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Vasco Pulido Valente nasceu a 21 de novembro de 1941, em Lisboa. Na mesma cidade morreu, a 21 de fevereiro de 2020
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Vasco Pulido Valente nasceu a 21 de novembro de 1941, em Lisboa. Na mesma cidade morreu, a 21 de fevereiro de 2020

Leonel de Castro/Global Imagens

Vasco Pulido Valente nasceu a 21 de novembro de 1941, em Lisboa. Na mesma cidade morreu, a 21 de fevereiro de 2020

Leonel de Castro/Global Imagens

Pré-publicação. Vasco Pulido Valente, a promessa de Sá Carneiro e a conquista de Soares

A vida do historiador e cronista e a de Portugal. São estes os temas centrais do livro "Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva. O Observador faz a pré-publicação.

É publicado esta quarta-feira, 25 de março, o livro “Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente” (Contraponto). É um olhar pessoal sobre a vida do historiador, ensaísta e cronista que morreu em fevereiro de 2020 e é uma análise sobre Portugal, começando ainda no século XIX e terminando na atualidade. Tudo a partir de mais de 40 conversas conduzidas pelo jornalista João Céu e Silva, autor de outros títulos que seguem o mesmo princípio, sobre José Saramago, António Lobo Antunes ou Álvaro Cunhal.

O Observador faz a pré-publicação do livro com um excerto em que Vasco Pulido Valente dá protagonismo e duas figuras essenciais da história portuguesa recente. Por um lado, projeta o que poderia ter sido o percurso político de Francisco Sá Carneiro, os obstáculos que o antigo líder do PSD enfrentou, as decisões e as consequências da sua morte prematura. Por outro, é esclarecedor na forma como viu as conquistas políticas e Mário Soares e como o histórico socialista chegou a Presidente da República.

"Uma Longa Viagem com Vasco Pulido Valente", de João Céu e Silva, é publicado esta quarta-feira, dia 25 de março (Contraponto)

Sá Carneiro teria sido um líder tão forte se não tivesse morrido cedo?
Teria, porque, se não tivesse morrido cedo, o sa‑carneirismo pegava com o cavaquismo e o Sá Carneiro continuaria a ser o pai da modernização portuguesa, mesmo com Mário Soares na concorrência, porque tinha um aparelho mais sólido, firme e competente que o do PS. As pessoas esquecem que Sá Carneiro teve duas maiorias nas eleições, mesmo que a força principal dessas vitórias tenha sido a da Igreja. Quem fez as duas maiorias da Aliança Democrática (AD) foi a Santa Madre Igreja. Eu lembro‑me, na campanha em que participei, de os senhores párocos me convidarem para ir à missa, apesar de eu ser ateu, e de fazerem grandes elogios à AD e de dizerem que não se podia votar em nada que fosse marxismo – e insistiam nessa palavra. Era uma conversa nas missas e que continuava à saída da igreja com as individualidades locais, momento em que o padre me puxava para o lado e – falavam sempre da mesma maneira – dizia que o facto de nós não sermos marxistas era o grande segredo da nossa virtude. A Igreja quis eleger a Aliança Democrática e que tivesse a maioria duas vezes e não só uma. Só não se prestou a apoiar Sá Carneiro para a Presidência da República.

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Por que razão?
Por causa da Snu. Recusou‑se terminantemente a apoiar Sá Carneiro como candidato a presidente depois da primeira maioria. Ele candidatava‑se a presidente da República e punha um homem da confiança dele como primeiro‑ministro.

A Igreja também acaba por apoiar Soares?
Depois de Sá Carneiro morrer, há o problema de os militares ficarem sozinhos e os únicos possíveis donos do regime, então foi ajudado pela Igreja mas de uma maneira muito ténue. O que a Igreja queria era o que Sá Carneiro fez: o casamento entre o conservadorismo rural e o moderadismo urbano, que existia e era sempre social‑democrata. No caso de Soares, este precisava da Igreja para se implantar em todo o país. Aliás, precisava de duas igrejas: a Igreja Católica e a igreja comunista para chegar às áreas urbanas. Foi aí que o PS começou a ganhar este feitio de albergue espanhol, de meio‑termo que hoje tem. Quem fosse socialista não chateava ninguém e toda gente foi para o PS.

