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Pré-publicação: os anos de Gulbenkian em Portugal, do "paraíso" à detenção pela PIDE

Quando chegaram a Portugal, os Gulbenkian viram um paraíso que escapava à II Guerra. Mas o arménio chegou a ser detido. Eis um excerto da nova biografia do "homem mais rico do mundo".

Quem foi, exatamente, Calouste Gulbenkian? O filantropo e negociante de origens arménias que viveu em Lisboa, onde acabou por morrer em 1955, aos 86 anos, teve uma vida tão rica que justificava uma nova biografia, além do relato autorizado (já então com acesso a memórias íntimas) que o biógrafo britânico Ralph Hewins publicou em 1957. A biografia dos anos 1950 teve como título português “O Senhor Cinco Por Cento”, alcunha com que o arménio ficou conotado pela participação que teve na primeira petrolífera a extrair petróleo do Irão. Agora, o escritor norte-americano e professor de História da universidade de Southampton Jonathan Conlin prepara-se para publicar “O Homem Mais Rico do Mundo — As Muitas Vidas de Calouste Gulbenkian”. O livro chega às livrarias esta quinta-feira, 3 de janeiro, no ano em que se assinala século e meio do nascimento de Gulbenkian.

Resultado de uma investigação de cinco anos, que ocupou Jonathan Conlin a tempo inteiro nesse período, o livro pretende retratar Calouste Sarkis Gulbenkian também na intimidade. Isto porque Conlin encontrou motivos de interesse na vida privada do mecenas, que legou uma importante coleção privada de arte à fundação criada com o seu nome em Lisboa: “As mulheres de que se fazia acompanhar, os negócios com Estaline, a forma como usava a sua mulher, a encantadora Nevarte, para aprofundar relacionamentos e alianças e a sua paixão por arte”.

O livro foi escrito com “total acesso aos arquivos da Fundação Calouste Gulbenkian” e a biografia é a de um “homem complexo”, garante a editora Objetiva, que publica a obra. Antecipando a edição da obra, o Observador publica o 16º capítulo, “País de Abundância, 1942-1944”, referente aos primeiros anos do filantropo e comerciante em Portugal, à relação que estabeleceu com o regime de António Oliveira Salazar e à forma como Gulbenkian e Nevarte viam a sociedade lisboeta. Segundo esta nova biografia, quando morreu em Lisboa em 1955, Calouste Gulbenkian era ‘o homem mais rico do mundo’.

A nova biografia de Calouste Sarkis Gulbenkian, escrita por Jonathan Conlin, chega às livrarias na quinta-feira, dia 3 de janeiro

Para exilados abastados como os Gulbenkian, a Lisboa do tempo de guerra oferecia uma via de fuga às privações da vida em Londres, Paris e Vichy. Não obstante a sua riqueza e o sempre presente mercado negro, Calouste, Nevarte, Nubar, Rita e Kevork não conseguiam escapar ao racionamento, que se prolongaria bem para lá do fim da guerra. Nevarte viria a recordar ter de sobreviver em Vichy “sem leite, sem manteiga, sem ovos, sem galinhas e patos, sem peixe, sem carne”. Nubar, em contrapartida, encontrou “bastante comida” em Lisboa durante a sua escala em 1940. Como ele escreveu a Rita, “Portugal em geral, e Lisboa em particular, é um perfeito País da Abundância para quem vem de uma Inglaterra marcada pela guerra”. Uma vez instalado no Hotel Aviz de Lisboa, Calouste depressa começou a enviar encomendas com provisões para a Grã-Bretanha. Amigos que tinham agradecido educadamente ofertas de caviar cinco anos antes, escreviam agora cartas exuberantes de agradecimento por uma caixa de ameixas de Elvas. Terra de sol, paz e abundância (pelo menos para os ricos), Portugal parecia um verdadeiro paraíso em 1942.

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"Em Londres, Nubar estava exposto a um conjunto diferente de indignidades (como ter de viajar de pé em comboios sobrelotados), mas partilhava ainda assim da frustração crescente de Rita com a incapacidade de Calouste para reconhecer como os tempos estavam a mudar."

