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Leo Tolstoi, Russian writer
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Tolstói (1828-1910) com a família, no jardim da sua casa, com os filhos Levm Ilya, Michael, Ivan, a mulher Sophia Andreevna e as filhas Tatyana, Maria e Alexandra

ullstein bild via Getty Images

Tolstói (1828-1910) com a família, no jardim da sua casa, com os filhos Levm Ilya, Michael, Ivan, a mulher Sophia Andreevna e as filhas Tatyana, Maria e Alexandra

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Porque é que lemos os russos como não lemos nenhuma outra literatura?

"Nadar num Lago à Chuva" é o livro em que George Saunders presta reverência a quatro dos mais influentes autores russos. Mas de onde vem o peso simbólico inigualável desta geografia literária?

Os Russos. Nenhuma literatura tem um significado tão preciso e iniciático, na cabeça dos leitores, quanto esta. Ninguém diz que quer começar a ler “os franceses” ou os “espanhóis”: os géneros em que uma e outra literatura alcançaram expressão universal são demasiado vastos para isto; quem lesse “os franceses” podia estar a dedicar-se à semiótica ou ao teatro, às polémicas teológicas de Pascal e Fénélon ou à leitura das canções de gesta. A literatura russa pode ter tido nomes famosos antes e depois de Tólstoi, Dostoiévski e Turguenev, mas “ler os russos” não significa seguramente familiarizarmo-nos com as doutrinas políticas de Pobedonostsev ou com a obra mais recente de Alisa Ganieva. Este é talvez o único topónimo literário que significa tanto um espaço como um tempo, e que vem carregado com um peso simbólico inigualável.

Toda a gente que se interessa por literatura quer, a certa altura da sua vida, “ler os russos”. Esta é, ao mesmo tempo, a leitura mais canónica e mais revolucionária de qualquer leitor. Sabemos que é impossível chegar às águas mais profundas da literatura sem picar o gelo da Sibéria, preparamo-nos para aquilo que sabemos que será um tremor de terra interno e, lidos “os russos”, sentimo-nos preparados para o mundo. Ler os russos pode não ser tudo, mas é condição necessária e condição suficiente para entrar no verdadeiro mundo intelectual.

A “literatura russa”, neste seu significado preciso, mantém uma reputação incólume em todas as esferas da vida intelectual, de um modo pouco comum. Isto é, embora o “cânone literário” tenha alguns autores bem estabelecidos, poucas vezes um bloco consegue ter uma reputação imaculada em todas as esferas. Isto é, Stendhal pode ser  um autor pacífico no cânone universal, mas o “realismo” sofreu contestação da parte de Aragon, Apollinaire, Sartre… Ora, os “russos” são incontestáveis também porque, embora tenham um significado preciso – todos sabemos que estamos a falar de Gógol, Tchekov, Tólstoi, talvez, no limite, Pushkin – também têm um significado difuso.


Título: “Nadar num Lago à Chuva”
Autor: George Saunders
Tradução: José Mário Silva

Editora: Relógio d’Água
Páginas: 440

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Não há propriamente uma doutrina literária russa; este bloco, ao contrário dos blocos comuns da história da literatura, não tem uma escola, nem representa sequer exatamente uma geração. Há uma série de escritores, unidos por uma geografia e por um tempo relativamente alargados, cuja diferença em relação a todos os outros movimentos e doutrinas é suficiente para os agrupar, embora sem que alguma coisa pareça uni-los realmente. Seriam o grupo dos que não são românticos, nem realistas, nem simbolistas – ou cujo romantismo, realismo ou simbolismo os aproxima mais uns dos outros do que dos companheiros de escola de outros países – unidos pela geografia e por uma semelhança que escapa à definição. Há um ar de família entre “os russos”, embora ninguém pareça saber bem explicar o que é que compõe esse ar.

Nesse sentido, o livro de George Saunders editado recentemente pela Relógio d’Água representa uma empreitada interessante. Aquilo que Saunders faz, ao analisar com cuidado uma série de contos dos “russos”, é precisamente tentar mostrar em que é que consiste este modus operandi russo.

O livro está escrito com aquela calma didática que associamos às Universidades Americanas, aos seminários com poucos alunos em que o professor se pode dar ao luxo de adotar um registo mais informal e perder o tempo necessário em cada parágrafo e em cada pormenor; resulta, aliás, de uma série de cursos dados por Saunders ao longo dos anos sobre contos russos. Também por isso, é um livro essencialmente técnico. Isto é, sobre o modo como diferentes técnicas narrativas nos levam a sensações diferentes e causam impressões tão vivas no leitor.

Histórias bem contadas há em Flaubert e em Truman Capote, em Roma e na África do Sul. A força de Tólstoi e de Tchekov, a força estranha e surpreendente dos russos, está precisamente no modo como, por vezes, uma verdade incontrolável parece romper a história como se rompesse uma camisa de forças.

