Sem nenhuma sola que os protegesse, os pés descalços do jogador do Boavista, Ricardo Mangas, sentiam o chão do ringue do bairro social em Olhão onde cresceu. Aos sete anos, mudou-se com os pais para a região de Leiria e começou a jogar nos Nazarenos. “Ainda te sei dizer quais foram as primeiras chuteiras que utilizei… umas Nike Total 90 pretas e brancas. Foram uma prenda. O meu pai, na altura, era camionista, fazia longos cursos. Houve um dia em que me chegou a casa com umas chuteiras e acho que foi isso que me fez perceber que era isto que o meu pai queria que fizesse. O meu pai queria que eu fosse jogador. Ele não foi profissional, mas foi guarda-redes dos Nazarenos e incutiu-me isso. Deu-me as chuteiras e olha… não correu muito bem”.
O “não correu muito bem” é dito com ironia por Mangas ao Observador. Afinal, aos 22 anos estreava-se na Primeira Liga pelo Desp. Aves diante do Sp. Braga (vitória por 1-0). Um dia marcante que merecia o calçado adequado. “A Puma mandou-me chuteiras. Eu queria utilizá-las, mas, quando abro a caixa, já tinham saído três ou quatro modelos depois. Pensei… ‘Nah, não me posso estrear na Primeira Liga com umas chuteiras que já saíram há quatro meses’. Não as usei”, explica o jogador de 25 anos. “Estreei-me com umas Adidas F50. Ainda as tenho em casa, rotas. Eram as que estava habituado a usar nos Sub-23. Se era para estar a jogar com uma coisa que não gostava… Porque não gostava das chuteiras honestamente e fazia-me confusão. As chuteiras que tinha comprado para mim eram mais recentes do que aquelas que me tinham mandado. Pensei ‘Já estou habituado a estas, vou usar estas’. Joguei com as da Adidas e acho que até hoje o pessoal da Puma está chateado comigo”.
Ricardo Mangas esteve no Benfica durante a maior parte da formação. O caminho até ao Seixal foi feito a jogar no sul do país com chuteiras escolhidas pelo orçamento dos pais e compradas dois tamanhos acima para se ter a certeza que duravam a época inteira. Quando se mudou para o Futebol Campus, comprou as primeiras chuteiras oficiais (normalmente, em média, rondam os 200 euros), um modelo Adidas F50, roxo, criado para Lionel Messi. Enquanto representou o Benfica, era um companheiro mais velho, Romário Baldé, ex-Académica, Gil Vicente e Leixões, que lhe dava o que calçar.
O jogador do Boavista nunca teve um verdadeiro patrocinador, embora quando representava o Bordéus tenha estado perto de assinar contrato com a Adidas. Sem vínculo a nenhum fornecedor, as chuteiras que vemos Mangas usar na Primeira Liga são modelos antigos, alguns com mais de uma década, velhice que aos 25 anos já não o incomoda. A tendência para a procura de chuteiras bastante anteriores às que são lançadas pelas marcas de três em três meses, tem-se verificado com regularidade no campeonato português, mas também no estrangeiro.
João Carlos Teixeira, antigo jogador de Liverpool e FC Porto, atualmente nos chineses do Shanghai Shenhua, é um dos casos além-fronteiras rendido à moda. Durante a pandemia, o contrato de patrocínio que tinha com a Nike terminou e não foi renovado. “Quando fui para o Liverpool, assinei quatro anos com a Adidas e, quando fui para o FC Porto [2016], assinei quatro anos com a Nike”, explica ao Observador. “Atualmente não tenho patrocinador, porque, na altura, acabava o contrato, começou a pandemia e eles disseram que não podiam renovar”. Livre para poder escolher as botas que prefere, a escolha fugiu aos modelos atuais. “Optei pelas antigas, porque foram as botas que sempre gostei mais. Na altura em que estava no FC Porto, foi quando lançaram os modelos que uso agora. Foram sempre as botas que gostei mais das que utilizei até ao dia de hoje. Comecei à procura e sempre que vejo que há um par, tento ficar com elas, são botas que eu gosto e com as quais me sinto bem. Mal as calço, encaixam bem”.
Grande parte da responsabilidade pela febre deve-se à UNIC Football Boots, uma empresa portuguesa que fornece chuteiras a jogadores de futebol e que trouxe de volta alguns modelos que deixaram de estar disponíveis nas lojas. Nuno Miguel, o fundador, conta como encontra as relíquias. “Às vezes, é uma questão de o modelo aparecer. Depois, o papel da negociação, até é fácil. Há modelos que até sei onde estão, mas convencer o vendedor é que é difícil. Há pessoas que são colecionadoras e que não estão dispostas a vender as chuteiras”.
