filhos incondicionalmente e faz tudo por eles.
O meu editor conhecia um caso, em que a pessoa em questão tinha um perfil parecido às histórias que tenho no livro. Ele desafiou-me a desenvolver essa premissa, de que o alegado amor incondicional, o amor de mãe, pode, afinal, não existir. E se não existe, porque é que não existe? Quis ir à procura de casos que não fossem sociais, nos quais há razões muito óbvias, como a toxicodependência ou o alcoolismo, que motivam que haja alguma negligência…

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Casos mais difíceis de compreender?
É isso. Fui à procura de casos em que é mais difícil as pessoas perceberem porque é que esta mãe não gosta do filho ou não trata dele. São casos mais diferentes. E até acho que consegui reunir perfis de mães muito diferentes. Há várias razões para o amor de uma mãe não existir, não é assim tão simples como haver boas ou más mães.

"Os últimos estudos indicam que, embora 97% das mulheres que são mães se sintam satisfeitas nesse papel e admitam que as vantagens superam os custos, há um grupo de 3% que assumem não sentir prazer na maternidade, nem no que a experiência acarreta. Segundo: o amor de mãe pode não existir e isso tem a ver com a vinculação. Afinal, aquele sentimento que parece instantâneo, como uma fotografia, e esmagador, na melhor acepção da palavra, não é inato. A vinculação é o laço primário que se estabelece entre uma mãe e o seu bebé à nascença, e é um laço que precisa de ser alimentado e que vive da relação próxima que se estabelece entre os dois."
"Mãe, porque não gostas de mim?" Página 14

Logo no começo do livro é introduzido o termo “vinculação segura”. Do que se trata e o quão importante é para a formação de uma criança?
Uma das razões para isso acontecer [o facto de uma mãe não gostar do filho] pode ter que ver com a vinculação. Pode ser uma coisa tão simples como a mãe e o bebé não criarem uma relação à nascença. E se essa relação não se estabelece, dificilmente a mãe vai criar uma ligação com aquele filho. Pode ter que ver com isso, com circunstâncias da vida da própria mãe, com a sua história, com a repetição de padrões. É muito menos linear do que à partida possa parecer.

Tiago Petinga/LUSA

Em traços gerais, que impacto pode ter uma má relação da mãe na formação de uma criança, isto é, no adulto do futuro?
Isso era também um dos objetivos do livro. Perceber de que forma é que a falta do amor de mãe se refletia depois na vida destas pessoas. Quando pensámos em fazer o livro, pensámos em falar com pessoas adultas, que já têm uma perceção do vazio que fica por falta de uma figura maternal. Estas pessoas [que dão o seu testemunho no livro] têm todas uma enorme mágoa — há até um sentimento de culpa. Isso reflete-se na forma como se relacionam com os outros, nos parceiros que procuram. Há um caso em que ela procura um parceiro abusivo, tendo a priori uma mãe que a sufoca, que a ama demais. Há sempre consequências, há sempre alguma insegurança e instabilidade. Apesar de a maior parte das pessoas com quem falei terem conseguido dar a volta, serem pessoas funcionais, capazes de amar os filhos, nunca deixam de ter um certo vazio na vida delas e isso reflete-se: seja nas suas relações, seja nas suas personalidades.

"A minha mãe era uma agressora sem ter essa intenção. Causou muita destruição com o desejo de nos tornar pessoas felizes. A mim e ao meu irmão. Quando casei, ela foi a única a perceber que eu estava a fazer uma asneira muito grande e disse-me isso: 'Ele vai maltratar-te'. (...) Eles eram parecidos de certa forma. A minha mãe, quando era maravilhosa, era mesmo maravilhosa. (...) Só que a minha mãe não era uma pessoa cruel, era uma pessoa de excessos, excedia-se, e se começava a gritar não parava, já ele era cruel e frio."
"Mãe, porque não gostas de mim?" Página 77

Lucília Galha é jornalista na revista Sábado desde 2009. Em 2013 lançou o primeiro livro, “Morte Assistida – Temos o Direito de Escolher a Forma como Morremos?”.

Vínculo inseguro é sinónimo de ser-se má mãe?
Uma coisa não é igual a outra, pode ou não ser. Podem existir figuras que combatem de alguma forma esse vínculo inseguro ou essa não criação de um vínculo — existem casos no livro em que não houve uma mãe, mas houve uma ama que soube dar amor; há outra história em que a personagem principal teve quatro mães adotivas, pessoas que gostavam dela e que lhe deram amor. Não acho que, necessariamente, uma coisa seja sinónimo da outra.

