As decorações de Natal que enchem o salão do Convento Santos-o-Novo e a música “It’s Beginning to Look a Lot like Christmas”, de Michael Bublé, que vai tocando em fundo, vão criando o ambiente. Os utentes deste centro da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vão entrando naquele salão, forrado a azulejos azuis e brancos, e sentam-se nas mesas que foram espalhadas e organizadas de forma a manter as distâncias de segurança. Ao fundo, duas mesas fartas de doces natalícios para o lanche que se seguirá a uma surpresa. Em cima de cada uma das mesas há velas acesas em centros decorados com azevinho.
Apressado a montar o sistema de som está Hélio, o diretor do lar e organizador da surpresa, adorado por todos os utentes, que não perdem uma oportunidade para o elogiarem, a ele e a toda a sua equipa. “São todos fabulosos, muito nossos amigos”, diz uma das idosas.
Na maior parede daquele salão, uma tela gigante. “Estão todos preparados?”, pergunta Hélio para a sala. Na tela aparece logo de seguida a imagem de uma chamada de Zoom com quatro familiares dos utentes do lar: um deles é Helena, filha de Madelaide, de 88 anos.
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“Deixa só dar um abraço?” “Não pode ser”. Os velhos que escolheram passar o Natal sozinhos
“Eu não posso ver a minha mãe?”
“Eu gostaria de dizer à minha mãe que a amo muito, ela é uma pessoa muito boa. É um exemplo de carinho, amizade e preocupação com os outros”, começa por dizer Helena, dirigindo-se para a sala cheia. A mãe está sentada numa das mesas do canto, já com as mãos a esconder o rosto de emoção. É obrigada a tirar os óculos para limpar as lágrimas.
A mensagem foi curta, havia que dar lugar às outras mensagens que se seguiriam. Mas ainda teve tempo para agradecer a todos os funcionários do lar: “Por tudo o que têm feito pela minha mãe, um bem haja a todos e um feliz natal”.
Já no fim da chamada, quando todos já se estavam a despedir, Helena pede a Hélio, diretor do lar, para ver a sua mãe de perto: “Eu não posso ver a minha mãe?”. Hélio responde imediatamente que sim e apressa-se a tentar levar o computador até mais perto de Madelaide, Mádi, como é conhecida. Enquanto isso, auxiliares do lar ajudam a utente a chegar também perto do computador, levantando-a e ajudando-a a andar, com passos pequenos e demorados.
“Então, mãe?”, pergunta Helena. “Ela hoje está muito triste”, continua.
“Oh filha… já me fizeste chorar. Saudades tuas e as tuas melhoras, minha filha, tudo de bom e Deus te abençoe”, diz Mádi com a voz trémula, enquanto tenta conter as lágrimas — sem grande sucesso.
Há 20 anos naquele lar, Mádi admite que os últimos tempos têm sido difíceis. Esteve sete meses sem sair à rua por causa da pandemia e conta que esteve à beira de uma depressão. Mas soube dar a volta: “Caio muitas vezes, mas também sei levantar-me”.
Mádi, como tantos outros, não teve uma vida fácil. É filha de pai alemão, marido russo, e mãe africana. “Às vezes digo às pessoas que sou uma salada russa”, diz, enquanto solta várias gargalhadas. Passou por duas guerras em África e, quando chegou a Portugal, fugitiva do conflito, trouxe nos braços um filho “a morrer com malária”, conta ao Observador. Foi chegar ao aeroporto e ir diretamente para o hospital.
Agora, com 88 anos, não esperava que a vida lhe pregasse esta partida. “Ainda na terça-feira tive um neto que me veio visitar, veio da Holanda e ele perguntou ao segurança se me podia dar um abraço, porque tinha muitas saudades, e não podia… não nos víamos há dois anos. Chorava ele e chorava eu”, desabafa. É um misto de emoções: “É uma alegria de os ver e uma tristeza de os ver a ir embora”, sem o abraço que aquela mulher de 88 anos tanto gosta de dar e receber.
Cozinha, faz tricô, crochê e fala seis línguas — além de três dialetos africanos, “e com pronúncia”, reforça. “Não consigo, nem gosto, de estar parada.”
“Prefiro estar com saúde do que ir parar a um hospital ou coisa que o valha”
Antes da pandemia, a maioria dos residentes saía à rua todos os dias e visitava a família regularmente. Tudo mudou. Com cuidados redobrados e regras apertadas, as visitas são permitidas, as saídas também, mas, este Natal, não vão acontecer.
As mensagens de familiares, vindas assim de surpresa, foram uma forma de tentar encurtar distâncias — como para Maria de Lurdes, 90 anos feitos no dia 30 de novembro.