Devido à dificuldade que há em encontrar alguns pares de chuteiras pedidos especificamente por alguns jogadores, os preços podem disparar. “Há modelos que são tão raros que acabam por ir para valores exorbitantes. Já vi chuteiras à venda por 2.000 euros, um par que, quando saiu, custava 200 euros. Depois, há aquelas edições mesmo raras-raras-raras que custam 10.000 euros. Se alguém as compra por esse valor? Não sei. Mas que elas estão à venda por esse preço, estão. Modelos como as Nike Mercurial cinzentas do Ronaldo, O Fenómeno, do Mundial 2002, ou aqueles modelos de 98, umas azuis e prateadas são os que estão no auge do preço, neste momento”, diz Nuno Miguel. As marcas estão atentas ao fenómeno e têm lançado modelos atuais com semelhanças aos antigos, embora se tratem de edições limitadas e de difícil acesso.
SABIA DESSA?
A famosa cena de Ronaldo com suas chuteiras da Nike na final da Copa de 1998, foi considerando um ato de marketing ‘estrondoso’.
Em 3 meses após a Copa, se tornou uma das chuteiras mais vendidas de todos os tempos, com a reafirmação do contrato de R9 com a Nike. pic.twitter.com/jEbGNhQXo6
— Futmais | Menino Fut (@futtmais) October 6, 2022
Mas por que é que estão os jogadores sem contratos com marcas a optar por comprar modelos antigos? “Apesar de toda a inovação, os materiais, antigamente, eram mais confortáveis, adaptavam-se melhor ao pé. Depois, é uma questão estética, no sentido do jogador se sentir diferente. O normal, hoje em dia, é que os jogadores das grandes ligas joguem com as botas que das marcas que os patrocinam e, basicamente, usam todos as mesmas. Um jogador que use botas antigas, destaca-se por estar a usar algo diferente. Outro fator, é a questão das memórias. Associam determinado modelo a um momento que lhes deu sorte ou que marcou a carreira deles. Sentem que aquilo lhes transmite alguma confiança e, psicologicamente, dá-lhes outra força”.
Exemplos não faltam de jogadores que escolhem modelos de chuteiras influenciados pela nostalgia. À UNIC Football Boots, Darwin Núñez, atualmente no Liverpool, mas cliente da empresa quando jogava no Benfica, pediu um modelo específico, visto que quando era apanha bolas com 13/14 anos, sempre sonhou em ter essas chuteiras que via os jogadores usarem mas não tinha dinheiro para poder comprar. Gabriel, antigo médio do Benfica, anteriormente patrocinado por uma marca, decidiu terminar com essa exclusividade e abdicar do retorno financeiro para testar modelos e marcas diferentes da altura em que era criança. Ao mesmo tempo, Alex Telles pediu o modelo com o qual foi campeão na Turquia, ao serviço do Galatasaray, acabando por ser campeão no FC Porto com esse par.
É também para trazer memórias para o presente que Ricardo Mangas usa os modelos do passado. “As chuteiras antigas que uso hoje em dia são da altura em que me desenvolvi como jogador. Foi uma fase que adorei, em que ia à Seleção Nacional, jogava no Benfica… E também pelo conforto, acho que os novos modelos são bonitos, mas pecam no conforto. O tecido da chuteira é mais rijo. Há uma coisa que me anda a fazer confusão: as chuteiras atuais são um bocadinho levantadas à frente, o que odeio”, afirma ao mesmo tempo que revela que, quando era mais novo, quem o inspirava mais na escolha das chuteiras era Gareth Bale. “Se pudesses ter todas as chuteiras que o Bale utilizou, eu tinha”.
“Tenho sempre um papelinho que a minha namorada me escreveu e tenho um terço. Levo sempre o terço agarrado ao papel e, quando estou a perfilar, no início do jogo, leio sempre o que está escrito no papel. Quando acabamos de perfilar, cumprimento toda a gente e entrego ao roupeiro”. Por aqui se percebe que Ricardo Mangas é um jogador supersticioso, mas, se dúvidas restassem, outro exemplo chega para serem dissipadas. “Parece que as botas têm feitiço. A primeira vez que jogo com elas, faço golo. Com as antigas corre bem”.
No plano prático, quer Ricardo Mangas, quer João Carlos Teixeira, admitem que as chuteiras têm uma relação com o desempenho no campo. “Tens jogadores que se adaptam muito rápido a chuteiras, que as calçam e já está, não lhes faz qualquer tipo de diferença. Tens outros que não. Eu sou o caso em que não. Prefiro jogar sempre com aquele modelo. Não me adapto a qualquer chuteira”, afirma o jogador que atua na China. Por esse motivo, as relações com as marcas podem viver momentos complicados. “Lembro-me que, quando estava no Liverpool, o Philippe Coutinho usava as Nike Mercurial, mas depois saiu um modelo novo”, demonstra João Carlos Teixeira. Ele ia ser uma das caras desse modelo. O modelo não tinha nada a ver com a Mercurial. Ele tinha que se adaptar, porque ele ia ser a cara dele daquele modelo. Na verdade, ele nunca gostou muito do modelo. Acabou por usá-lo em alguns jogos, mas voltou à Mercurial por não se ter habituado. Obviamente que lhe estavam a pagar e que tinha contrato, mas acaba por não ser fácil quando jogas a vida toda com o mesmo modelo”.