O livro retrata mães com fracas demonstrações de amor, relações de extrema dependência, mães com ciúmes das filhas ou mães que culpam os filhos pela sua miséria. Existe um fio condutor que une todas estas figuras maternais?
Todas estas mães tiveram, de alguma forma, alguma fragilidade. O único caso em que é mais difícil de perceber o que aconteceu, porque a própria filha não o sabe e nunca teve coragem de perguntar à mãe, corresponde à terceira história do livro, em que existe uma mãe com imensa cultura e boa educação — não se percebe o que aconteceu para ela ser assim.
Nos outros casos percebemos que estas mulheres são um pouco o fruto daquilo que lhes aconteceu. Mães que tiveram histórias complicadas. São pessoas fragilizadas pela vida e que não souberam dar amor aos filhos. Acho que o fio condutor é esse: há uma razão por trás e não é tão simplista como assumir que estas mães têm a intenção de magoar ou de oprimir. O último caso, o do homem, também é mais difícil de perceber: a mãe culpa o filho pela miséria da vida, sendo que ela não teve uma vida assim tão difícil, e, na verdade, soube dar amor ao filho mais novo e não ao filho mais velho — diz coisas como, “Se tu não tivesses nascido, eu era feliz”, uma coisa completamente aterradora. Estes casos deixam-nos num duelo interior. Há sempre nuances e há pessoas que não foram talhadas para serem mães. Os estudos que consultei referem isso: a maioria das mulheres sente prazer na maternidade e quer ser mãe, mas há uma minoria que não o sente. Essas pessoas existem, por mais aberrantes que possam parecer. Não podemos julgá-las.

"Cresci com a minha mãe a dizer-me que a culpa da miséria da vida dela era minha. Lembro-me de uma frase que ela repetia muitas vezes: 'Se tu não tivesses nascido, eu era feliz'. A afetividade desapareceu e, a certa altura, já não sentia nada da parte dela. Tentava compreender porque é que não tinha mãe, se eu tinha ali uma mãe. E só quando comecei a crescer é que percebi que tudo o que tinha na vida era uma grande merda!"
"Mãe, porque não gostas de mim?" Página 141

Na maior parte das histórias, o leitor nunca chega a sentir que as mães são más pessoas. Narradas pelos próprios filhos, parece que têm “apenas” um jeito diferente e até negligente de amar…
Na primeira história, a própria filha reconhece isso: diz que a mãe gosta muito dela, mas que tem um jeito diferente de gostar. Ela foi percebendo isso — a mãe dela também tem uma história muito complicada. Mas é preciso dizer isto: uma coisa nunca desculpa a outra. Ou seja, cabe às mães protegerem os filhos e não projetarem nos filhos os seus problemas. Há aqui questões que deveriam ter sido resolvidas antes destas mulheres terem sido mães.

"A minha mãe tem dias em que precisa de desabafar (...) Não sei como dizê-lo sem chocar: ela foi criada num corredor com os irmãos, fechados à chave e às escuras. Faziam ali as necessidades e as fezes deles era usadas para brincar e desenhar nas paredes. Não tinham mais nada (...) Há mães que não conseguem amar por influência do que viveram, ou que não amam da forma mais correta. Amam à maneira delas. E há mães que definitivamente não sabem amar. Não foi o meu caso, graças a Deus. Não é que a minha mãe não saiba ser mãe, ela simplesmente tem um jeito de amar que é o jeito dela. E é um jeito especial de ser."
"Mãe, porque não gostas de mim?" Páginas 26 e 35

É como escreve no livro: a maternidade é um processo de aprendizagem…
Exatamente, até porque, na realidade, isto não acontece automaticamente. Passamos sempre por uma fase de adaptação ao bebé e vice-versa. Claro que há um amor imenso por aquele ser, mas as coisas não são assim tão cor de rosa como as pessoas pintam.

Estas mães podem ter sido vítimas das circunstâncias, mas não souberam ou não conseguiram quebrar o padrão, ao contrário dos filhos que relatam estas histórias…
Sim. Acho que isso pode ter que ver — e isto é especulação — com os tempos, com o facto de haver mais informação, de os meios não serem tão pequenos… Algumas destas pessoas são pessoas de aldeia, cujos pais e avós viviam em meios pequenos, era assim que funcionava… Depois saíram e conseguiram alargar um pouco os horizontes. No caso da mãe que ama demais, a filha quis sair daquele meio pequeno e, quando veio para a capital, não sabia relacionar-se com as pessoas. Acho que todos os filhos que falaram comigo foram, de uma forma ou de outra, conseguindo fazer as suas vidas e ser mães e pais funcionais, porque detetaram que havia ali alguma coisa que não estava certa. Quatro destas pessoas fizeram terapia. Acho que isto também ajuda. É possível ultrapassar situações destas e conseguir ser-se uma mãe ou um pai funcional, mas isso implica sempre algum trabalho e apoio emocional. Estas quatro pessoas conseguem perceber melhor o que aconteceu com elas. Acho que, nestes casos, a terapia é fundamental, nem que seja falar ou partilhar isto com outras pessoas e ir digerindo o que se passou. É possível quebrar este padrão.

