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José Eduardo Sanches Osório foi um dos capitães do Movimento das Forças Armadas, mas após a revolução de 25 de abril esteve exilado. Dos protagonistas da revolução, foi um dos que mostrou maiores divergências políticas face às maioria dos responsáveis militares que pensaram o golpe. 

Maria João Câmara apresenta este sábado, 30 de março — com a presença do biografado –, o livro que conta a história de “um dos mais importantes capitães de abril”. Atualmente com 78 anos, Sanches Osório conversou várias horas com a autora sobre o período pré e pós revolucionário, recordando a noite em que ocupou o Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas, o 11 de março, o exílio e o apoio ao General António Spínola e a fundação do Partido da Democracia Cristã, que esteve ilegalizado durante o PREC e que disputou espaço com o CDS — partido pelo qual chegou a ser deputado –, após a revolução. 

O Observador pré-publica dois excertos da obra editada pela Oficina do Livro. Num dos excertos, Sanches Osório recorda o período em que esteve exilado e noutro a passagem pela Assembleia da República, eleito pelo CDS — integrado na Aliança Democrática. 

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O 11 de Março: Esperanças Perdidas

“O exílio de Sanches Osório seria fértil em acontecimentos. (…)

Entretanto, Sanches Osório frequenta um curso de Estratégia na Sorbonne dirigido pelo general Gallois e prossegue na tentativa de organizar as forças do MDLP em Paris. Neste âmbito, conseguiu combinar um encontro entre Spínola e o conde Alexandre de Marenches, chefe da secreta militar francesa, a SDECE: «Pareceu um filme da CIA. Entrámos num carro, a secretária do Spínola noutro, e cada um seguiu o seu caminho. Ela foi para a minha casa,
e nós para a sede do SDECE. Tivemos de mudar de carro duas vezes pelo caminho.» Antes do almoço, o diálogo entre o conde de Marenches e o general Spínola foi amistoso, sempre acompanhado por Osório: «E porque é que eu tive intervenção nisto? Eu era o intérprete do general Spínola. Ele percebia perfeitamente o francês, falava francês, mas tinha uma má pronúncia e, portanto, envergonhava-se. Durante o almoço, o general Spínola começou a expor ao conde de Marenches todo o seu plano para a invasão de Portugal, uma coisa perfeitamente megalómana – provavelmente por influência do Alpoim Calvão –, mas eu não sabia nada disso e, à medida que ia traduzindo, ia suavizando algumas coisas que o Spínola dizia, e o Spínola dava-me pontapés debaixo da mesa, porque percebia perfeitamente o que eu estava a fazer.»

Enfim, «O que começou como um filme do 007 acabou numa cena deprimente: ‘Foi um desastre’, lembra Osório. ‘Ele acabou por dizer ao conde o que disse aos militares brasileiros e [que] está [descrito] no relatório da reunião no SNI’, acrescenta. Os planos ‘irrealizáveis’ de Spínola serviram apenas para que os franceses se afastassem de qualquer plano de apoio ao seu movimento.» Com efeito, Spínola foi-se embora e o conde de Marranches pede para falar com Sanches Osório. Explica-lhe então que França não pode, de maneira nenhuma, apoiar o plano do general por decisão do Presidente da República.

E que plano era este?

Com base no relatório do Serviço Nacional de Informações (SNI) brasileiro, no dia 17 de Junho de 1975, na agência do Rio de Janeiro, o coronel Waldir Alves Costa Muniz recebe António de Spínola para o ouvir e registar uma proposta que este lhe trazia: Spínola pedia ao Governo brasileiro uma área onde pretendia montar um campo de treino para 600 homens, que, exilados no Brasil ou que viriam de Angola e de Portugal, seriam constituídos numa força de invasão a Portugal. Nesse encontro expõe as suas teses sobre a infiltração comunista nas Forças Armada e, com o poder militar controlado pelos comunistas, os portugueses tinham-se visto «obrigados» a votar no socialismo nas eleições para a Assembleia Constituinte, em 25 de Abril de 1975. Spínola levava aos militares brasileiros do SNI informação sobre «o Movimento Democrático de Libertação de Portugal, MDLP, que liderava e que contava com uma organização espalhada pela Espanha (Alpoim Calvão, José Miguel Júdice, entre outros), França (Sanches Osório) e Brasil, [e que] tinha sido já anunciado um mês e meio antes». Para o general havia «uma grande urgência no desencadeamento das acções», e bastariam «cinco mil homens bem armados e adestrados» para «invadir Portugal com êxito»; o transporte das tropas após o seu treino «para uma base em algum lugar da Espanha» seria feito por sua conta em risco. O prazo máximo seria de seis meses, que Spínola considerava crucial para o sucesso da operação. Avisado muitas vezes por Carlos Simas de que uma invasão a Portugal naqueles moldes era um sonho, Spínola não desiste.