Contudo, a gratidão não era a única resposta. Também havia um certo ressentimento. Encurraladas no ‘mausoléu’ do número 51 da Avenue d’Iéna, Rita e Madame Soulas alternavam a marcar lugar nas filas intermináveis que se formavam diariamente à porta de padarias e outras lojas. O sofisticado sistema elétrico de aquecimento do edifício era agora de uma grande inconveniência, sendo poucas as horas do dia em que havia eletricidade. Kevork, no entanto, estava bastante satisfeito: libertado da sujeição ao sogro, podia praticar a sua pintura a óleo. Em Londres, Nubar estava exposto a um conjunto diferente de indignidades (como ter de viajar de pé em comboios sobrelotados), mas partilhava ainda assim da frustração crescente de Rita com a incapacidade de Calouste para reconhecer como os tempos estavam a mudar.

Nubar advertiu o pai de que o padrão de vida que Calouste considerava ser “uma existência basicamente frugal” já não era possível na Grã-Bretanha, em França ou em Espanha. Não só já não era possível, como era também motivo de censura. Era mais do que uma situação de apertar de cinto patriótico e temporário. Nubar e Rita reconheciam que a “existência frugal” de Calouste desaparecera definitivamente. Em Harrow, os rapazes até aprendiam a dactilografar. Talvez o neto dele, Mikhael, devesse aprender também?

A neutralidade de Portugal não só tornava mais fácil encontrar comida em Lisboa, como também levava a cidade a desabrochar num intercâmbio cosmopolita. Graças à sua história insigne como potência imperial, a cidade já possuía um cenário adequado a este drama, mesmo que, como Nubar observou com alguma arrogância, os quadros da galeria nacional não estivessem à altura da coleção do pai. Uma parte deste império, os Açores, era de significado crucial para os Aliados, como base transatlântica de reabastecimento de combustível para o transporte aéreo de suprimentos. O norte de Portugal também possuía as únicas reservas na Europa de tungsténio (então conhecido por volfrâmio), um metal pesado que os Exércitos dos Aliados e do Eixo usavam ambos para guarnecer as pontas dos projéteis perfurantes de blindagem que se afadigavam a disparar contra os tanques uns dos outros.

Calouste Gulbenkian chegou a Portugal em 1942. Quando morreu em 1955, em Lisboa, era "o homem mais rico do mundo", segundo estima o autor desta nova biografia

Em 1942, o presidente do Conselho — também ministro da Guerra, dos Negócios Estrangeiros e das Finanças —, Dr. António de Oliveira Salazar, estava no poder havia já dez anos. Antigo professor universitário de economia, com um estilo de vida visivelmente frugal, em 1939, Salazar optara por ignorar os tratados que amarravam Portugal à Grã-Bretanha e permanecera neutral, com o fundamento de que a Grã-Bretanha se recusara a cumprir o seu papel para garantir a soberania portuguesa. Salazar também se confrontava com a ameaça de invasão pela Espanha de Franco, cujas Forças Armadas eram muito mais fortes do que as portuguesas. Com a entrada dos Estados Unidos na guerra, em Dezembro de 1941, Salazar compreendeu que os Aliados tinham probabilidades de vencer e começou a afastar-se da sua anterior posição de estrita neutralidade. Um mês depois da chegada de Calouste a Lisboa, Salazar pôs fim às vendas de tungsténio ao Eixo. Contudo, tendo relutância em ser visto a avançar demasiado rapidamente, as negociações para uso dos Açores pelos Aliados só principiaram um ano depois.

Entretanto, Lisboa e a estância de veraneio atlântica próxima, o Estoril, tornaram-se poiso habitual de espiões e aventureiros, bem como de exilados ricos que se entretinham com apostas. Todos os quartos de hotel disponíveis estavam ocupados e os hotéis dividiam-se vagamente entre estabelecimentos ‘aliados’ e do ‘eixo’. Nevarte instalou-se no Palácio, no Estoril, que, como o Aviz, era tido como hotel ‘aliado’. Aí teria cruzado caminhos com um antigo empregado da corretora de Gulbenkian em Londres, a Cull & Co., que agora trabalhava para os serviços secretos de Sua Majestade. Ian Fleming hospedara-se ali, em Maio de 1941, e estava envolvido na Operação ‘Golden Eye’: uma rede de agentes de retaguarda contra a esperada invasão espanhola. Fleming considerara monótono o trabalho de tratar das transações de títulos de Gulbenkian. A história não regista se ele se apercebeu da presença do seu antigo cliente no Aviz — era agora um homem calvo, tímido em público, de riqueza misteriosa e fabulosa, com uma predileção por gatos angorá brancos.

