Portugal foi um dos primeiros países europeus a abandonar a geração elétrica a carvão, no final do ano passado. O discurso político tem-se oposto de forma incisiva perante a possibilidade ou até o reequacionar da possibilidade de voltar atrás na decisão — que aliás, ministro, secretário de Estado e diretor-geral de Energia insistem em afirmar que foi das empresas e não do Governo.
Espanha, que tem um leque de opções e tecnologias de produção maior do que Portugal — desde a interligação a França, passando pelo nuclear e uma potência instalada no solar já relevante —, não abdica do carvão. Para já. Mesmo quando não produzem, há centrais que estão obrigadas a ficar disponíveis como reserva estratégica, uma medida preventiva que garante que continuam a fazer parte do sistema elétrico estando totalmente operacionais. França autorizou as suas centrais a carvão a produzir mais este inverno num contexto de atrasos no reforço da capacidade nuclear.
O tema do carvão ressurgiu nas últimas semanas no contexto dos efeitos extremos que a guerra da Ucrânia está a ter nos mercados de energia e nos preços. O Observador confirmou junto de várias fontes que o Governo, através do gabinete da secretaria de Estado da Energia, liderado por João Galamba, abordou a EDP e a dona da Tejo Energia para avaliar da viabilidade, ou até a possibilidade técnica de retomar a produção nas centrais encerradas de Sines e do Pego.
O jornal Expresso adiantou que a iniciativa de contactar a EDP terá partido da DGEG (Direção-Geral de Energia e Geologia), o organismo da administração pública responsável pela energia e que está debaixo da tutela do Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAC). E que deste contacto resultou a instrução para suspender o processo de desmantelamento daquela que já foi a maior central do país.
A EDP não confirmou esta indicação, nem a desmentiu — aliás não fez qualquer comentário. A DGEG não respondeu às perguntas do Observador e as únicas explicações vieram do gabinete do ministro João Matos Fernandes, citando entrevistas recentes em que o ministro referiu que todas as hipóteses de produção de eletricidade foram equacionadas, aquando do início da guerra, incluindo a do carvão. Segundo a mesma fonte, “é público que essa avaliação foi feita” e que concluiu pela “desnecessidade de reativação das centrais”.
A Rússia, lembra a mesma fonte, tem um peso nos mercados mundiais de carvão ainda maior do que no gás, o que poria em causa qualquer estratégia de diversificação de risco. “Por outro lado, as centrais a carvão não são necessárias do ponto de vista da segurança de abastecimento e não têm qualquer sentido do ponto de vista do preço/custos globais do sistema.”
Sobre os contactos feitos pela secretaria de Estado da Energia ou pela DGEG junto das duas empresas ou sobre o contexto e as conclusões da avaliação ao carvão referida pelo ministro não houve esclarecimento adicional.
Possível, mas complicado do ponto de vista legal e regulatório
O carvão tem suscitado as discussões mais acesas no setor energético, mas uma afirmação parece consensual: num sistema muito exposto às fontes renováveis, quanto mais tecnologias estão disponíveis, maior é a segurança do abastecimento. Também é verdade que Portugal não tem usado toda a sua potência térmica disponível em gás natural, recorrendo às importações de Espanha essencialmente por razões económicas (preço) e não por falta de capacidade. Até fevereiro, as compras ao outro lado da fronteira abasteceram 25% do consumo nacional.
A central de Sines começou a ser desmantelada há um ano, e apesar de muito equipamento ter sido transferido para outras geografias (Brasil, onde a EDP tem aumentado a produção, e Alemanha), dois dos quatro grupos ainda poderiam ser reativados num potência instalada de mais de 600 MW. O mais complicado seria restabelecer o circuito de abastecimento de carvão à central e conseguir um fornecedor. Também seria necessário recontratar trabalhadores que negociaram a saída da empresa e a maioria dos quais terá ido para a pré-reforma ou reforma.
Dois a quatro meses é o intervalo temporal admitido para fazer o reset da central Sines. Mas e por quanto tempo? De acordo com as fontes ouvidas, qualquer solução de repor a potência de carvão na central da EDP teria de durar pelo menos um ano para fazer sentido o esforço financeiro e operacional.
Igualmente complexo seria o enquadramento contratual e regulatório desta reativação. Sines não tem contrato de aquisição de energia desde 2017 e perdeu a licença de produção. Uma reativação definida pelo Governo teria de ser gerida fora do mercado, ou seja, com licença provisória (que envolveria também a autorização ambiental) e exigiria muito provavelmente um contrato que garantisse a remuneração face à incerteza sobre o tempo em que estaria a operar – seria uma central para ligar apenas nas horas de maior procura — e o preço a que poderia produzir energia. E este contrato provavelmente teria de ser financiado pelas tarifas, como no passado.