A sua relação com Sá Carneiro acontece só depois do 25 de Abril?
Com certeza, antes não o conhecia de parte nenhuma. Escrevi um texto em que conto porque foi: “As coisas não estavam brilhantes para ele e para o PSD. O general Eanes queria dividir o partido e resolvera (como lhe permitia a Constituição da altura) formar um governo de iniciativa presidencial com Carlos Mota Pinto à frente, que inevitavelmente arrastaria com ele uma parte do PSD. Apertado por Eanes, que o queria eliminar da cena política, e pela oposição no próprio PSD, Sá Carneiro tremia. Na conversa num jantar em Cascais percebemos que concordávamos em dois pontos importantes: era preciso livrar Portugal do poder militar, unificar a direita e coagir Eanes a dissolver a Assembleia da República e a marcar novas eleições.”

"No caso de Soares, este precisava da Igreja para se implantar em todo o país. Aliás, precisava de duas igrejas: a Igreja Católica e a igreja comunista para chegar às áreas urbanas. Foi aí que o PS começou a ganhar este feitio de albergue espanhol, de meio‑termo que hoje tem. Quem fosse socialista não chateava ninguém e toda gente foi para o PS."

O “destino” de Portugal muda com a morte de Sá Carneiro?
Não, a Igreja continua a dar apoio a Balsemão e não há uma mudança radical do destino de Portugal. No plano político, sim, seria diferente. Quando ele morreu, havia duas forças fundamentais em Portugal: a Aliança Democrática (AD) e o PS. E as duas, note‑se, estavam contra o general Eanes. O poder militar estava condenado, ninguém o queria, e, apesar de Sá Carneiro ter sido removido por um desastre de avião, havia já na altura as forças suficientes para impedir que Eanes, e através dele os militares, tomasse conta do país. Isto é fácil de dizer posteriormente, que o Partido Renovador Democrático (PRD) [criado a 10/7/1985], que era o partido dos militares e da Manuela Eanes, não teria possibilidade de prevalecer. Isto dito uns anos depois parece fácil, mas naquela altura não se sabia.

Acha que Eanes queria tomar conta do país?
Acho que a mulher dele queria. A Sra. Dra. Manuela Eanes queria e havia forças dentro dos militares que também. Como se viu depois! Como disse, agora é fácil dizer que não havia perigo nenhum, mas para o eliminar foi preciso a candidatura de Mário Soares a presidente e a vitória nessa eleição não foi nunca um dado adquirido, porque era fortemente disputada entre ele e Freitas do Amaral – que não percebia nada do que se estava a passar. Além de que não tivemos ajuda nenhuma no MASP 1 (Movimento de Apoio Soares à Presidência) – o MASP 2 não conta.

Dos presidentes após Spínola e Costa Gomes, qual é o mais representativo?
É Soares. Eanes tinha de ser presidente da República porque tinha feito o 25 de Novembro e era chefe do Estado‑Maior‑General das Forças Armadas. Só podia ser ele, era o homem que concentrava todo o poder.

Era a figura necessária para a transição entre os militares e a vida partidária?
As pessoas pensavam que era isso, mas Eanes acabou por não o ser. Naquela altura não havia discussão; o que é que se podia opor ao poder militar? Nada.

Ninguém culpa os militares de se quererem eternizar no poder?
Não sei bem o que eles queriam fazer ou se tinham esse plano de ficar com o poder. É mais aquela coisa portuguesa de “Ó camarada, somos todos porreiros”, e não um projeto político para ficar com o poder. Era mais uma espécie de tutela. Eles acreditavam naquelas coisas da sociedade igualitária.