A combinação pela qual Nevarte passava a maior parte do seu tempo no Hotel Palácio do Estoril e no Buçaco Palace Hotel enquanto Calouste permanecia em Lisboa, no Aviz, era conveniente para ambas as partes. Em cada Outono, Nevarte costumava mudar-se para o Aviz por um mês ou dois. Ela sabia ser ‘muito discreta’, reconhecendo que o marido não “gosta de pessoas, por isso não ‘recebo’ — almoço e janto fora, mas não convido ninguém para o Aviz”. “É justo”, escreveu ela, “e estou bastante satisfeita e contente: no casamento, é preciso saber dar e receber”. No Aviz, ela descia para jantar uma hora antes de Calouste, tomando a refeição separadamente em obediência à rotina que fora estabelecida na Avenue d’Iéna. Como Nubar, ela apreciava a boa comida que havia em Lisboa, embora por vezes desse consigo a «suspirar por um arenque [fumado]!!!”

"No Estoril, em contrapartida, Nevarte podia ser "bastante livre". Ela abriu caminho pelos círculos diplomáticos tal como fizera em Paris, encantando embaixadores, generais e outros altos funcionários. Quando se tratava da elite local, muito coesa, ela percebeu que a sociedade portuguesa era bastante mais conservadora do que a da Grã-Bretanha ou de França."

Do palácio para a prisão

No Estoril, em contrapartida, Nevarte podia ser “bastante livre”. Ela abriu caminho pelos círculos diplomáticos tal como fizera em Paris, encantando embaixadores, generais e outros altos funcionários. Quando se tratava da elite local, muito coesa, ela percebeu que a sociedade portuguesa era bastante mais conservadora do que a da Grã-Bretanha ou de França. Nevarte reconheceu que aristocratas, diplomatas e outros funcionários — que incluíam o duque de Palmela, Marcello Mathias e o director da PVDE (polícia secreta), Agostinho Lourenço — lhe consentiam que se comportasse de maneiras que talvez não tolerassem numa portuguesa.

Quando Nubar advertiu a mãe de que tinham chegado a Londres boatos dos rituais de jantar dos Gulbenkian, Nevarte refletiu acerca do que isso dizia da sociedade de Lisboa:

Em Portugal, quando não se leva uma vida absolutamente convencional — marido, mulher, quartos comunicantes!!!, saídas em conjunto, estar em casa juntos, pantufas, besigue ou bridge — as pessoas entretêm-se a falar. É preciso ter o cuidado de não fazer nada que dê nas vistas, diferente de todos os outros no mais ínfimo grau: com a nossa idade e a nossa posição, a nossa ‘tenue’ em público […] quero dizer que não posso pintar o cabelo ou dar festas sumptuosas e suspeitas; são-nos consentidas algumas originalidades, por exemplo, não estarmos sempre juntos em repastos, passeios, etc.

Ainda assim, Nevarte estava grata a Nubar por a manter informada do que era dito a respeito dela. Precisava de saber se andava a pisar o risco. “É útil conhecer l’opinion publique” — escreveu. “O que se poderia fazer impunemente em França, não se pode fazer aqui.” Feito o balanço, concluía, no que tocava à elite portuguesa, “pareço agradar-lhes por não ser demasiado moderna, mas alegre — e sempre pronta para alguma diversão”.

"A amizade de Nevarte com o chefe da polícia secreta, Agostinho Lourenço, principiou em Junho de 1943 (...) Observando que ele era "o grande e mais importante homem de Portugal", Nevarte contou que "nos entendemos com a rapidez de uma casa em chamas" (...) O êxito de Nevarte com Agostinho Lourenço da PVDE é surpreendente, visto que apenas seis meses antes ele metera o marido dela na prisão."

A amizade de Nevarte com o chefe da polícia secreta, Agostinho Lourenço, principiou em Junho de 1943, quando ela se sentou ao lado dele num dos muitos almoços diplomáticos festivos a que compareceu. Observando que ele era “o grande e mais importante homem de Portugal”, Nevarte contou que “nos entendemos com a rapidez de uma casa em chamas”. Lourenço riu com gosto quando Nevarte lhe falou do contraste que Rita apontara entre a vida dela em Paris e a da mãe em Lisboa. Enquanto a primeira era, afirmava Rita, a vida do “Exército de Salvação”, a vida em Lisboa era as Mil e Uma Noites. “Contei-lhe uma ou duas das minhas histórias engraçadas — e não pedi favores!!!” O êxito de Nevarte com Agostinho Lourenço da PVDE é surpreendente, visto que apenas seis meses antes ele metera o marido dela na prisão.