Em Julho, em Paris, o general fica hospedado numa suíte do Hotel Sheraton, de onde praticamente não sai, apesar do assédio dos jornalistas. A viagem tem como propósito estabelecer contactos, ou renová-los, com os representantes da oposição portuguesa. O artigo que sai no Expresso vai precisamente na mesma linha: «De facto, segundo informações dignas de fé, Spínola teria intenção de passar abertamente à ofensiva e, especialmente, de constituir grupos de “comandos” formados por exilados portugueses e mercenários estrangeiros.» Terá sido também nessa ocasião que se reúne com Mariz Fernandes, à época adido militar em Bona, como o recorda Sanches Osório: «Estava o Spínola doente, no Verão, com um calor infernal, e ele não deixava pôr o ar condicionado do hotel a
funcionar e estava com um pijama de flanela – coisa impensável…! Qual era a intenção do Mariz Fernandes? Era afastar do MDLP o Alpoim Calvão. Estávamos nesta conversa, a três, com o Spínola a dizer que o Alpoim Calvão isto e aquilo – porque o Mariz Fernandes dizia cobras e lagartos do Alpoim Calvão – e abre-se a porta do quarto e vê-se uma carequinha, que era… a do Alpoim Calvão. E o Spínola reage assim: “Ainda bem que você vem!”, e mudou logo as coisas todas, de braços abertos para o Alpoim Calvão. Moral da história: o Mariz Fernandes, que estava colaborante com o MDLP, deixou de estar.»

Sanches Osório sai do MDLP após o 25 de Novembro. Não se justificava, no seu entender, manter um movimento cujo objectivo – libertar Portugal e instaurar a democracia – tinha sido alcançado. Em meados de Janeiro de 1976, Spínola chega a Paris vindo de Espanha, de onde tinha sido expulso pelo governo de Arias Navarro. Os círculos políticos da esquerda espanhola especulam sobre a protecção que Giscard d’Estaing possa agora dispensar ao ex-Presidente português e o Partido Socialista Francês, pela voz dos seus militantes da ala esquerda, considera que, ao autorizar a estadia do antigo Presidente da República de Portugal, o Governo francês está a fornecer um apoio directo à contra-revolução portuguesa: «A imprensa também não tem dispensado grandes comentários à visita do ex-general Spínola, mas nas salas de redacção refere-se com insistência o desejo de liberalização de Juan Carlos.[…] Por outro lado, teria sido o incondicional apoio de Franco ao MDLP que levou os membros deste último a fazerem do território espanhol uma autêntica base militar, armazenando aí grande quantidade de material bélico que aguarda a invasão de Portugal. A par dessa base militar existe ainda em Madrid uma delegação do Movimento que funciona com cerca de vinte pessoas, o que teria desagradado ao jovem rei. Apesar de o antigo chefe de Estado português não poder entrar em território espanhol pensa-se que ele continuará o diálogo com os dissidentes do seu movimento a partir de França, terra de asilo por tradição…»

Terá sido nesta ocasião que, num conturbado encontro com Sanches Osório, «Spínola desembainha a espada e chama-me, furibundo: ‘Traidor!’ Porquê? Porque eu não me dava com os tipos contra-revolucionários de Madrid, nomeadamente com o Alpoim Calvão». Apesar de pertencerem ambos ao mesmo movimento, também Alpoim Calvão pouco se refere a Osório, que afirma: «Eu era um tipo, talvez anarquista, talvez “esquerdoso”, complicado…»

Vasco Lourenço nunca reconheceu legitimidade ao MDLP, não achava legítimo formar um grupo armado para combater um regime comunista pelo simples facto de que este não se estabeleceu. Sanches Osório observa que, a posteriori, a constituição deste movimento «[…] denota uma má avaliação da situação. Talvez tenhamos entrado em histeria com a questão anticomunista… Se calhar, exagerámos!»

No entanto, a 12 de Março de 1975, a moderação dos militares não era perceptível.”

O 25 de novembro e o regresso ao país

“(…) Sanches Osório foi convidado em 1979 por Freitas do Amaral para fazer parte das listas do CDS (então integrado na Aliança Democrática). Conhecia Diogo Freitas do Amaral desde miúdo e aceita por uma questão ideológica: «Aliás, eu não vibro minimamente, a não ser que esteja empenhado.» Foi candidato e eleito deputado por Lisboa. Entretanto há uma eleição intercalar em que é candidato por Santarém, sendo também eleito.

Não é propriamente um deputado activo, como hoje vemos. Numa Assembleia que dava os seus primeiros passos num sistema democrático, pluripartidário, em que quase tudo está por definir, não lhe permitem que tome a palavra, não há comissões parlamentares de discussão, tudo se centra na elaboração da constituição, que desagrada, ou numa revisão constitucional que tarda. Não era presidente do grupo parlamentar, não era presidente do partido, portanto, tinha pouco espaço de manobra e nenhum tempo de antena, segundo ele mesmo afirma. Recusou-se a votar a favor da lei das regiões autónomas.64 Por esta razão foi necessário aguardar que chegassem deputados suficientes para que a lei fosse aprovada, o que significou permanecer no parlamento até às 4h30 da madrugada, segundo recorda.