"Soares propõe-se a si próprio. Era preciso devolver o poder aos civis ou o sistema não funcionaria"

Por isso o Conselho da Revolução resiste até ao limite?
Isso sim, mas era por outra razão. Eles tinham‑se desfeito de um império e uma pessoa não perde um império como quem perde um cartão de crédito. Tinham medo de que a direita viesse em tropel e que ajustasse as contas com eles. É por isso que se ligam ao PCP e que resistem no Conselho da Revolução. Eles tinham medo do que fizeram ao terem‑se desembaraçado de um império e de terem feito as nacionalizações. Eles estavam com medo do que podia ser a retribuição, pois sabiam que aquilo não fora uma coisa menor. O mundo estava de olho na evolução da realidade portuguesa e havia os retornados, de maneira que eles estavam muito atentos e com medo do que lhes poderia acontecer.

Temeu‑se que Portugal pudesse ser uma espécie de Cuba?
Eles não se atreviam a dizer ao que queriam chegar, mas seria uma ditadura militar ao jeito da América Latina. Falavam muito disso e impuseram o pacto MFA‑Partidos, de que resulta o Conselho da Revolução e mais algumas condições impostas ao poder. Queriam a afirmação do poder militar em nome de uma sociedade igualitária e, mesmo nos gajos que estavam contra, como Eanes, que não tinha feito nada em nome de uma sociedade igualitária, a ideia era de que a intervenção dos militares tinha de ser uma função desse programa igualitário para a sociedade portuguesa. Era uma coisa que os afligia, precisavam de se legitimar a eles próprios. Temos de imaginar que aquilo era tudo muito primitivo e não uma coisa elaborada, nem tinha uma teoria do poder ou um projeto social; nada, era só um impulso igualitário a favor dos pobrezinhos. Eles não tinham passado por nenhum processo político antes de chegarem ao poder.

Otelo nem sabia quem era Cunhal?
Otelo não sabia nada, era tudo uma confusão na cabeça dele.

O que leva Eanes a desejar uma carreira política?
Ele era chefe do Estado‑Maior‑General das Forças Armadas e não podia haver um presidente da República que não o fosse, ou iria criar‑se um desequilíbrio, porque não teria poder suficiente. Se fosse um civil ou um militar que não mandasse nas Forças Armadas, tinha de ir pedir licença ao MFA para mexer as pestanas, e isso não podia ser. Toda a gente convergiu em Eanes: o PSD, o PS, Soares, Sá Carneiro. Toda a gente se precipitou a dizer: “Este é o meu candidato.” E pronto, ele foi o candidato, porque era uma garantia contra o comunismo.

"Aquilo com a Snu não foi uma história de amor para o sentimentaloide como vem nos jornais. A Snu era luterana, ele era católico, e viviam os dois com imensos sentimentos de culpa. Era para eles uma tragédia porque se confessavam um ao outro. E havia outras situações, como a de Sá Carneiro ficar doido com as regras de protocolo que não permitiam dar à Snu o lugar e a posição que lhe competiam."

Precipitaram‑se?
Precipitaram‑se oportunisticamente para terem um presidente do seu lado. Depois, vem aquele impulso de Eanes em fazer os governos presidenciais – que era gente dele –, porque queria pôr na rua o Soares e o governo. Fez três governos presidenciais, sendo que, no primeiro, o Nobre da Costa andou a ver se conseguia formar um governo fora dos partidos. E nunca conseguiu fazer esse governo estável. Depois é a vez de Mota Pinto; o esquema era fazer o governo presidencial com parte do PSD, mas Sá Carneiro aguentou o partido, mesmo havendo uma boa dose de deputados do partido, quarenta e tal por cento, que votaram a favor do Orçamento de Mota Pinto e contra as diretivas de Sá Carneiro. Como este se aguentou, aí Mota Pinto já não servia e foi a vez da Pintasilgo. Que era uma extrema‑esquerda fluida, que ninguém percebia bem o que era. Uma espécie de Bloco de Esquerda prematuro, que vinha do catolicismo – ela era uma das grandes ativistas, como hoje se diz, do catolicismo de esquerda, como Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa, e muitos outros.