O caso do Pego é mais simples porque o processo de desmantelamento ainda não começou e os trabalhadores que conhecem esta tecnologia ainda estão na empresa ou a fazer formação para requalificação profissional na área das energias renováveis. Ainda assim, seria necessário um a três meses para reativar a central, seja com carvão, seja com biomassa que faz parte da proposta que a maior acionista da Tejo Energia apresentou ao concurso de reconversão do Pego. Mas este concurso deverá dar a vitória à Endesa, cujo projeto não prevê manter capacidade térmica. A decisão está para sair e quando sair irá condicionar ainda mais um cenário de regresso do carvão. Até porque a elétrica espanhola se comprometeu a antecipar em um ano o prazo para iniciar a produção de fontes renováveis, o que lhe valeu um bónus na classificação que colocou a sua proposta em primeiro lugar.
A conclusão é a de que é possível reativar o carvão, mas quanto mais tarde demorar a decisão, mais difícil e mais caro. Por outro, não parece haver verdadeira vontade política.
As fontes ouvidas pelo Observador desvalorizam estas abordagens e, perante a posição pública assumida pelo Ministério do Ambiente, admitem que o objetivo seja o de mostrar publicamente que o carvão não foi afastado liminarmente (e por decisão política) sem uma avaliação prévia da sua viabilidade e utilidade neste contexto de crise energética.
Por outro lado, não se sabe ainda quem vai ser o homem forte da energia no próximo Executivo e se esta pasta hipersensível vai continuar casada com o ambiente ou regressa à Economia onde é plausível, em função do nomeado, uma perspetiva mais aberta ao carvão. Outra incógnita, que deverá ser esclarecida até ao final da semana, passa pelas medidas extraordinárias que o Conselho Europeu irá aprovar para fazer face à escalada do preço do gás natural e ao efeito de arrastamento que este movimento está a ter no mercado elétrico, em particular o ibérico.
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Carvão, seca e barragens
O carvão tem suscitado as discussões mais acesas no setor energético, mas uma coisa ninguém pode questionar: num sistema muito exposto às fontes renováveis, quanto mais tecnologias e capacidade despachável estiver disponível maior é a segurança do abastecimento.
A discussão política (ou empresarial) de antecipar o fim do carvão já estava na agenda antes da guerra na Ucrânia, por causa do efeito combinado da escalada dos preços do gás natural e da eletricidade e da seca em Portugal e na sequência de um artigo de opinião publicado pela ex-diretor-geral de Energia, Mário Guedes, que estabelece uma relação entre o fim do carvão e a exploração excessiva das grandes barragens.
O facto de o sistema elétrico português estar muito dependente da capacidade renovável, a falta de um recurso fundamental como a água — que ainda por cima é a única fonte renovável despachável (que pode ser ligada e desligada, neste caso turbinada) — obriga em tese a recorrer às centrais térmicas para compensar. Como Portugal só tem disponíveis as centrais de ciclo combinado o sistema fica mais exposto em termos de custos ao ciclo de valorizações recorde do gás natural. Para travar este efeito, o país tem recorrido cada vez mais às importações de Espanha, e, segundo Mário Guedes, maximizou também a produção das grandes hídricas contribuindo para o esvaziamento de algumas albufeiras no contexto de um janeiro e fevereiro anormalmente secos.
Ex-diretor-geral de Energia culpa fim do carvão pela produção hidroelétrica que esvaziou barragens
A opinião de Mário Guedes suscitou a contestação do Ministério do Ambiente que atacou a ideia de que Portugal estava a gastar milhões ao importar mais eletricidade de Espanha a preços muito altos. Lembrando que o carvão também é importado, e que traz consigo os custos de emissão de CO2, o atual diretor-geral de Energia contrariou os argumentos que põem em causa a decisão de descartar o carvão do mix energético português. João Correia Bernardo admitia contudo que a “única vantagem em ter carvão reduziu-se à capacidade de colocar potência na rede para responder a desequilíbrios de oferta e procura, nomeadamente nas pontas do diagrama de carga. Esta situação está, neste momento, a ser compensada com importações de energia, enquanto as hídricas e as outras renováveis não conseguem responder.”
É mesmo uma questão de segurança de abastecimento e em cenários de stress que combinassem fatores de risco do lado da procura (uma subida súbita da procura que por regra está associada a fenómenos anormais de temperatura — muito frio, muito calor) e da oferta. Do lado da oferta estamos a atravessar alguns — guerra, alta de preços e seca. Para já, não há falta de disponibilidade destes recursos, em particular de gás natural, mas a hipótese não pode ser descartada num contexto de mais sanções contra a Rússia. E num cenário, que seria mais problemático para Portugal, em que a interligação com Espanha estivesse inacessível ou fosse insuficiente face às necessidades.