«Uma coisa que me revoltava quando eu era deputado eram as ladainhas do CDS e do PPD contra o Conselho da Revolução, e eu dizia-lhes: ‘Mas o Conselho da Revolução só existe porque vocês não fazem a revisão constitucional! A responsabilidade é vossa! Os militares estão a cumprir escrupulosamente aquilo que prometeram!’ Por isso culpo todos os partidos por igual, excepto o PCP! Custa-me muito dizer isto! Mas é um facto.»

Entretanto desvincula-se do CDS enquanto era ainda deputado. Isto porquê? «Porque em determinado dia o PCP – para se ver as minhas actuações paradoxais – propõe um voto de homenagem à Maria Lamas, e logo a seguir à proposta eu pedi a palavra e teci um enorme elogio à Maria Lamas. Perfeitamente sentido. E foi uma bronca monumental no meu grupo parlamentar! Pediram meia hora de intervalo, fizeram uma reunião para me zurzir… e eu achei aquilo perfeitamente descabido, reiterei a minha admiração pela Maria Lamas, expliquei que ela era avó de um grande amigo meu e que desde miúdo no Colégio Militar me habituei a admirar imenso a Maria Lamas. Diziam-me: ‘Mas ela é do PCP!’ E depois? Para mim, a Maria Lamas era uma escritora, uma senhora simpatiquíssima… ‘Mas se vocês quiserem, expulsem-me já! Estão todos reunidos aqui, decidem já…’ ‘Não! Tu vais abster-te!’ ‘Não! Vocês votam contra e eu voto a favor!’

Para ele, os votos no parlamento devem ser inteiramente livres, com excepção do Orçamento do Estado e das moções de confiança. Por isso aprova o voto de louvor proposto pelo PCP e depois desvincula-se do grupo parlamentar do CDS. «Fiquei como independente o resto da legislatura, com uma cadeira à minha disposição no hemiciclo e outra nos corredores! E tinha as casas de banho, também. Acho uma coisa completamente indecorosa.»

«Nessa altura – para se ver as consequências disto, que só soube desta história há pouco tempo –, vai um veterinário a São Bento para falar com o Henrique Soares Cruz, deputado do CDS por Santarém, toma o elevador, sai no elevador nos Passos Perdidos e a primeira coisa que ele vê é: eu e o Vital Moreira66 a conversarmos animadamente. Teve um choque de tal forma que se meteu no elevador outra vez e foi-se embora sem falar com o Soares Cruz. Considerou inadmissível um deputado do CDS estar a falar com um deputado do PCP! Mas o que é que o Vital Moreira me estava a dizer? Estava a dizer para eu não me maçar com as sanções do grupo parlamentar, porque sanções e descomposturas do grupo parlamentar apanhava ele todos os dias… E que era preciso encarar estas coisas com desportivismo, etc. Eu estava furioso com aqueles parlamentares todos! E o meu supremo gozo foi que o Freitas do Amaral também acabou essa legislatura como independente.» Segundo Sanches Osório, Diogo Freitas do Amaral não é conhecido por ter um grande sentido de humor… mas nesse momento não resistiu: «Telefonei-lhe e disse-lhe: ‘Nunca digas que desta água não beberei!’»

Em 1986, Sanches Osório ainda apoiou Maria de Lourdes Pintassilgo na sua candidatura à Presidência da República. Maria de Lourdes é a primeira mulher quadro superior da maior empresa nacional da época, a CUF, em 1953; é, como dissemos, a primeira mulher a exercer, em 1974, um cargo ministerial, a primeira a chefiar um Governo e a primeira mulher a concorrer à Presidência da República. Além disso, tem consigo uma boa parte do eleitorado. Os opositores, de peso, são Mário Soares, Salgado Zenha e Diogo Freitas do Amaral. Para os enfrentar era preciso uma boa campanha eleitoral, que foi, como nos recorda Sanches Osório, «engendrada pelo Rodrigo Sousa e Castro e pela psicóloga Isabel Leal. A Helena também esteve na campanha eleitoral dela, de que faziam parte cenas como a Maria de Lourdes Pintassilgo a sair de um tejadilho de um carro, à noite, com tudo iluminado, na Figueira da Foz…»

As razões do apoio de Sanches Osório são simples, como nos conta: «Além da componente católica, eu fui companheiro de desgraça no Conselho de Ministros que antecedeu a minha saída do Governo no 28 de Setembro. Ela era secretária de Estado dos Assuntos Sociais. Sentava-se ao meu lado e estava do meu lado político. Continuo a ter imensa consideração por ela. Era uma pessoa notabilíssima.» A sua candidatura como independente mobilizou multidões, sob o lema: «Pintassilgo Presidente – a coragem da decisão!», num sufrágio que viria a ser ganho, à segunda volta, por Mário Soares.

«E depois, tivemos 7%, uma indecência.»

É preciso aceitar as derrotas e seguir em frente.

Mas agora afastado da política e dos holofotes.”

Afinal, quem realizou a descolonização?