iStockphoto/Nastia11

É este um tema tabu na nossa sociedade. É mais comum do que possamos pensar? Quão difícil foi encontrar estas histórias?
Sendo um tema tabu, acontece como em tudo, ou seja, é sempre muito difícil chegar aos casos, mas, na realidade, eles existem e até existem bastantes. O livro saiu há pouquíssimo tempo e já tive várias pessoas que confessaram situações semelhantes — “a minha mãe era assim” ou “a minha avó era assim”. Sendo um tema tabu, nunca temos muita noção. É muito escondido e abafado. As próprias pessoas não gostam de falar sobre isto, até sentem alguma mágoa, vergonha e sentimento de culpa. Mas acho que acontece mais do que se possa imaginar. O facto de uma pessoa vir admitir que a mãe não gostava ou não soube gostar… é uma coisa muito brutal de se dizer e de se admitir em público. Não é por acaso que nenhuma destas pessoas me quis revelar a sua identidade verdadeira. Já foi tão difícil para elas darem o testemunho a uma desconhecida, quanto mais admitir ao mundo… Algumas destas pessoas não querem que as mães saibam que elas deram este testemunho, apesar de as mães as terem magoado.

"A minha avó maltratava a minha mãe, chamava-lhe nomes, e a minha mãe, quando regressava da aldeia, estava de rastos e chorava de forma inconsolável. Mas, mesmo assim, nunca deixou de ir ver a minha avó. Todos os dias fazia 100 quilómetros só para ir vê-la e, se calhar, a quantidade de vezes que a minha avó a recebeu bem contam-se pelos dedos de uma mão."
"Mãe, porque não gostas de mim?" Página 45

Em praticamente todos os testemunhos, parece que os protagonistas desculpam, até certo nível, o comportamento das mães.
Acho que isso acontece em quase todos os casos. Noutros acho que ainda não houve um perdão verdadeiro (se calhar nunca vai existir), porque em alguns deles as pessoas ainda não perceberam o que se passou… Mas sim, isso acontece e acontece muito estas pessoas quererem resguardar as suas mães, não querem expor as mães.

"Ela tinha claramente ciúmes da forma como o meu pai me tratava. Ao ponto de descarregar essa frustração em mim. Eu tinha um cabelo bonito, comprido, e costumava usar uma trança. Gostava muito do meu cabelo e o meu pai também. Houve um dia, já devia ter 11 anos, em que a minha mãe olhou para mim e disse: 'Ficas muito esquisita com essa trança.' Pegou numa tesoura e cortou-a. Fiquei horrível. Parecia um ouriço e fartei-me de chorar."
"Mãe, porque não gostas de mim?" Página 63

Será que o facto de estes protagonistas já serem pais contribui para isso?
Acho que sim, que ajuda a curar um pouco a ferida, pelo menos a colmatar o vazio. Não deixa de existir a mágoa, mas eles canalizam isso de uma forma positiva para os filhos e conseguem fazer diferente com os filhos e isso traz-lhes algum consolo. Em alguns destes casos reparei que, na relação com os filhos, estas pessoas até são mais intensas do que se não lhes tivesse acontecido nada. Têm essa necessidade, de ter um padrão completamente diferente daquele que viveram.

Porquê sete mulheres e um só homem?
Foi muito mais difícil encontrar homens. Encontrar mulheres [que falassem] já foi dificílimo, encontrar homens ainda mais. Não quero tornar esta conversa sexista, mas, na realidade, é mais difícil para os homens falarem, exteriorizarem esta questão, que é muito emocional. Penso que para os homens é mais difícil expor este tipo de fragilidade. Tive muito tempo até conseguir este caso, porque queria incluir pelo menos um caso de um homem, porque acho que implica uma sensibilidade diferente. As mulheres e os homens têm sensibilidades diferentes. Queria incluir, pelo menos, um caso de um homem para dar alguma amplitude ao livro.

"A família estava sentada à mesa e a discussão tinha a ver com comida. Eu disse à minha mãe: 'Faz um esforço. Se eu faço isso, é porque gosto de ti.' A resposta dela foi seca e extremamente dura: 'Mas eu não gosto de ti, nunca gostei'. A minha empregada ficou parada no meio da cozinha. Eu olhei para o meu filho e a conversa ficou por ali."
"Mãe, porque não gostas de mim?" página 69

Porque é que se centrou na figura da mãe e não na figura do pai?
Aos pais [homens] é mais fácil a sociedade perdoar. Ainda somos um pouco “atrasados” nestas questões e acho que ainda falta trabalhar estes conceitos. Apesar de hoje os pais serem completamente diferentes do que eram há alguns anos, acho que desculpamos mais facilmente o pai que não gosta dos filhos do que a mãe que não gosta dos filhos. Por isso ser mais aberrante para a sociedade — a mãe não gostar dos filhos — é que fui só para as mães. O meu objetivo não é que as pessoas recriminem estas mulheres, mas sim dar a entender que as coisas não são assim tão lineares e pôr as pessoas a pensar.

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