Mas não é o catolicismo a fazer o PRD.
Era mais a cabeça da Dra. Manuela, a mulher do Eanes. Tinha sido sempre associada ao catolicismo de esquerda e acho que foi ela quem precipitou aquilo.

Por ele, não teria avançado?
Não sei. Eu era amigo dele, mesmo amigo dele, e vi aquilo com tristeza e com desgosto no dia a dia.

Disse que era contra o militarismo. Eanes não representava isso?
Representava, sim, e muitas vezes lhe disse que não podia ir naquelas manobras. Disse‑lhe isso em conversa, mas eu não era importante, portanto, não deu lugar a nenhum drama.

Soares candidata‑se a presidente para evitar mais um militar no cargo?
Soares propõe-se a si próprio. Era preciso devolver o poder aos civis ou o sistema não funcionaria. Sá Carneiro falhou por causa disso: não propôs um civil, mas um militar, o general Soares Carneiro, que era a continuação da mesma conversa.

Se Soares podia ser candidato, porque não Sá Carneiro?
A Igreja Católica dissera que não podia ser por causa da Snu, repito. E a Igreja Católica Apostólica Romana mandava. Eu sempre lhe disse que se estivesse nas tintas para a dita Igreja e que se candidatasse, mas pura e simplesmente não acreditou em mim. Era um católico do Porto. Tem de se pensar que aquela gente é mesmo católica e, como se dizia, um católico de vivência, e esses eram uma coisa extraordinária.

"Sempre lhe disse [a Sá Carneiro] que se estivesse nas tintas para a dita Igreja e que se candidatasse, mas pura e simplesmente não acreditou em mim"

LUIS VASCONCELOS / LUSA

E a opinião dos portugueses?
A sociedade portuguesa estava‑se nas tintas para aquilo. Não se importavam se ele dormia com a Snu. Quanto ao candidato à Presidência, queriam um civil em vez de um militar. Eles puseram‑se com aquelas merdas, que Diogo Freitas do Amaral alimentava de fora, tal como Adelino Amaro da Costa. Quem tirou o general do bolso à última hora foi Sá Carneiro.

O que disse a Igreja contra Sá Carneiro e Snu?
Estas histórias contam‑se agora como se não tivesse existido a enorme pressão da Igreja Católica. A Igreja disse que não aceitava Sá Carneiro – o cardeal-patriarca D. António [Ribeiro] disse‑me que não aceitava e eu disse‑lhe, delicadamente, que ele já não sabia quem era da Igreja. Da maneira como aquilo andava, não havia nenhuma Igreja que pudesse pôr a malta na ordem, era preciso ter‑se vivido esses tempos de libertação absoluta, em que ninguém se importava que o Sá Carneiro andasse a dormir com a Snu.

Vasco Pulido Valente e a História dos homens vencidos

Só a hierarquia da Igreja?
A hierarquia da Igreja estava aterrorizada, tal como Sá Carneiro e aquela gente que fez a AD, porque de resto ninguém ligava aos costumes em 1980 – era uma blague. Mas Sá Carneiro preocupava‑se, e esse é que foi o grande problema.

Mesmo afastado da mulher?
Ele preocupava‑se grandemente com isso. A mulher dele é que não quis ficar em Lisboa nem aturar a vida política. Eu não a conheci bem, só falei com ela depois de ele morrer e fiquei com essa impressão. A Isabel é que fez resistência à vinda para Lisboa e entrar na vida social que a atividade de um político implicava. O gajo ficou, coitado, aqui sozinho; a Natália Correia apresentou‑lhe uma loura e ele gostou dela. Aquilo com a Snu não foi uma história de amor para o sentimentaloide como vem nos jornais. A Snu era luterana, ele era católico, e viviam os dois com imensos sentimentos de culpa. Era para eles uma tragédia porque se confessavam um ao outro. E havia outras situações, como a de Sá Carneiro ficar doido com as regras de protocolo que não permitiam dar à Snu o lugar e a posição que lhe competiam.

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