O seu natal, como na maioria dos casos, era passado em família, numa casa cheia de gente, foi assim até ao ano passado, apesar de já estar naquele lar há 25 anos. Este ano não vai estar na casa da sua família de sangue, mas vai passar junto das suas amigas e amigos daquele recolhimento.
“Isto é tão bom que até me esqueço que estou num lar e tenho a sorte de ter uma casa voltada para o Tejo, abro a janela e tenho o Tejo à minha frente, vejo a outra banda”, conta, sorridente “com os olhos”.
É com essa vista que gosta de escrever. Escreve num diário há anos, todos os dias, e até já comprou o diário que vai usar no ano de 2021. Outra das suas paixões é viajar, fá-lo sempre que é possível, de há uns anos para cá com os seus amigos do lar. “Tínhamos muita coisa programada, mas não pôde ser. No ano passado subimos o Douro e fomos à Serra da Estrela, este ano o plano era ir passear por Aveiro.
O estar ali fechada não a impede de caminhar. No centro daquele lar existe um enorme claustro e é lá que Maria de Lurdes e a sua amiga Maria Emília dão três voltas todos os dias. Quando fez 90 anos, a sobrinha e os filhos foram buscá-la e esteve uma semana com eles. “Soube-me muito bem, mas depois saiu-me caro, tive de fazer o teste e ficar 10 dias fechada em casa, mas foi uma maravilha”, conta.
A sobrinha que lhe fez uma surpresa através de um vídeo gravado convidou-a para ir passar o natal em sua casa, mas Maria de Lurdes disse que era melhor não: “Disse que era melhor não ir, eu e a minha amiga vamos almoçar juntas no dia 25, no dia 24 passo sozinha”.
Conta que não foi difícil tomar essa decisão, apesar de lhe custar: “Eu estou sempre a ouvir o primeiro-ministro e a diretora geral de saúde e eles dizem que está tudo cada vez pior. Sinceramente, prefiro estar com saúde do que ir parar a um hospital ou coisa que o valha”, garante.
“A velhice é triste”
Maria Emília a fiel amiga de Maria de Lurdes é a mais antiga residente do Recolhimento de Santos-o-Novo. Com 90 anos, está naquele local há 30. E é há 30 anos que uma das suas maiores companhias é a “telefonia”, como lhe chama, a par da sua grande amiga das voltas aos claustros.
Já vê mal, os ouvidos também já tiveram melhores dias. Carrega nos ombros a responsabilidade de ser a utente que há mais tempo ali vive, já conhece os cantos à casa (que não é pequena) e já viu por ali passar muita gente. Muitos acabam por morrer e ela tem ficado. Renova umas amizades, fortalece outras e vai perdendo também algumas. “É a vida”, diz.
Recebeu também de uma sobrinha uma mensagem de natal, curta como era pedido, para dar lugar aos outros, mas bonita. “Foi tão bom, este ano o natal é diferente, mas temos de aceitar”, admite. A família é grande, mas agora só a vê através dos ecrãs do computador — as novas tecnologias que Maria Emília domina ajudam a encurtar a distância. Não fosse a pandemia, era com as sobrinhas que passava a consoada.
É, e sempre foi, uma mulher de vícios, vícios bons: almoçar todos os dias fora. Odeia cozinhar, diz-nos enquanto esboça uma gargalhada. E é exatamente disso que tem saudades, de almoçar fora com as amigas. “A velhice é triste”, remata, sem hesitações.
Diretor do lar: “O medo é uma realidade entre todos aqui”
Num ano normal, aquela festa no Convento de Santos-o-Novo daria lugar um grande jantar de natal com famílias e convidados, música ao vivo e troca de presentes. Agora, há lágrimas que escapam, mãos apertadas de gratidão, acenos e beijos que voam em direção à tela, braços que se cruzam junto ao peito, numa espécia de abraço virtual.
Hélio Bernardo é o diretor deste Recolhimento da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa onde vivem 20 pessoas. Cada utente tem uma residência própria e independente, “como se de um grande condomínio se tratasse”, explica. Os utentes têm vários vizinhos e mantêm autonomia, mas têm apoio médico e social da Santa Casa.
Estes recolhimentos, em Lisboa, outrora da responsabilidade do Exército, serviam para albergar as filhas solteiras e as viúvas dos oficiais que partiam para a guerra em representação de Portugal. Nos anos 90, os critérios alteraram-se e foi permitida a entrada de pessoas que não tinham rede de suporte familiar, habitação ou qualquer outro meio de sustento.
Este lar é o oposto da realidade de muitos lares de norte a sul do país: não tiveram qualquer caso de Covid-19 nos utentes e funcionários. Hélio, porém, está muito consciente de que pode acontecer a qualquer altura. “O medo é uma realidade entre todos nós aqui”, desabafa o diretor.