Em Dezembro de 1942, Gulbenkian dispunha de cinco das trinta e três suítes do Hotel Aviz, uma imitação de castelo projetado no famoso estilo gótico manuelino. Não se tratava simplesmente de um caso de vaidade. Além do alojamento dele, precisava de uma suíte para a sua secretária privada, Isabelle Theis. O genro dele, Kevork, chegara no mês anterior para uma estadia prolongada. Esperava-se a chegada de Whishaw e era sempre preciso pensar em Nevarte. Assim, quando o gerente pediu a Calouste, no dia 14 de Dezembro, que desocupasse uma suíte, ele recusou. É óbvio que lhe foi de facto tirada uma suíte, porque quando Whishaw apareceu teve de ser instalado num quarto para criados. No dia 17, o gerente pediu a Kevork para vagar a sua suíte, declarando que tinha sido requisitada para uso do governo. Calouste voltou a exprimir claramente as suas objeções. O que aconteceu de seguida foi verdadeiramente notável.

"Às 19 horas e 50 minutos, Calouste e Kevork foram levados à força para uma esquadra de polícia. O passaporte diplomático de Calouste foi apreendido, ele foi separado de Kevork e informado de que se encontrava na situação de prisioneiro, não obstante não ter havido detenção formal."

Às 19 horas e 50 minutos, Calouste e Kevork foram levados à força para uma esquadra de polícia. O passaporte diplomático de Calouste foi apreendido, ele foi separado de Kevork e informado de que se encontrava na situação de prisioneiro, não obstante não ter havido detenção formal. Calouste nunca aprendeu português e quando pediu alguém que falasse francês foi-lhe dito com rudeza que se sentasse e esperasse. Decorrida uma hora, foi interrogado e mandaram-no assinar uma declaração em português que, mais uma vez, ele não sabia o que tinha escrito. Embora de começo recusasse assinar, acabou por fazê-lo sob ameaça.

Às dez horas da noite foi levado para o Estabelecimento Prisional. Recusaram-lhe repetidamente autorização para fazer um telefonema. No entanto, estava a ser tida alguma consideração pelo seu estatuto social e diplomático, pois teve de esperar mais três horas enquanto era preparada uma “cela de primeira classe” para ele. Não havia embaixada iraniana em Portugal, por isso Kevork apelou ao embaixador egípcio, Fakhry Paxá, que chegou à prisão uma hora depois e negociou a libertação de Gulbenkian. Além de um único memorando redigido por Kevork, este incidente nunca foi referido por ninguém, nem mesmo em correspondência privada, até que a revista Life o divulgou em 1950 . Este silêncio serviu para encobrir o que deverá ter sido uma experiência profundamente humilhante para Calouste.

É difícil imaginar este drama a ter lugar em Vichy ou em Londres. Refletia com precisão o desprezo da PVDE pelas minudências de um processo correto, pela imunidade diplomática e pelos direitos cívicos. Não obstante a barreira do idioma, Calouste tivera uma lição muito instrutiva sobre o lado menos aprazível de Agostinho Lourenço e dos seus agentes, e, na verdade, do próprio regime de Salazar. Ele teve o cuidado de incluir os funcionários de Lourenço na extensa lista de instituições beneméritas portuguesas que apoiava e reconheceu o excelente serviço que prestavam, acima de tudo por manterem os jornalistas afastados do Aviz. Parece legítimo supor que Gulbenkian admirava a ênfase posta pelo regime de Salazar na tradição, na família e no trabalho árduo. Os dois partilhavam um desdém pelo comunismo e pelos sindicatos, se bem que Gulbenkian nunca apoiaria a abordagem corporativista que Salazar aplicava à economia nacional. Cômputo final, a política portuguesa não era muito importante para Gulbenkian. Ele não tinha investimentos em Portugal, não tencionava permanecer no país por muito tempo e havia questões mais prementes a ocupá-lo.

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