Ora, este modo de olhar para os contos acaba por se tornar na própria tese sobre a literatura russa. Aquilo que define “os russos” é, acima de tudo, um domínio das técnicas narrativas e uma perfeição formal que ultrapassam a ideia de escola ou de tese literária mas que contribuem clinicamente para avivar no leitor as impressões e os sentimentos mais fortes.

Saunders consegue mostrar como a técnica acaba por ser mais do que isso; consegue mostrar que sem um arsenal narrativo capaz, as verdades que os contos querem passar dificilmente chegam a bom porto; no entanto, não deixa de ser estranho que um livro com tantas verdades acabe por, em certos aspetos, soar tão falso. Tudo aquilo que Saunders diz sobre a literatura russa é verdade, no entanto, nada é verdadeiro no sentido mais profundo e íntimo que podemos encontrar na literatura e, sobretudo, na literatura russa.

O modo de contar uma história pode ser importante para perceber aquilo a que os autores querem chegar; no entanto, histórias bem contadas há em Flaubert e em Truman Capote, em Roma e na África do Sul. A força de Tólstoi e de Tchekov, a força estranha e surpreendente dos russos, está precisamente no modo como, por vezes, uma verdade incontrolável parece romper a história como se rompesse uma camisa de forças. Há perfeição técnica nos Rougon-Macquart, como Zola bem provou no seu livro sobre o romance naturalista; o que impressiona na literatura russa é precisamente o modo como todos os grandes autores parecem dispostos a sacrificar a história, a coerência, o ritmo, em prol de uma descoberta sobre o Homem que precise de ser dita naquele momento.

George Saunders

George Saunders (nascido no Texas, EUA, em 1958) é romancista, ensaísta e professor universitário. Em 2017 ganhou o Booker Prize com "Lincoln no Bardo"

Getty Images

A antologia comentada de Saunders não tem Dostoiévski, precisamente o autor em que isto é mais óbvio; mas o momento telúrico em que o príncipe André, caído entre os vencidos da batalha, olha para o céu sofre do mesmo princípio. O exotismo russo não vem tanto da perfeição formal como do sentimento de que a história está ali para outra coisa e que, por isso mesmo, pode ser por vezes inimiga daquilo que se quer dizer. O século XX, que estilhaçou a perfeição formal do romance e, em muitos casos, esbateu as suas fronteiras, é neste sentido um complexo herdeiro “dos russos”.

Qualquer leitor sabe que o interesse “dos russos” não é formal; pode haver momentos em que a forma contribua para realçar o interesse daquilo que se quer dizer, mas isso não é característico da literatura russa nem sequer é especialmente bem conseguido nesta literatura. Esse é o sentido primordial da ideia de técnica e até o modo como a técnica expõe certos sentimentos ou ideias varia com o tempo e vai produzindo reacções diferentes nos leitores de várias épocas. A grande aura da literatura russa vem precisamente da brutalidade, seja ela mais espaventosa ou mais subtil, com que se mostra o modo como o Homem reage ao mundo.

Tudo aquilo que Saunders nos traz sobre os contos russos é verdadeiro e até interessante; no entanto, em poucas literaturas essas verdades seriam tão marginais e tão pouco relevantes para a verdade essencial que está atrás de cada texto. Os contos de Tchekov, como os de Gógol ou os relatos dos Cadernos de um Caçador são um exemplo perfeito disto mesmo. É claro que é possível encontrarmos técnicas narrativas bem usadas nos vários autores; mas a diferença entre o conto russo e o conto que encontramos em Maupassant, mesmo em Camilo ou em Dickens é bastante clara.

A “literatura russa” pode ser, de facto, a literatura perfeita; no entanto, pouco disso advém de ser literatura, e muito vem do modo como revela a sofreguidão dos seus grandes autores em mostrarem uma visão da vida e a descoberta de alguma coisa fundamental sobre o Homem, mesmo que isso implique sacrificarem a literatura.

O que é mais impressionante no conto russo é o esbatimento da ação, o modo como é possível deixar quase de haver narrativa no seu sentido mais clássico para observarmos apenas um sentimento, uma visão à primeira vista pouco importante ou um acontecimento banal. Se há técnica invulgar nos “russos”, vem do facto de aplicarem as técnicas de enredo, não aos acontecimentos, mas à alma. É claro que é possível provar que estas técnicas ainda estão lá, quando se fala do apego de um homem pobre a um capote ou da reação de uma mulher ao ver passar um comboio; mas o mais natural é ver como, diante destas personagens, deste modo de encarar a vida, este elemento técnico se esbate.

A “literatura russa” pode ser, de facto, a literatura perfeita; no entanto, pouco disso advém de ser literatura, e muito vem do modo como revela a sofreguidão dos seus grandes autores em mostrarem uma visão da vida e a descoberta de alguma coisa fundamental sobre o Homem, mesmo que isso implique sacrificarem a literatura.

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