2022 já era ano de maior risco no abastecimento de eletricidade (mesmo sem seca)
O relatório de segurança de abastecimento publicado no ano passado identifica um maior risco no sistema elétrico este ano devido ao encerramento das centrais a carvão cujo efeito potencial é mais significativo por causa do atraso na entrada em operação da grande hidroelétrica de bombagem do Alto Tâmega. A barragem da Iberdrola, muito por culpa de um difícil e contestado processo de construção da ligação à rede, só estará a funcionar em pleno a partir do próximo ano.
Já em matéria de preço, o carvão não faria assim grande diferença, consideram várias fontes do setor contactadas pelo Observador. Por um lado, e como lembrou o Ministério do Ambiente e da Ação Climática, a Rússia é também um grande fornecedor de carvão, minério cujas cotações internacionais têm igualmente disparado no contexto das sanções contra o país. Por outro lado, a oferta das centrais do lado português não teria dimensão no contexto ibérico para influenciar o preço do mercado ibérico.
Decisão empresarial ou política?
A falta de competitividade da geração a carvão é a principal razão invocada pelas elétricas para avançar com o encerramento destas centrais. Quer Sines, quer o Pego beneficiaram, durante décadas, de contratos de aquisição de energia que garantiam uma remuneração, independentemente das quantidades e do preço de venda. Em Sines, o CMEC (custo de manutenção do equilíbrio contratual) terminou em 2017 e no Pego o contrato de aquisição de energia chegou ao fim em novembro do ano passado, o que coincidiu com o fim da produção.
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Em tese, as duas centrais poderiam continuar a operar em regime de mercado e sujeitas ao risco dos custos e arriscando a funcionar muito poucas horas apenas quando o preço fosse muito alto em picos de procura.
Daí que a decisão foi empresarial no caso da EDP que até antecipou o encerramento, ainda que o poder político não possa descartar o papel que teve neste desfecho. A nível europeu, em que a aceleração das metas de descarbonização elevou os custos das licenças de CO2, o que encarece a produção a carvão. Mas sobretudo a nível nacional. É que, para além de eliminar gradualmente a isenção de imposto petrolífero concedida ao carvão para gerar eletricidade, o Governo antecipou a meta política de fim do carvão, anúncio que marcou aliás a tomada de posse do segundo Governo liderado por António Costa.
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E se em meados de 2019 a EDP ainda hesitava sobre o calendário para fechar a maior central do país, invocando a necessidade de estabilizar a rede elétrica no sul do país (um argumento que remete para a segurança de abastecimento), o discurso mudou um ano depois.
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Ainda assim, foi necessário obter a autorização da Direção-Geral de Energia e Geologia para proceder ao descomissionamento da central, que só foi dada no final de 2020. No caso do Pego, um conflito entre os principais acionistas sobre o futuro da central levou o Governo a avançar com um concurso para a reconversão da unidade a carvão. Neste quadro, a DGEG recusou converter a licença de produção atribuída à Tejo Energia de carvão para biomassa — uma estratégia defendida pelo maior acionista, a Trust Energy, mas contestada pela Endesa.
Para além dos sinais políticos de aceleração da transição energética e dos incentivos fiscais que o Governo decidiu retirar, o Estado através da DGEG também intervém ao nível da gestão do sistema eletroprodutor e da segurança de abastecimento. E Portugal podia ter feito o que fez Espanha.
A central aqui ao lado que voltou a produzir
Em março de 2022 a central espanhola As Pontes em La Corunha voltou a produzir depois de alguns meses sujeita a uma paragem técnica. A Endesa, que explora a central a carvão da Galiza, já pediu para encerrar a unidade em 2019, mas até agora não recebeu luz verde das autoridades espanholas que invocam razões de segurança de abastecimento. A Endesa admite que o fecho possa acontecer em julho, mas ainda não há decisão oficial do governo e depois de esta surgir há ainda o prazo de um ano até ao encerramento final.
De acordo com o jornal a Voz de la Galicia, estão contratadas duas cargas de carvão com 247 mil toneladas que vão chegar ao porto de Ferrol. A reativação da central vai mobilizar mais de uma centena de trabalhadores cujos contratos terminam até 31 de maio. A retoma de produção de eletricidade surge num contexto da guerra da Ucrânia e da escalada do preço de gás. Este último fator já tinha levado a um regresso do carvão em Espanha no ano passado operado pelas mesmas elétricas que em Portugal deixaram de produzir com esta tecnologia em 2021.
Apesar de a produção ser muito residual no conjunto, o carvão está a ser mais usado em Espanha. Até fevereiro, este tipo de geração cresceu 74% face ao mesmo período do ano passado, sendo responsável por 1.280 GW hora.
Em respostas dadas ao Observador em dezembro do ano passado, a propósito da operação na central de As Pedras, a Endesa explicou: “Estamos obrigados por lei a fazer ofertas de todas as centrais que estão no mercado e estar disponíveis para o sistema” enquanto não chegar a autorização para desligar. A elétrica já recebeu luz verde para desativar algumas unidades a carvão, a última das quais no final de 2021 em Carboneras, Andaluzia.