Foi dada liberdade a cada um dos utentes de escolher se queriam passar o Natal na casa das suas famílias. Ninguém proibiu ninguém, mas todos foram sensibilizados para os riscos que poderiam correr. “Estas mudanças vão deixar cicatrizes, especialmente neles, os mais velhos”, diz.
Na impossibilidade de ser ainda este ano, Hélio vai tentar oferecer aos 20 utentes uma coisa que todos querem há muito: ir a uma festa africana dançar morna. Para isso, aquele diretor lembrou-se do mítico espaço de música africana e ao vivo, o Beleza, no Cais do Sodré. “Eles querem muito ir dançar música africana — e, acredite, eles aguentam…”, apesar da média das idades de quem ali vive ser de 90 anos.
“Anda cá, dá cá um abraço, tia”
Amália entra com passos pequenos na sala de visitas da Residência Quinta Alegre, apoiada pelo andarilho e uma auxiliar de braço dado. No centro daquela sala está montada uma cortina de plástico transparente e, do lado “limpo”, onde Amália está, uma árvore de Natal com luzes a piscar continuamente. Essa cortina vai do teto ao chão e divide a meio a sala. Do lado de cá da cortina está o sobrinho Carlos, de touca, luvas, máscara e bata. Antes de entrar, desinfeta as mãos e os pés, num lençol no chão, dobrado, com lixívia.
No meio da cortina estão quatro mangas, também elas de plástico, que permitem os abraços que a pandemia roubou. O plástico não permite contacto pele com pele, mas permite o abraço que Mádi quis dar ao seu neto quando o viu a primeira vez, passados dois anos.
E é com um plástico, pelo menos, que Carlos Paço e a sua tia, Amália, de 96 anos, se conseguem abraçar. É também com esse plástico pelo meio que o sobrinho faz festinhas no rosto da tia. “Vá, não estejas nervosa”, diz o sobrinho.
“Anda cá, dá cá um abraço. Põe a mãozinha aqui e a outra aqui”, explica Carlos em voz alta para a tia, que já ouve mal. O abraço foi dos dois. “Com este plástico não é igual, claro que não pode ser igual, mas eu contentei-me a abraçar o meu sobrinho”, disse Amália, emocionada por ter “tocado” numa das pessoas que mais a ama e que ela mais ama também. “Sempre cuidou de mim, os pais dele chateavam-se com ele porque ele queria estar sempre comigo aos fins-de-semana”, confessa a sorrir. Aqui viu-se a cara, era seguro.
Amália acredita que ainda vão voltar os tempos em que os abraços vão voltar a ser dados como “deve ser” e tal e qual ela gosta de dar — sem plásticos a atrapalhar e a fazerem o barulho de um gigante saco de plástico das compras.
Os seus 96 anos permitem-lhe ter bastante noção de tudo o que se passa do outro lado da porta daquela pequena sala. “Tenho saudades, mas eu conformo-me, porque isto tudo é para o nosso bem… no Natal gostaria de estar com a família, mas, lá está, há estas compensações. Não estamos com a família, mas ouvimo-las por telefone, sabemos que elas estão bem, preservadas de qualquer contágio”, diz Amália. E é o mais importante.
O sobrinho Carlos, por ser Natal, trouxe-lhe um presente e entregou-a à diretora do lar, para que, antes de ser entregue, a Amália fosse devidamente desinfetado. A conversa entre tia e sobrinho foi interrompida pela diretora: “Tenho aqui uma prenda que o seu sobrinho trouxe para si, pode tocar e abrir, já está desinfetada”. O cuidado para não estragar o embrulho de papel vermelho e o laço foram muitos. “Vá, tia, abre com força”, insistia Carlos. Eram umas pantufas já há muito desejadas, brancas e de pelo.
A visita é novamente interrompida. Do outro lado da cortina, uma assistente aproveita a presença do sobrinho para falar sobre a vacina contra a Covid-19. Apesar de ainda não haver data para arrancar a vacinação nos lares, é preciso começar já a pensar em tudo.
“A Dona Amália quer tomar a vacina contra a Covid-19?”, pergunta a assistente — a olhar, no entanto, para o sobrinho. “Se ela disser que sim, é sim”. A assistente repete a pergunta, já de olhos postos em Amália: “A D. Amália toma a vacina para a Covid-19? Acha bem?”. A resposta não tardou em chegar: “Sim, claro que tomo, acho bem, claro que quero!”.
A uma mulher de afetos como Amália custa não só não poder dar abraços, mas, ainda mais, não conseguir dar beijinhos, como a própria diz: “Sou meiga, gosto de fazer carícias, gosto muito de dar beijinhos e agora não podemos dar beijinhos. Um beijo é mais ternura, é mais sensível, tenho mais saudades de dar beijinhos”. De beijinhos e de não ter o plástico a separá-la da família.
“Adeus, tia. Até dia 29, pessoalmente. Por telefone, podes ligar.”